Artigo dos médicos António Vaz Carneiro e Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos, esta semana no Expresso:, esta semana no Expresso:
Os notáveis avanços da medicina foram todos conseguidos - salvo raras exceções - através da procura sistemática de conhecimento sobre os fenómenos biológicos utilizando a metodologia científica. Os exemplos de sucessos estão aí para o comprovar, como por exemplo a vacinação preventiva, a descoberto dos antibióticos e controlo das infeções, os avanços na saúde maternoinfantil, a segurança alimentar, o controlo do tabagismo, o tratamento do cancro, o declínio dramático da morte por doenças cardiovasculares. Todos estes factos se refletem — além de uma muito melhor qualidade de vida — no aumento notável da expectativa de vida à nascença: no nosso país, quem nascesse em 1900 esperaria viver em média 40 anos se fosse mulher e 36 se fosse homem. As crianças que nasceram em 2017 viverão em média 83 anos se forem do sexo feminino e 76 se forem do sexo masculino. Este espantoso ganho de dezenas de anos de vida foi devido a muitos fatores, incluindo melhores condições económicas, melhor saneamento básico e melhores condições de habitação (entre outros). Mas o fator mais importante foram os medicamentos, que permitem tratar doenças antes não tratáveis, tratá-las melhor e com grande e eficácia. E isto é tanto assim que se reconhece facilmente que necessitamos muito mais de medicamentos para viver dos 80 aos 81 anos do que dos 30 aos 31 anos.
Perante este cenário, como explicar a crença que existe nas sociedades modernas sobre os benefícios das chamadas terapias alternativas? Sem qualquer evidência cientí ca de qualidade que as suporte — com a provável exceção da acupuntura médica para determinadas situações —, são divulgadas, aprovadas e regulamentadas como se de alternativas aceitáveis à medicina tradicional (alopática) se tratassem. Mas estas convicções são exclusivamente baseadas em crenças, já que não existem estudos científicos suportando a reclamação de eficácia destas atividades pretensamente clínicas. Quando analisamos os 109 protocolos e revisões sistemáticas sobre intervenções classificadas como de terapias alternativas disponíveis na Biblioteca Cochrane (consideradas universalmente como as melhores provas científicas disponíveis sobre os benefícios e riscos de uma qualquer intervenção), verificamos que não há nenhum estudo que demonstre algum benefício significativo (com algumas demonstrando risco não negligenciável).
Um exemplo cabal da cultura anticientífica e da negligência politicamente correta dos agentes políticos é a recente publicação pelos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e da Saúde, da Portaria no 45/2018 de 9 de fevereiro, que regula os requisitos gerais que devem ser satisfeitos pelo ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado em Medicina Tradicional Chinesa (MTC). Ao dar irresponsavelmente carta de alforria a um corpo de princípios absolutamente inconcebíveis na sua formulação e signi cado — yin e yang, o sistema dos meridianos e rami cações jing luo, as síndromes dos zang fu, as quatro camadas, os três aquecedores (!!) —, os políticos portugueses (não apenas os governantes mas também os deputados) deram um passo não só para a degradação do sistema de saúde do nosso país como para o fomento de ilusões acerca de soluções mágicas para doenças bem reais de que os doentes sofrem.
Este sistema de dois pesos e duas medidas — para se aprovar um medicamento é necessária a produção de evidência científica de alta qualidade, num processo de grande complexidade técnico-científica, para garantir um significativo balanço benefício-risco, mas por exemplo para se utilizar a ‘massagem tuiná’ e exercícios energéticos nada é necessário — é em si mesmo eticamente errado e moralmente inaceitável. As consequências desta grotesca ação legislativa são impossíveis de determinar nesta altura, mas não será difícil esperar problemas graves para os doentes (e não só) que venham a procurar estes pro ssionais da pseudociência. Ir-se-á seguramente verificar a proliferação de ‘consultórios’ de MTC oferecendo vasta gama de intervenções esotéricas e absurdas, com promessas de curas rápidas e baratas.
Os doentes que nos leem devem exigir às autoridades de saúde informação de qualidade sobre as suas opções de diagnóstico e tratamento antes de recorrerem a indivíduos não preparados, em contextos não claros, com abordagens desconhecidas e resultados não monitorizados. Só assim poderemos garantir a qualidade dos serviços clínicos e a confiança que devemos ter no sistema de saúde.
4 comentários:
Vejo as instituições médicas mais preocupadas do que os médicos, como indivíduos. Felizmente que deputados já usaram as TNC e fizeram bom juízo do que experimentaram. As instituições médicas e científicas precisam de uma reciclagem urgente dos dogmas.
"Experiência" ou "testemunhos" não validam tratamentos. Aguardo pelo dia que esse argumento gasto é já amplamente desmistificado deixe de ser utilizado.
O "argumento ciência" é um abuso praticado por muito burgesso que, aparentemente, nem de tecnologia (médica) entende; mas fazem barulho e fumo em grandes quantidades.
As fortes raízes da cultura oriental são pré-científicas. O forte ramo da Ciência, que brotou da Árvore da Cultura Europeia, no Renascimento, é incompatível com superstições. A harmonia perfeita entre o Ocidente e o Oriente poderá continuar a ser uma utopia, mas a Ciência Universal já é uma realidade em franco crescimento.
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