quarta-feira, 21 de março de 2018

Poema "Marketing" (1969) de Fernando Namora

O poema “Marketing”, de 1969, é um exercício de ironia sobre o mundo moderno e o consumismo, tendo como base mensagens publicitárias da época em que foi escrito (e outros aspectos sociais e políticos que não vou aqui comentar). O que gostaria de referir, ainda que superficialmente, são os muitos produtos referidos que, em alguns casos, têm uma história química interessante e positiva para o bem-estar da humanidade e a sustentabilidade do planeta. Embora a poesia seja para ser lida sem interrupções, olhemos para algumas partes do poema: 

 Aqui a meu lado   o bom cidadão
 escolheu Sagres
 que é tudo   tudo cerveja
 a pausa que refresca
 a longa pausa de um longo cigarro King Size.
                                          atenção ao marketing.

A marca de cerveja Sagres surgiu em 1940 para a Exposição do Mundo Português, lançada pela Sociedade Central de Cervejas e Bebidas, fundada em 1934. A marca de cerveja Super Bock surgiu em 1927, mas a sua distribuição fazia-se apenas no Norte até aos anos 1970, além de que não se colava tanto ao regime como a Sagres. A tecnologia da produção de cerveja industrial envolvem muitos aspectos químicos.
Os cigarros King Size foram muito populares. Fernando Namora, como muitos médicos da altura, assim como as suas personagens, era fumador. Embora já fossem conhecidos os malefícios do tabaco, os anúncios eram livres e, em muitos casos, envolvendo a sugestão de benefícios. Há várias outras referências a tabaco no poema, nomeadamente às marcas Estoril, Valetes, Kaiakes e Marialvas, já desaparecidas e ao uso de filtro nos cigarros.

Eu não gosto de cerveja
mas tenho de gostar que os outros gostem de cerveja
sobretudo da Sagres
para não contrariar os fabricantes de cerveja.
                                              atenção ao marketing.
Ninguém contraria os fabricantes de cerveja
ninguém contraria os fabricantes do Opel e da Super Silver
nem os fabricantes de alcatifas para panaceias
nem as panaceias nem os códigos e os édredons macios
nem as mensagens de natal dos estadistas
nem os negociantes de armas da Suíça
nem o homem de capa negra que virou as costas ao Palmolive.
Está tudo perfeito e deito-me no conforto de um Lusospuma
a ver as procissões passar   mesmo sem anjos   mesmo sem anjos
que são agora selvagens e voam numa Harley.

As marcas de automóveis Opel e Ford, com o modelo Escort desta última a aparecer mais à frente, são aparentemente, na altura, publicitados em Portugal. Os carros desse tempo eram muito menos seguros e fiáveis, além de mais poluentes e muito mais consumidores de combustível. Usavam gasolina com chumbo e ainda não estavam em uso, ou não tinham sido inventados, o airbag, os catalisadores, os vidros duplos, a injecção electrónica,, entre muitas outras coisas que nos parecem normais hoje em dia. As marcas de motas Harley Davidson e Super Silver aparecem aqui num estatuto quase mítico. O Palmolive e o Lux, que aparecerá mais à frente, são sabonetes. Este objecto de higiene que permitia um uso mais frequente do que os sabões, como o Clarim para lavar a roupa, referido mais à frente, está hoje quase completamente substituído pelos sabonetes líquidos que envolvem surfactantes líquidos, na altura ainda não inventados, foi uma revolução.
Lusoespuma era uma marca de colchões de espuma de poliuretano, material ainda hoje usado. Este material sintético substituiu com grande vantagem e versatilidade materiais naturais, como a palha, nos colchões mais económicos e populares. E com a evolução da tecnologia, surgiram colchões de poliuretano e materiais mistos que rivalizam com os melhores e mais caros colchões de materiais naturais mais nobres. Além disso, não seria sustentável nem possível usar sumaúma ou outros materiais naturais para tanto colchão do mundo moderno. No entanto, a reciclagem e a reutilização de tecidos pode abrir novos caminhos.

