terça-feira, 16 de junho de 2015
IDENTIDADES, VALORES, IDENTIDADE. O PENSAMENTO DE ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA
Em primeira mão, início da Introdução (sem notas) do livro de João Maurício Brás sobre o filósofo português Onésimo Teotónio Almeida, que está quase a sair na Gradiva. Recomendo o livro todo!
Onésimo Teotónio Almeida (O.T.A.) nasceu no Pico da Pedra, Açores, em 1946, é professor catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, Providence, Rhode Island (R.I.), onde se doutorou em Filosofia. Conhecido como escritor, conferencista e viajante incansável, é principalmente um filósofo e um pensador.
A sua obra, composta por dezenas de livros, artigos científicos, intervenções académicas e públicas, nacionais e internacionais, constitui um caso ímpar no panorama cultural português. Trata se de uma figura incontornável, e até improvável, dos séculos xx e xxi no pensamento filosófico nacional, na literatura e nos estudos culturais. E, contudo, a recepção e o estudo da sua obra são ainda insuficientes, talvez porque o autor reside há décadas nos Estados Unidos da América.
Este texto assumiu inicialmente a forma de um trabalho académico guiado por uma motivação duplamente filosófica: o espanto perante um pensamento peculiar e fundamental e a necessidade e o dever de contribuir para a sua divulgação. Pesados os prós e os contras do que seria uma resenha da sua obra, optou se por um registo mais livre, expurgado do jargão usual mas preservando todo o detalhe da informação que se quer transmitir.
Mais do que realizar uma análise crítica ou comparatista, optou se pela exposição dos temas e dos problemas cruciais das suas reflexões. Num primeiro contacto com uma obra interessa, de facto, conhecê la, fazer a sua recepção, identificar as suas linhas mestras, desvendar as posições assumidas pelo autor e a forma como as fundamenta. Estabelecido esse momento inaugural e necessário, estarão criadas as condições para o debate subsequente.
Convém sublinhar desde já que o carácter por vezes disperso do seu universo temático, principalmente nos seus ensaios, é apenas aparente, pois a sua obra constitui uma unidade, um conjunto uniforme de temas, teses e posições. Se o cronista é mais bem conhecido, particularmente em Portugal, é o pensador e filósofo que importa estudar. Para nós, a filosofia constitui a parte substancial e mais importante da sua obra, e a vertente ensaística é aquela onde está presente o seu pensamento de um modo que não encontramos na sua dimensão literária, que, reconheça se, tem também o seu lugar e importância.
O.T.A. é um pensador actual mas entroncado na definição antiga de filósofo, pela atitude, pelo universo dos seus interesses, embora a sua metodologia e o seu treino tenham afinidades particulares com a tradição analítica anglo americana. História das ideias, história da ciência, epistemologia, antropologia, ética, história e cultura, ciências sociais, entrecruzam se no corpus de um pensamento que aborda temas como os da identidade, dos valores, das mundividências, da modernidade e da pós modernidade, da ciência moderna, da cultura e do pensamento português, ou particulares, como, a título de exemplo, o da faceta filosófica do pensamento de Fernando Pessoa. Esse corpus constitui um percurso praticamente único no panorama dos pensadores portugueses.
O termo «filosófico» poderá parecer demasiado genérico para alguém que dialoga em permanência com a história, a sociologia, a literatura e as ciências duras, mas permite distinguir a relevância de um pensamento caracterizado pelo ensaísmo filosófico. Os seus trabalhos literários são trabalhos sobre ideias; a sua obra literária está informada por preocupações e teses filosóficas. «A crónica é o ensaio em mangas de camisa», como aliás ele próprio afirma.
