"De nada adianta a técnica, se o tradutor não assumir o compromisso
ético
diante do autor da obra original. E esse compromisso não deve
anular a tarefa do tradutor, que também cria com base em suas experiências,
mas ele deve primordialmente exercer o papel de suporte da alteridade
do autor,
para que a sua ausência se presentifique no texto traduzido.
Não se trata de negar a técnica, mas ela de nada vale se aquele que se
propõe
a traduzir não se recolher, não se submeter ao autor, respeitando
totalmente seu texto sem se impor a ele, para que o pensamento do autor
surja com a maior intensidade possível na tradução." Zoia Prestes
Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934) é, sem dúvida, um dos autores mais mencionados nas reformas dos sistemas de ensino e nos documentos curriculares que delas derivam, bem como nos trabalhos académicos que se realizam no âmbito da pedagogia ou que se querem fazer passar por isso. Digamos que existe uma "conjuntura" em que fica bem citá-lo. É, contudo, em geral, muito mal mencionado, sendo-lhe frequentemente atribuídas ideias opostas àquelas que defendeu.
Chegado ao português [de Portugal e do Brasil] através de traduções em segunda, terceira ou quarta mão [sobretudo do francês e do inglês de Inglaterra e da América] de alguns (poucos) documentos com supressões, deturpações e confusões sobretudo da responsabilidade do regime soviético e sem o acompanhamento que o estudo aprofundado permite, ficou, como Newton Duarte (1996, p.18) diz "famoso ... antes de ser lido e conhecido".
Era, na verdade, esta a ideia que as autoras do presente texto tinham e, por isso mesmo, evitaram citar Vygotsky... até há pouco tempo.
O que mudou foi o facto de, quase por (feliz) acaso, lhes ter chegado às mãos o trabalho de uma investigadora brasileira com o perfil ideal de tradutora e exploradora da obra deste autor: tem formação em psicologia e em pedagogia, com especialização na educação de infância, além de que domina o russo na perfeição (foi para a União Soviética em criança e lá esteve até ao início da vida adulta).
Trata-se de Zoia Prestes, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense. Com o seu trabalho, a obra de Vygotsky e, em particular a teoria histórico-cultural (que ele ajudou a construir e a que nunca atribuiu designação), ganha um novo e esplêndido sentido.
Prestes revisitou as circunstâncias de vida do autor que escolheu como objecto da sua tese de doutoramento: voltou à Rússia e "mergulhou no contexto em que Vigotski desenvolveu seu pensamento [muito marcado pela guerra e pela censura política] (...) leu cartas que estavam eram dadas como perdidas (...) entrevistou familiares, teve acesso aos materiais escritos na língua russa, comparou edições das obras publicadas em diferentes línguas" (Cericato, 2015, p.279).
Eis uma passagem em que Prestes alude aos inúmeros equívocos que se infiltraram na obra em questão:
Estudos comparativos revelaram que os textos que estão em A formação social da mente (1984, 1998, 1999) têm muito pouco ou quase nada em comum com as obras originais publicadas na União Soviética e, mais recentemente, na Rússia. Ou seja, dificilmente se pode dizer que são trabalhos do mesmo autor em línguas diferentes. Portanto, pode-se afirmar que o livro é levianamente atribuído a Vigotski, pois não foi escrito por ele. Além desse fato, os organizadores do referido livro parecem se eximir de qualquer responsabilidade pelos textos publicados. Caso o leitor seja descuidado e não leia a introdução, jamais saberá que se trata de uma tradução editada, e a responsabilidade de atribuir a autoria dos textos a Vigotski será dele e não dos organizadores do livro (2013, p.297).E, reportando-se ao Brasil, mas sendo certo que Portugal não está distante, diz:
O pensamento de Vigotski, até os dias de hoje, não foi levado a sério (...) no sentido de que suas ideias são empregadas apenas como maquiagem e não como eixo orientador para profundas transformações na escola, transformações essas que devem inverter a organização das atividades, não em função do professor, mas em função dos estudantes. Sem dúvida, isso não se pode atribuir apenas ao fato de as traduções de suas obras serem mal feitas. As traduções são na verdade, apenas cúmplices, assim como a censura e os cortes sofridos por suas obras também o são. Porém, o que é preciso evidenciar é que o nome de Vigotski e suas ideias servem meramente para legitimar o mesmo trabalho que sempre foi e continua sendo realizado na escola. Isso contraria o próprio Vigotski, que, por exemplo, jamais utilizou Marx para remendar ideias do seu pensamento; ele usa o método de Marx para estruturar a sua teorização e não para legitimar o que pensa (p. 236, citada por Cericato, 2015, p.284)Não... Vygotsky não é um radical de esquerda, nem defende a mudança radical da escola, no pressuposto de que alunos são capazes de construir sozinhos o seu próprio conhecimento, como muitas vezes se afirma. Noutro texto explicar-se-á esta afirmação.
Maria Helena Damião e Cláudia Chistina Rocha
Referências bibliográficas:
- Cericato, I. (2015). Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski. Educar em Revista, n.º 56, 279-284.
- Prestes, Z. (2013). A sociologia da infância e a teoria histórico-cultural: algumas considerações. Revista Educação Pública, n.º 22 (49/1), 295-304.
- Vasconcelos, G.S.M., Buss-Simão, M., Fernandes, S.C.L. (2014). Entrevista com Dra. Zoia Prestes. Zero-a-seis. Revista Eletrônica (Núcleo de Estudos e Pesquisas de Educação na Pequena Infância), n.º16 (30), 340-352.
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