Deito-me e obedeço aos fabricantes do Clarim
que é uma alta onda ou uma onda alta
sem esquecer as fitas do John Waine e a chama viva do Butagás
e se calhar sentir fome terei toda a frescura serrana
numa fatia de pão.
                                                                        atenção ao marketing.
Vitonizo-me   desodorizo-me   atravesso as ruas nas passagens dos peões
louvo quem me dizem para louvar e desconfio dos negros americanos
e dos blousons noirs   que não usam Lux
e não compram um frigorífico a prestações
e com o meu escudo invisível
protejo-me dos vírus subversivos
sou um bom cidadão   sou um bom cidadão
obedeço ao marketing   à General Motors e ao Pentágono.
Dantes   tinha problemas   era o odor corporal
e eu não o sabia   até me higienizar seis vezes ao dia com o sabonete 
                                                                                               [das estrelas
e as paradas marciais e os 5-3 do Eusébio à Coreia
e o talco Cadum    que ama demoradamente roucamente tepidamente
os corpos que merecem ser amados...

O Butagás é (era?) uma marca de botijas de gás butano, usado para cozinhar e aquecimento. Por esta altura o gás já tinha substituído praticamente todos os usos equivalentes do petróelo, mas em boa parte do país em que se cozinhava a lenha e em Lisboa existia o gás de cidade. Vitonizar-se, é aparentemente, tomar um tónico de ferro e fósforo que era publicitado na altura – hoje em dia publicitam-se os de mangustão e cálcio. O desodorizante (mais à frente é referido o Rexina, agora Rexona) é um produto em contínua evolução e desenvolvimento, desde os perfumes aos materiais bactericidas e absorventes do suor. O frigorífico é um objecto que só na segunda metade do século XX se tornou popular, graças ao desenvolvimento e baixo custo dos fréons. O talco (Cadum) é um material natural (rocha) que misturado com perfumes e outros ingredientes era muito popular pelas suas propriedades paradoxalmente simultaneamente hidrofóbicas e hidrofílicas.

Obedeço ao marketing   não contrario.
Ninguém contraria os fabricantes das ideias e os fabricantes do Fula
que é o da cor do sol
ninguém pisa os riscos brancos do tráfego
nem chama os bombeiros sem concorrer ao sorteio
concorro   concorro   e vejo nos sinaleiros o pai natal vestido de Scotchgard
ninguém sai do emprego antes de assinar o ponto a horas fixas
e gastar o dinheiro da semana sábado à tarde
no Dardo   que é tudo a prestações e é mesmo em frente da Música no Coração.
Fazendo Portugal mais alegre com o folclore da TV e a tinta Robbialac
não contrario   obedeço   obedeço e meto os meninos na cama
quando me dizem vamos dormir.
                                     atenção ao marketing.

O óleo Fula ainda hoje existe e é  bem conhecido. A obtenção de óleos a partir de plantas foi algo que se desenvolveu muito no século XX e permitiu acabar com a caça da baleia entre outras práticas pouco sustentáveis. Scotchgard era e é um protector de tecidos, repelente de água, desenvolvido pela 3M. Robbialac é uma marca de tintas que tinha já na altura, se não estou em erro, tintas plásticas que polimerizam ao secar. Hoje em dias a paleta de cores e de propriedades das tintas é muito mais extensa que no tempo de Namora e estes materiais são ambientalmente muito mais eficientes e responsáveis, nomeadamente há cada vez mais tintas e vernizes à base de água e com materiais não tóxicos. Os pigmentos brancos são agora de dióxido de titânio em vez do antigo e tóxico carbonato de chumbo.

Sagres é uma boa cerveja
e eu acabarei por gostar da Sagres
como gosto do Rexina.
Sagres é a pausa que refresca e tem vitaminas
todas as bebidas da televisão têm vitaminas
mesmo as do programa literário que é detergente
e eu uso-as e sou um cidadão perfeito
e até já consigo adormecer com hipnóticos
depois de tomar o Tofa descafeinado
e no Verão visto calções de banho de fibras sintéticas
para me banhar na Torralta
cidadão perfeito perfeitamente bronzeado com o Ambre Solaire.

