sábado, 21 de janeiro de 2017

Os filósofos devem ser (ou não) estudados em função da cor da sua pele


No início do ano passado, mais ou menos por esta altura, era notícia o reiterado pedido de estudantes de prestigiadas universidades americanas e inglesas para que fossem poupados à leitura de obras que contivessem algo capaz de ferir as suas delicadas sensibilidades. Deve notar-se que os estudantes se referiam a obras da literatura universal (Ver aqui).

Não sendo um acto inovador - a arte foi sempre um campo privilegiado de censura - não deixou de ser particularmente preocupante: afinal, eram aqueles - jovens, estudantes do ensino superior, a frequentar cursos de humanidades - que deveriam ter discernimento para perceber que a grande literatura é a que incomoda as mais robustas sensibilidades, que manifestavam desenvoltura junto das autoridades académicas para se verem livres dela.

Agora são estudantes de uma universidade londrina - School of Oriental and African StudiesSOASque reclamam a retirada de filósofos ocidentais do currículo por... serem brancos! Platão, Descartes e Kant estão no centro da "polémica".

Eis a síntese de depoimentos que li em jornais online (por exemplo, aqui aqui).

A posição desses estudantes é basicamente a seguinte:
A reclamação faz parte de uma ampla campanha para "descolonizar" a universidade: a maioria dos filósofos a estudar deve ser africana e asiática, os europeus devem ser invocados apenas se necessário e somente de um ponto de vista crítico, por exemplo, para "reconhecer o contexto colonial dos chamados filósofos do Iluminismo". 
A posição dos responsáveis universitários divide-se:
Uma posição é de compreensão. 
- Um argumento é que o debate e a discussão sobre o currículo é sempre importante, traduzindo uma dinâmica académica saudável. 
- Além disso, é preciso que as universidades compreendam o sentido do tempo, que é de captar estudantes, sobretudo internacionais, e de os preparar para o mercado de trabalho. É preciso dialogar com eles, perceber as suas necessidades e interesses de formação.
Outra posição é de denúncia.
- Um argumento é que as universidades estão a ser pressionadas pelo governo para agradar aos estudantes, para atender às suas exigências por mais irracionais que elas possam ser. Esta exigência é uma expressão disso mesmo. 
Na reforma do ensino superior em curso, o governo quer colocar a "satisfação dos estudantes" no centro do sistema de avaliação das universidades, o que já tem efeitos: estas começam a evitar tomar medidas que possam criar insatisfação generalizada. Os trabalhos e as classificações constituem talvez a manifestação mais notória, pois uma "maneira de manter os alunos "felizes" é pedir-lhes para fazerem um trabalho qualquer e dar-lhes uma classificação elevada. 
Neste cenário são os padrões e a integridade das academias que vão sendo minados, conduzindo a uma cultura "realmente perigosa" que pode impedi-las de defenderem a "liberdade de expressão". Está, pois, em causa tudo aquilo que a universidade representa.
Outro argumento é que essas exigências surgem da ignorância. No caso concreto, os "filósofos brancos" são autores de ideias que sustentam a sociedade civilizada. Não se pode aceitar descartar uma área de pensamento, que envolve tanto esforço intelectual sem a estudar e os alunos nunca a estudaram nem a querem estudar. "Há um perigo real no politicamente correcto, que está a ficar fora de controle. É preciso entender o mundo como ele é e não reescrever a história como alguns gostariam que ela tivesse sido".  
Uma terceira posição é de realismo (?).
Apesar de a reforma do ensino superior estar ainda em discussão e de, no plano legal, ela poder sofrer uma ou outra alteração pontual, a verdade é que o seu espírito já se entranhou no funcionamento institucional e, portanto, as autoridades universitárias acabarão por não "incomodar" os estudantes, procurando dar resposta aos seus pedidos e exigências: é melhor ceder, a ter de lutar ingloriamente contra... por aquilo que não se pode conseguir.

7 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

E o que diz sobre isto, Helena Damião?

Helena Damião disse...

Caro Leitor
Sou absolutamente contra a omissão/eliminação ou o destaque/introdução do currículo escolar de filósofos, cientistas, artistas, literatos, políticos, desportistas, matemáticos... por causa da sua cor da pele, origem étnica, raíz cultural, opção religiosa ou política, orientação sexual, tendência estética, meios económicos... ou outra qualquer característica que se queira destacar. A obra vale por si, as características do seu autor não são relevantes.
Cordialmente,
MHD

Carlos Ricardo Soares disse...

Obrigado.
Partilho da sua opinião e muito mais se poderia dizer acerca do ensino, estudo, formação, prevalecentemente estruturados por razões económicas, políticas, religiosas, ou outras que não o valor e relevância, num plano de universalidade/universidade.

Anónimo disse...

Cara Helena Damião, independentemente do que se pense das iniciativas que relata, dizer- que “A obra vale por si, as características do seu autor não são relevantes” é uma frase oca, com todo o respeito. Desde logo, porque é sabido que “cor da pele, origem étnica, raíz cultural, opção religiosa ou política, orientação sexual, tendência estética, meios económicos”, condicionou, desde sempre, não só o reconhecimento e a recepção como a própria produção científica e cultural.
Deixe-me também dizer-lhe, já que estamos a falar de ensino, que “autores de ideias que sustentam a sociedade civilizada” é fórmula que nunca ouvi de nenhum professor. Não é que não o pudessem pensar, obviamente, mas acho que simplesmente diferenciavam a catequese do ensino das ideias. Fossem eles de esquerda ou de direita, adeptos do Chomsky ou do Popper.
António

Helena Damião disse...

Caro Leitor Anónimo
Condicionou sim. É um facto. Infelizmente.
Reconhecer isso não legitima, porém, que se continue (ou reforce) esse condicionamento ainda que o sentido seja diferente.
MHD

Anónimo disse...

Sim, tem razão. Só queria deixar claro que, na minha opinião, a sociedade teria sido bem mais "civilizada" sem esses condicionamentos. Não vejo por isso particular mérito no que já existe no ensino das humanidades. Quanto a proibições, sou contra, obviamente, desde que nunca se perca de vista que já vivemos num mundo de condicionamentos culturais invisíveis, esses que ambos reconhecemos.
Lembrei-me entretanto que, quando era criança em Angola, os nossos livros de leitura na escola tinham imagens do natal à lareira ;). Tem isto alguma coisa a ver com o que estamos a falar? Talvez ;)

Helena Damião disse...

Prezado Leitor
Não podemos mudar o passado, nem devemos mistificá-lo. Podemos pensar nele e retirar ilações para o presente e para o futuro. Isto se formos capazes.
Há que tornar visíveis os condicionalismos o invisíveis.
MHD

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