Minha crónica no Público de hoje. A todos os meus leitores desejo Boas Festas e um ano melhor do que foi este.
O Pai Natal existe mesmo e, em Portugal, foi visto na sede da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) a embrulhar prendas. A grande questão é que este Pai Natal da FCT não é nem velhinho nem simpático. Sem experiência de vida e sem qualquer bonomia, em vez de recompensar de forma justa, distribui prendas só para alguns de um modo arbitrário. A magia dos duendes deste Pai Natal engendrou um processo chamado de “avaliação” das unidades de investigação nacionais, mas que se destina apenas a cobrir objectivos inconfessados.
A
ciência portuguesa está a atravessar uma crise sem precedentes. Os seus princípios
mais básicos estão a ser atropelados por um pequeno grupo que se apropriou da
máquina do Estado para satisfazer os seus interesses sectários. A sabedoria, o
rigor, a independência e a equidade no tratamento foram preteridas numa
avaliação rocambolesca perpetrada pela European Science Foundation (ESF), organização
actualmente sem credibilidade, às ordens da FCT, instituição cujos responsáveis
não parecem ter escrúpulos.
Em ciência, uma
experiência mal planeada e mal conduzida só pode originar maus resultados. Foi
precisamente o que aconteceu com a pseudo-avaliação da FCT/ESF. Um extenso rol
de incongruências, patentes desde o início, impedia a indispensável qualidade
do resultado final. Ao longo da “avaliação” ficaram nítidas, bem mescladas, a
incompetência e a má fé, pelo que o resultado só podia aquele que foi. Em
particular, o financiamento estratégico que alguns centros obtiveram é uma
prenda opaca, inexplicada e nalguns casos inexplicável. Tem todo o ar de
arbitrária, o que não admira dada a fragilidade do processo. Para acreditarmos
na sua justiça teremos mesmo que acreditar no Pai Natal. Não quer isto dizer
que muitos centros escolhidos pela FCT não mereçam um financiamento muito bom. Merecem,
com certeza. Mas não só o merecem, como merecem também um método isento e
transparente na sua atribuição.
Os resultados ora anunciados eram previstos por quem observou com atenção o que se passou. De facto, esta original experiência da FCT/ESF pouco tinha de científica. O seu fito era apenas o de contrair drasticamente o sistema científico português, abatendo metade das unidades logo à partida (havia uma quota não assumida de 50%), para depois alocar a maior fatia dos recursos disponíveis só a alguns, escolhidos a dedo. Que havia fins políticos por detrás da cortina da “avaliação” é revelado pelas elevadas somas atribuídas a uma minoria, que inclui todos os centros ligados aos actuais ocupantes do poder político (com a excepção do centro do próprio ministro, que receberá uns ridículos 5000 euros anuais, o que significa pura e simplesmente que Nuno Crato não volta para lá, tendo abandonado de vez a ciência). Dos 322 centros “avaliados” um grupo de 63 irá receber por ano 47 milhões de euros de um total de 71 milhões, isto é, 20% dos centros irão receber 66% do financiamento. E, sem surpresa, os dirigentes do sector, todos eles ligados à biomedicina, foram contemplados com generosos brindes no sapatinho. Inclusivamente, fundações privadas como a Gulbenkian e a Champalimaud serão beneficiadas com transferências do Orçamento do Estado. Lá fora as fundações financiam o sector público, aqui é o sector público que financia as fundações.
Reafirmo, agora com mais
provas, o que já escrevi. Noutra encarnação conheci Nuno Crato e nem nos meus
piores sonhos imaginei que ele pudesse permitir o desconchavo que hoje vemos.
Ele faz experimentalismo na educação e faz experimentalismo na ciência, sem dialogar
com a comunidade científica e sem atender ao bem comum. Ao permitir a
destruição do funcionamento basal do sistema científico, Crato acabou por minar
uma réstia de esperança que alguém ainda pudesse ter no seu bom senso. Os
reitores bem lhe escreveram, chamando “falhanço pleno” à experiência avaliativa
que ele, se não criou, pelo menos permitiu. Mas o ministro, numa atitude
autista, não os quis ouvir. Para lá das irregularidades processuais que
abundaram no simulacro de avaliação, sobre as quais os tribunais poderão ter de
decidir em última instância (entraram 131 reclamações na primeira fase, que
decorreu sem visitas de peritos, portanto à margem da lei), não foi bem medida
a produtividade científica. Muitos "avaliadores" não eram sequer
especialistas nas áreas que estavam a examinar, em clara violação das normas e
com manifesto prejuízo do rigor. Não houve, portanto, avaliação por pares, mas
sim um aval dado por agentes sem suficiente competência a decisões
governamentais. E assim os investigadores nacionais perderam de vez a confiança
em quem nos governa.
A avaliação é um pilar de qualquer sistema científico. Os cientistas portugueses querem ser avaliados de uma forma séria, honesta e límpida. Fica aqui este desejo de Ano Novo. Será pedir muito?
3 comentários:
Mais um bom texto e oportuno. Sempre.
Bom Natal.
Augusto Küttner de Magalhães
Prof. Carlos Fiolhais:
Disse: «A ciência portuguesa está a atravessar uma crise sem precedentes. »
Esta frase não é rigorosa.
Nas décadas de 30 e 40 foram feitas várias purgas de cientistas, de que Aniceto Monteiro é, porventura, o caso mais emblemático.
Senhor Manuel Silva, certamente que o professor Carlos Fiolhais se refere ao período depois 25 de Abril.
Quero lhe no entanto dizer que não há um só caso que seja mais emblemático que todos os outros restantes. A purga dos professores e cientistas tratou-se sim de uma tragédia. Um drama a todos os níveis, cientifico mas também pessoal. E e só assim que deve ficar na historia, porque assim é que foi.
Nota:veja o vídeo abaixo.
http://www.rtp.pt/rtpmemoria/?article=1236&visual=2&tm=8&layout=5
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