Também hoje os refrigerantes e bebidas continuam a ter reforços de vitaminas adicionadas, nomeadamente ácido ascórbico (vitamina C). Já não se usam hipnóticos para dormir, os quais eram muito perigosos. Desde o tempo que Namora refere apareceram muitas outras moléculas e terapias que são mais eficazes e seguras. Os processos de obtenção de café solúvel e descafeinado evoluiram também muito. Já não são usados solventes orgânicos, mas fluidos supercríticos, por exemplo. Os calções e muitas roupas são actualmente de fibras sintéticas. Estas acabam por ser mais sustentáveis em termos de produção e têm propriedades de elasticidade e de contacto com a água muito mais alargadas. Há hoje muitos mais protectores solares que o Ambre Solair. E são mesmo protectores solares testados para a protecção anti-UV física ou química.

Também vou arear as caçarolas e os nervos e os miolos
com um pó azul de que não me lembra o nome
não me lembra mas a culpa já não é minha
porque na mesma noite
massajado com Aqua Velva
fiz a barba com Gillette, e Schick e Nacet
e fui não sei aonde sempre com a mesma lâmina
e oito dias depois (eu era actor ou toureiro?)
a lâmina ainda me escanhoou mais uma barba
antes de eu descer no aeroporto
onde me esperava um agente do marketing.
Os produtores viram-me à descida do avião
primeiro julgaram que era o filho da Sophia Loren
ou o Onassis   mas era eu
e gostaram da minha barba bem feita.
(Da barba bem feita
ou do casaco Dralon que não se amarrotara
durante a viagem da Polinésia para Lisboa?)
Confesso que já não me lembra   mas a culpa não é minha
pois na mesma noite
fui o homem de não sei quê que marca o rumo
por vestir regras ou camisas ou calças que não enrugam
e fartei-me de assistir a discursos e a inaugurações
e fartei-me de comer chocolates Regina e pescada congelada
e de lavar a roupa com Ajax e com o Rino
e de me banhar com Omo ou seja uma onda de brancura
e fiz-me mecânico de automóveis
só para que o cavaleiro da armadura branca
me tocasse com a sua lança mágica
e me pusesse branco branco branco
três vezes branco como as páginas do Reader’s
de cérebro irrepreensivelmente lexivizado
pelos locutores da televisão pela oratória dos políticos
e passado a ferro com um ferro eléctrico automático
que talvez fosse – ou não? – uma enceradora Philips.
Tudo coisas admiráveis e desesperadamente necessárias
que eu devo ao marketing
e me são cozinhadas num abrir e fechar de olhos
nas palavras de pressão
de todo o bom cidadão.
E no intervalo bebi café puro o do gostinho especial
Sical Sical que é um luxo verdadeiro
Por pouco dinheiro.
Vitonizado   esterilizado   comprando e concorrendo
esqueci-me de amar   do amor   das árvores e do rio
esqueci-me de mim   tão entretido estava a admirar a Lisnave
esqueci-me do rio e dos barcos
e da saudade de pedra do Fernando Pessoa
e esqueci-me de sonhar que era marinheiro.

Aqua Velva, é um after-shave criado em 1935, que tem na sua composição, segundo o site Fragrantica.com, além do solvente, álcool e águas, bergamota, lavanda, hortelã, petitgrain, limão verdadeiro ou siciliano, sálvia esclaréia, jasmim, vetiver, sândalo, cedro, ládano, âmbar, musgo e couro. Estas essências envolvem moléculas odoríficas provenientes de plantas e muitas podem ser hoje obtidas de forma sintética. O âmbar referido pode referir-se a um material obtido dos cachalotes, mas hoje subtituído por um análogo semi-sintético. Gilette, Schick e Nacet são marcas de lâminas de barbear. Os desenvolvimentos técnicos e metalúrgicos que permitiram as lâminas de segurança e mais tarde descartáveis não podem reduzir-se numa frase. Dralon é um tipo de tecido sintético acrílico que ainda hoje se fabrica e é usado. A tecnologia e a química do chocolate, em particular dos Chocolates Regina, tem muito que pode ser referido, nomeadamente as reacções envolvidas na preparação do cacau e o controlo do ponto de fusão e estrutura cristalina do produto final. Ajax, Rino e Omo são detergentes em pó que foram desenvolvidos para serem solúveis e não terem problemas com águas duras, envolvendo fosfatos e surfactantes sólidos solúveis (paralelamente para as máquinas de lavar, foram desenvolvidos detergentes envolvendo persulfatos e silicatos, sendo um dos mais antigos o Persil). Hoje em dia os fosfatos forma substituídos devido ao seu efeito eutrofizante das águas e os surfactantes não biodegradáveis foram substituídos.