Não podemos contudo falar da sua obra sem referir essa dimensão literária. Designamos por literatura as crónicas, a ficção, as diacrónicas, os prosemas, as peças de teatro, os contos (ou «estórias», como prefere o autor), num registo que não se submete a qualquer código ou moda literária e que se filia numa tradição antiga, que tem na acção e na inteligência de olhar as coisas o significante e o significado. A literatura tem então, também, um papel determinante, estabelecendo pontes entre domínios mentais e geográficos, entre a experiência do autor e as suas ideias. A sua faceta literária, na sua maior parte, manifesta se, pelo menos inicialmente, na participação em revistas e jornais, tais como: O Jornal, Jornal de Letras, Visão, Diário de Notícias, Colóquio Letras, Ler, Grande Reportagem e Correio do Norte e Ilhas, e numa vasta publicação em formato livro. Ela apresenta imediatamente dois dados: a singularidade do autor e um olhar pessoal, mas que alcança uma universalidade nos seus conteúdos. Não se trata de confissões, mas de visões pessoais do quotidiano, do mundo e da vida dos seres humanos. A escrita criativa tem assim um lugar de relevo, mas nunca está separada da vida (subordina se a esta) e do pensar sobre a mesma. A importância de contar, de descrever e compreender justifica se no viver — viver que é também viver para contar, glosando uma obra de Gabriel García Márquez, mas conta se também para viver. Esta é uma verdade intrínseca ao escritor.
Quanto à crónica, o género mais comum na sua produção literária, é uma continuação dos ensaios e um modo de superar o destino destes: o esquecimento em actas de congressos e revistas científicas sepultadas em bibliotecas — «A escrita criativa não muda de temas. Abordo os apenas de forma diferente.»
A transição e a tradução entre universos culturais diferentes (Açores, Portugal e Estados Unidos da América) são uma prática que o caracteriza. Este dado constitui uma matriz onde encontramos a génese dos temas do seu pensamento, por exemplo, o seu interesse pela questão das ideologias e do tema nuclear das mundividências (da qual a ideologia será apenas um aspecto). O trabalho permanente de traduzir um universo cultural para outro conduz também ao aprofundamento das questões sobre a cultura portuguesa e a língua, desde uma revisitação de questões clássicas a novas problematizações. Destaca se o tema da decadência, revisto como declínio da cultura portuguesa, do atraso em relação às culturas do Norte e Centro da Europa, da importância do conceito de futuro como fundamental para o entendimento da questão da identidade, do questionamento dos falsos pressupostos em que assentam muitos dos debates sobre a questão das identidades, da distinção do conceito de identidade nacional e identidade cultural e o tema unificador das visões do mundo. Realçamos também os estudos sobre Antero de Quental e Max Weber e os ensaios sobre Fernando Pessoa. A filosofia portuguesa passa também pelo seu crivo e é determinante a questão da expansão portuguesa e da ciência moderna, a importância da experiência e o papel de Portugal nos primórdios da modernidade.
A Questão Açoriana, a sua literatura, cultura e relações com o mundo constituem um capítulo matricial do seu pensamento. Sendo O.T.A. açoriano, a reflexão inicial sobre as questões suscitadas por esse universo será ampliada nas suas principais teses. Outra dimensão matricial é a importância que atribui à tradução dos universos basilares da sua vida (Açores Portugal Estados Unidos da América) e pensamento. Refira se a divulgação de autores destaque, por exemplo, para a organização do primeiro Congresso Internacional de Literatura Açoriana, a criação de uma cadeira de Literatura Açoriana na Brown University, bem como a cátedra Vasco da Gama. A importância que atribui à literatura luso americana é uma extensão natural dos seus interesses na divulgação da cultura portuguesa no universo cultural inglês, que o levou a criar a editora Gávea Brown e a revista bilingue de letras e estudos luso americanos Gávea Brown (1980) para a divulgação da experiência portuguesa (ficção e estudos) na América do Norte (EUA e Canadá). Foi também co-responsável pela criação (primeiro como centro, fundado em 1975) do Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros na Brown University.
O.T.A. começou o seu percurso filosófico com uma investigação detalhada sobre o conceito de ideologia, que se inserirá no tema principal do seu pensamento, as mundividências: «Diria mesmo que a maior parte da minha escrita reflecte preocupações de base com o problema das mundividências, no seu aspecto mais geral, e com a problemática dos valores e da ideologia (tecnicamente, a axiologia nas suas vertentes epistemológica e ética)».
O conceito de ideologia — porque o autor reconhece ser impossível viver sem ideologias — é submetido a uma análise que reflecte a estrutura do seu pensamento em dois grandes núcleos: a epistemologia e a ética.
Esses dois grandes núcleos são utilizados como chaves de análise no campo mais geral das mundividências (particularmente a visão moderna do mundo), a sua formação, o seu funcionamento e os problemas daí advindos; estão presentes em temas principais do seu pensamento como o projecto da modernidade e a questão da pós modernidade, a relação entre filosofia, sociedade e ciência, a relação entre ciência e filosofia, a história das ideias, a ciência e os Descobrimentos, a análise das consequências do relativismo cultural e ético e as causas do atraso português.
