quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Jesuítas portugueses no Japão

Dada a estreia do filme "Silêncio", sobre a saga de missionários portugueses no Japão, antecipo de uns dias o meu artigo na revista cultural nortenha "As Artes entre as Letras", na qual colaboro desde o primeiro número. Refiro duas histórias pouco conhecidas, uma a de Bernardo de Kagoshima, o primeiro japonês a vir à Europa e que está sepultado em Coimbra, e outra a obra científica do padre Cristóvão Ferreira, de Torres Vedras, que é um dos apóstatas do filme:


O recente filme de Martin Scorsese  “Silêncio”, baseado no romance do japonês  Shusaku Endo (1923-1996) com o mesmo título (de 1965, existe reedição recente de tradução portuguesa na Dom Quixote), chamou a atenção para o papel que os Jesuítas, portugueses ou estrangeiros que passaram por Portugal, tiveram no Japão nos séculos XVI e XVII.

Os primeiros ocidentais a chegar às terras do Sol Nascente foram comerciantes portugueses em 1542-1543, mas os Jesuítas demoraram poucos anos a aparecer nessas paragens, cumprindo o seu propósito de evangelização.

O jesuíta basco S. Francisco Xavier (1506-1552) pertenceu ao primeiro grupo missionário que desembarcou em 1549. Os jesuítas eram então uma ordem muito recente: Xavier tinha integrado o grupo fundador, reunido em Paris em 1534 por Santo Inácio de Loyola (1491-1556).

A Ordem recebeu a confirmação papal em 1540 e, nesse mesmo ano, Xavier e o seu companheiro português Simão Rodrigues (1510-1579), também do grupo fundador, chegaram a Lisboa, tendo o basco embarcado para o Oriente em 1541 e o português viajado até Coimbra, instalando a Companhia de Jesus na cidade universitária.

Foi em 1542 que os  inacianos fundaram  em Coimbra o Colégio de Jesus, que, com o Colégio de S. Antão o Velho, em Lisboa, constituem os colégios mais antigos de todo a vasta rede de escolas jesuítas espalhadas pelo mundo. Os Jesuítas tinham chegado a Portugal a convite do rei D. João III, que foi o primeiro monarca europeu a conceder protecção à nova ordem. Portugal haveria de ser “rampa de lançamento” da Ordem para o mundo. Só do porto de Lisboa se podia chegar da Europa até ao Brasil, à Malaca, à China e ao Japão. Xavier peregrinou onze anos por terras do Oriente, tendo estado na Índia, na China e no Japão, para vir a falecer na China.

Os Jesuítas foram, numa primeira fase, muito bem sucedidos no Japão. Conseguiram aí bastante mais conversões, totalizando cerca de 300.000 almas no auge da cristianização, do que na China. A diferença política, para além de outras culturais, é que no Japão os ocidentais encontraram uma pluralidade de senhores guerreiros, cada um com o seu domínio, ao passo que a China estava dominada pelo imperador em Pequim. Só no início do século XVII, e num movimento bélico ajudado pelas armas de fogo que os europeus tinham introduzido no Japão, se deu a unificação dos vários domínios, afirmando-se um poder central no arquipélago. Essa unificação revelou-se fatal para as pretensões dos evangelizadores, uma vez que os cristãos passaram a ser perseguidos de um modo muitas vezes cruel. Chegou a ser dada ordem de morte a qualquer cristão que fosse encontrado, o que por vezes só acontecia ao fim de prolongada tortura. Ficaram famosos os 26 mártires de Nagasaki, que morreram crucificados em 1597, a maioria franciscanos mas dos quais três eram jesuítas, japoneses conversos que tinham feito votos na Ordem.

Mas antes desse declínio do Cristianismo que culminaria num longo período (cerca de dois séculos) de isolamento do Japão um rico intercâmbio cultural, protagonizado pelos jesuítas e outros missionários, entre o Ocidente e o Oriente. O jesuíta italiano Alessandro Valignano (1539-1606), que foi Visitador das missões do Oriente, defendeu o princípio da "acomodação", que se traduzia na tomada dos costumes orientais, um processo que também deu frutos na Índia (com o padre italiano Robert De Nobili, 1577-1656) e na China (com o padre também italiano Matteo Ricci, 1552-1610).

Foram os missionários portugueses ou estrangeiros que passaram por Portugal que introduziram no Japão, para além de uma cosmovisão do mundo (o aristotelismo, moldado ao cristianismo por S. Tomás de Aquino), instrumentos científicos como os telescópios e os relógios mecânicos e técnicas de medicina. Um dos padres jesuítas que mais se distinguiu nessa troca científica foi Luís de Almeida (1525-1583), que fundou o primeiro hospital ocidental no Japão, na cidade de Oita, antiga Funai (o hospital local tem hoje o seu nome).

Em 1551, S. Francisco Xavier trouxe de Kagoshima, cidade portuária japonesa, para Goa um nativo nipónico, que foi baptizado com o nome de Bernardo, que se tornou em 1553 o primeiro japonês a desembarcar na Europa. Bernardo de Kagoshima (1534-1557), como ficou conhecido, tornou-se noviço da Companhia. Viveu no Colégio de Jesus em Coimbra antes de ser enviado em 1554 para Roma, onde se encontrou com Santo Inácio, o fundador e Superior Geral da Ordem. Regressado a Coimbra acabou por falecer em idade relativamente jovem. Consta que está sepultado na Igreja do Convento de Jesus, a Sé Nova, actual igreja diocesana de Coimbra, repousando o seu corpo na Capela de Santo Inácio de Loyola, do lado esquerdo da nave. Não são muitos os japoneses cristãos, mas alguns vão aparecendo na Sé de Coimbra para orar diante dessa sepultura.

O filme de Scorsese, baseado em factos reais, passa-se muito depois, uns anos antes de 1640, o ano da restauração da independência portuguesa, numa altura em que os cristãos, que não tivessem apostatado, continuavam a ser vítimas de ferozes perseguições. Um dos mais famosos - e uma figura central do filme - é o padre jesuíta Cristóvão Ferreira (c. 1580-1650), que, sob a tortura da suspensão na fossa, abandonou a fé cristã, tomando o nome de Sawano Chuan, para aderir à religião e aos modos de vida japoneses (inclusivamente casando e adoptando filhos de uma japonesa). Ferreira, para além dos escritos que deixou contra a fé católica após a sua apostasia, deixou também vários escritos de carácter científico, que abrangiam desde a astronomia e a cosmologia até à medicina.

É ele o tradutor de “Exposição sobre os Céus e a Terra” e o provável autor de um tratado intitulado “Cirurgia dos Bárbaros do Sul” (“Bárbaros do Sul” ou “Nanban” era o nome que os japoneses davam aos europeus e também é hoje o nome de um estilo de arte oriental presente em biombos). Também Ferreira foi, à sua maneira, um intermediário de culturas, ao divulgar no Japão os conhecimentos europeus sobre o mundo e a Natureza. Consta que morreu sob tortura, de novo cristão, mas não há a certeza.

(está errado o local da morte, que foi em Coimbra)


Sobre Cristóvão Ferreira (wiki em inglês por a ficha ser mais completa do que em português)


1 comentário:

Anónimo disse...

E a sepultura em Coimbra ainda existe? Era engraçado saber a data exata de morte e.. já agora... um sítio em coimbra onde ir em visitas de cinema ou de japoneses... muito interessante. Adriano Silva (BPMP)

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