Concorra   concorra   foi isso que não reparei
que uma rapariga cortou as veias
talves fosse com uma Diplomatic
que tem o fio e o silvo de uma espada a degolar avestruzes.
No programa só havia bombeiros
nem uma rapariga a cortar as veias (não era a Caprília)
nem o rio nem o amor nem a raiva da Venezuela.
Se mágoa sentia era a de ter esquecido
dar murros no espião da Missão Impossível
(atenção ao marketing)
e já não saí de casa para ver o rio
só pelo gosto de me aquecer com um Ignis.
E na mesma noite noite boa noite branca
fumei Estoril   Valetes   Kayakes e bebi Compal
depois da Salus e da Schweppes
fumei quilómetros e quilómetros de prazer
quilómetros e mais quilómetros – há um Ford no meu futuro –
mais facturas mais fomes mais prazer
e agora já não sei qual dos cigarros com filtro
me soube melhor.
Foram todos foram todos de certeza
pois se me dizem que preciso de Omo
do Ajax   do Estoril   do Dralon
do esquentador e das alcatifas sem nódoas
não me preocupo não te preocupes
o Meraklon não preocupa ninguém
mando para o diabo o amor e o rio e a rapariga que cortou as veias
não me preocupo não me preocupo
digo pois pois ao Jota Pimenta e ao Escort
e hei-de virar-me do avesso para os possuir.
Os corpos que merecem ser amados merecem o talco Cadum.
Numa onda de brancura obedeço ao marketing. Sou um bom cidadão.

Compal, Salus (marca de água da Vidago) e Schweppes são marcas bem conhecidas. No caso das águas, há que contar com as análises química e em alguns casos com a adição de dióxido de carbono ou aromatizantes, caso da Schweppes. A marca Meraklon ainda hoje existe e está relacionada com fibras de polipropileno, entre outras.

E na mesma noite
vi umas bombas que caíam muito ao longe
numa lonjura mais longe que a Lua
onde as pessoas podiam estar quietas a fumar Marialvas
e a lavarem-se com Rino que lava lava lava
lava três vezes mais lava ou mata que se farta
e me ajuda a ser bom cidadão.
                                           atenção ao marketing.
Vi uns homens a inaugurarem estátuas
e vi fardas e paradas e conferências
e crianças a sorrir
para os homens sorridentes que inauguravam estátuas
e vi homens que falavam e pensavam por mim
a escolherem por mim o bom e o mau
de modo a que eu não possa ser tentado
a confundir o mau com o bom ou vice-versa ou vice-versa.
Deitado no conforto de um Lusospuma
vi os porcalhões dos hippies nas ruas de Estocolmo
bem longe   nas ruas de Estocolmo
mesmo a pedirem uns safanões
dos homens que acariciam crianças
e têm todas as verdades na mão
só para que eu seja um bom cidadão.
É isto: marco o rumo. As minhas cuecas marcam o rumo.
Preciso e gosto de uma data de coisas
e só agora o sei.
Menos da Sagres. Mas acabarei por gostar.
Ninguém contraria o marketing por muito tempo.
Ninguém contraria os fabricantes de bem fazer
o bom cidadão.
                       E tudo graças ao marketing.

(na foto a capa da 4ª edição de 1978 rodeada de alguns produtos referidos no poema e de alguns outros que ainda não existiam, ou eram pouco conhecidos em Portugal, em 1969)  


2 comentários:

Rótulos do absurdo disse...

Outrora o Pórtico nos deu
Quão obscuros e sábios anciãos!
Eles eram capazes de crer que as imagens sensíveis,
Exalando-se da superfície dos corpos,
Gravavam-se nas nossas almas
Tal como o estilete
Traça a cera na tabuinha
Assim sem nenhuma inscrição,
Recobrindo-a de símbolos.

Boécio, Livro 5 de "A Consolação da Filosofia"

LABdigital - Resultados Digitais disse...

Gostei. Obrigado Labdigital

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...