O conceito de mundividência, a sua importância e sua operacionalidade, deve se à função panóptica no plano dos modos de estar (pensar, agir, sentir), constituindo o ponto de observação central que permite a visão e a compreensão de todo o espaço circundante.
Neste caso, as suas principais linhas de investigação, a saber: a nossa actuação, práticas e escolhas que fazemos (valores), a imagem que temos de como devemos ser e agir (ética), a imagem do que somos e de como devemos agir politicamente (a ideologia é ético política). São estas linhas que circunscrevem a própria noção de mundividência: «Visão global do Universo e do lugar que o indivíduo ocupa nele». Essa visão compreende se a partir da concepção que O.T.A. tem de si e depois amplia se como compreensão do nosso lugar no universo, das imagens que temos e construímos; afirma se como um percurso de auto reflexão a partir de si e do mundo que o rodeia, passando a uma construção teórica (filosofia, ciências sociais e estudos da cultura) problematizadora do entendimento do mundo, procurando se informada pelas ciências. Os ensaios fornecem nos esse suporte teórico; na crónica e na ficção encontramos a descrição prática que os exemplifica.
No plano epistemológico e metodológico importa lhe remover os obstáculos e os preconceitos, os discursos equívocos e os maus usos, além do que é a contaminação ideológica, afirmando um primado empírico racional, lógico e científico. No plano ético importa lhe saber como agimos e podemos agir do melhor modo, onde a questão da verdade já não se coloca (pelo menos da mesma maneira) mas antes a doo justo e do injusto, do bom e do mau. Se a evidência empírica é fundamental, a racionalidade e a ética são para ele dois traços humanos distintivos — assim como a articulação entre liberdade e justiça; devidamente justificados e esclarecidos, são demonstrações privilegiadas do universo humano. Neste ponto, John Rawls é para o autor influência determinante.
No seu pensamento filosófico caracterizado como realismo pragmático e crítico, problematizador de base empírico racional, encontramos um sistema original que não é fechado e absoluto. Este sistema articula uma teoria ética, uma teoria da acção, uma epistemologia e uma antropologia. Nestes domínios é indistinta a componente prática e teórica do seu pensamento: por exemplo, na ética, se as acções, as escolhas e as decisões fornecem matéria à intelecção, o trabalho desta permite aplicações práticas.
É fundamental a influência de autores como David Hume, pela metodologia do pensar que fornece, e da teoria de John Rawls, onde encontra uma resposta adequada para a coexistência entre os seres humanos e as respectivas culturas e sociedades. «A história da ética tem sido uma longa caminhada de aperfeiçoamento dessa concepção que em John Rawls atingiu a mais elevada expressão teórica no século xx».
Miguel Real, em obra recente, refere que do cronista, ficcionista, filósofo e pensador da história e cultura portuguesa temos apenas várias faces de um só rosto. Trata se de uma visão acertada, pois a sua obra, a sua vida, as ideias e a experiência constituem uma unidade inseparável, como se verá.
Importa também desfazer rótulos fáceis, imediatos e exclusivos, como é o caso do cronista, homem conotado com o humor, escritor ligado às questões dos Açores e da literatura açoriana. Esses rótulos pertencem lhe, mas são redutores.
Um dos aspectos mais originais da sua obra é que no conto e na crónica há já a expressão privilegiada de um pensamento filosófico. Com efeito, uma parte considerável da sua produção literária e filosófica conhece previamente a forma de ensaio, conferência, artigo ou texto de jornal ou revista. Esta opção demonstra um pensamento que provém inicialmente de viver, intervir e testar as suas ideias nucleares. Se a problemática dos valores, da ética, das mundividências e da identidade cultural são centrais nas preocupações teóricas do autor, é nas crónicas e nas estórias que estas são expostas em experiências individualizadas. Todo o seu sistema de pensamento, porque de um sistema se trata, com temas nucleares, articulados, coerentes, e não contraditórios entre si, com uma metodologia de rigor, clareza e concisão, é inseparável, quer da experiência individual, quer da observação e do confronto prático. Não são muitos os casos contemporâneos em que o filósofo, o escritor e o homem não se distinguem. A acepção original de filósofo e homem da cultura, e não de mero funcionário, surge nos assim como traço decisivo."
(...)
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