sábado, 25 de outubro de 2014

Gaia ou Geia — a Terra, elemento primordial

Texto que nos foi enviado pela nossa leitora Isaltina Martins e que muito agradecemos.

(Lendo o texto “Um planeta rochoso”, do Prof. Galopim de Carvalho, 
aqui publicado no dia 18 de Outubro de 2014) 

Não percebo nada de pedras, confesso, daquelas que a Geologia estuda. Gosto, isso sim, da poesia que a natureza encerra, de pedras “bonitas”, mesmo não sendo das preciosas...

No entanto, aprecio a leitura dos textos do Prof. Galopim de Carvalho. Embrenho-me na procura, através da etimologia de cada vocábulo, do significado das coisas de que nos fala.

É o encanto da palavra, com todos os seus mistérios, as suas histórias, os seus laços de parentesco.

E recorro à cultura clássica, especificamente à língua e à cultura gregas, mergulhando na descoberta desse sentido profundo que a génese do vocábulo encerra.

Posso não conseguir entrar no mundo de conhecimentos que a Geologia produz, mas o étimo da palavra leva-me mais longe, conta-me histórias prístinas, conduz-me aos arcanos da civilização, ao mito longínquo do começo do mundo.

Geia (ou Gaia) é a Terra, o elemento primordial. Dela descendem todas as raças divinas.

Na Teogonia de Hesíodo, Geia terá sido a segunda a nascer, depois de Caos e antes de Eros, o Amor. A sua força, a sua energia estão bem patentes quando, sozinha, sem intervenção do elemento masculino, ela concebe Úrano, o Céu, e concebe ainda as Montanhas rochosas e perfumadas, e Ponto, o elemento marítimo, o mar com a sua beleza, a sua força, o seu mistério.

Primeiro que tudo houve o Caos, e depois
a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe,
e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,
que amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses,
domina o espírito e a vontade esclarecida.
...
A Terra gerou primeiro o Céu constelado,
com o seu tamanho, para que a cobrisse por todo
e fosse para sempre a mansão segura dos deuses bem-aventurados.
Gerou ainda as altas Montanhas, morada aprazível
das deusas Ninfas, que habitam os montes cercados de vales.

Hesíodo, Teogonia (trad. de M.H.da Rocha Pereira, in Hélade, Antologia da Cultura Grega)

Depois, a união de Geia com Úrano (ouranos: céu) — a Terra e o Céu — , dá origem aos seis Titãs, divindades masculinas e às seis Titânides, as divindades femininas. Dessa mesma união do Céu com a Terra nasceram os Ciclopes, divindades relacionadas com o raio, com os relâmpagos, com o trovão e também os seres da violência, sepultados nas profundezas da Terra, sua mãe, pois Úrano era um tirano cruel, que mais tarde vai ser castigado pelo próprio filho.

E é assim, da genealogia de Geia que vão surgindo os Gigantes, as ninfas dos bosques, as divindades marinhas. Geia é, portanto, a Terra-mãe, a divindade primeira, a criadora. É a deusa da fecundidade, a dona dos segredos do Destino.

Deste modo, os vocábulos estranhos, para um leigo em Geologia, começam a fazer sentido. Tal como há vários anos, vendo um concurso televisivo, quando, perante o olhar incrédulo do apresentador, o concorrente disse que tinha a profissão de “técnico de tanatologia”. Nunca tinha ouvido o nome de tal profissão, mas imediatamente percebi qual era o seu ramo de actividade.

E é assim com a Geologia, o estudo da Terra, da Terra-mãe “o planeta rochoso” ou telúrico. Tellus era para os romanos a personificação da Terra, a Terra Mater correspondente à deusa grega Geia.

E este “planeta rochoso”, possui rochas que em milénios, milhões de anos, vão adquirindo características próprias, “aflorando, por vezes incluídas em ofiolitos”, serpentinizados e outras “incluídas em lavas próprias dessas profundidades”, os xenólitos.

Ora, todos estes vocábulos falam a língua de Homero. A ela, à língua grega, recorreu o cientista, quando quis dar nome a todas as suas descobertas, quando quis identificar o seu objecto de estudo.

Ofiolitos — nome compostos de ofis (opfis), que significa cobra/serpente e litos, pedra: é, portanto, uma pedra com a forma de uma serpente.

Da mesma raiz de ofis, temos as palavras portuguesas: ofídio (de ofis “serpente” + eidos “forma”), ofióide, ofiófago ( ofis + fagos — do verbo grego que significa “comer”), “o que se alimenta de serpentes”, ofiolatria “culto das serpentes”...

Xenólitos — a definição da palavra diz que essas rochas vêm “incluídas em lavas”, quer dizer, são seres estranhos que ali se incrustaram.
xenos é a palavra grega que significa “estranho”, “estrangeiro” e que aparece em vocábulos como xenofobia, xenografia, xenofonia...
litos, palavra grega que significa “pedra” aparece noutros compostos portugueses como: litogénese, litosfera, litografia, megalítico ...

Há, ainda, as rochas vulcânicas, os lamproítos, certamente assim chamadas por causa do seu brilho, visto que lampros é o adjectivo grego que significa “brilhante”.

Não esquecer também, no mesmo texto do Prof. Galopim de Carvalho, as piroxenas, que podem ser encontradas em lavas vulcânicas, onde o primeiro elemento grego pyros, nos remete para “fogo” e o segundo xenos para “estranho”.
pyros entra na composição de palavras como pirosfera, pirotecnia, pirótico, pirogravura, antipirético... 

E se juntarmos pyros com lampo (verbo da mesma raiz do adjectivo lampros), temos o pirilampo, que é “brilhante como o fogo”.

E assim se estabelece a ponte entre a ciência e a linguística, as ciências humanas em estreita ligação com as ciências exactas.

É o Verbo, a Palavra, o Lógos como início e como fim. A união do humano e do divino, o mito e a realidade, sempre unidos, não se negando, mas completando-se. E isso faz a poesia da Vida.

Isaltina Martins
24 de Outubro de 2014

1 comentário:

Anónimo disse...

Ao contrário de vaidosos, outros, a escrita e a leitura de Galopim e de Isaltina dão sempre prazer e conhecimento.
Não praticam o auto-elogio e nem a citação a granel. São muito bons,
simples.

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