Três ratos foram
encontrados mortos, supostamente por envenenamento acidental, e um
outro sobreviveu a uma tentativa de suicídio, há um tempo
indeterminado, mas que se pode situar como anterior a 1935. A possibilidade de acesso aos restos mortais e aos supostos meios
envolvidos nos acontecimentos é remota. Não há também informação
suficiente para localizar a mercearia onde tudo teria ocorrido. Só
nos resta um texto em forma de poema, no qual o poeta Fernando
Pessoa, com alguma graça, mas sem grande rigor científico-forense,
teceu algumas hipóteses e conjecturas, de certa forma tendenciosas, que procuraremos analisar, com
o objectivo de encerrar o caso.
Os ratos
Viviam sempre
contentes,
No seu buraco
metidos,
Quatro ratinhos
valentes,
Quatro ratos
destemidos,
Despertaram certo
dia
Com vontade de
comer,
E logo à
mercearia
Dirigiram-se a
correr.
O primeiro mais
ladino,
A uma salsicha
saltou,
E um bocado
pequenino
Dessa salsicha
papou.
Eu choro do rato
a sina,
Que a tal
salsicha matou,
Por causa da
anilina
Com que alguém a
colorou.
Confunde-se
usualmente a anilina, que é um composto tóxico, com os corantes que
são obtidos a partir desta molécula. Esses compostos sintéticos,
em geral da família dos corantes azo, não são tóxicos nas quantidades usadas nos alimentos, sendo exemplos destes a
tartarazina (E102, amarelo) e o amaranto (E123, vermelho). Este
último pode ter sido usado na salsicha para lhes dar uma cor mais
vermelha, mas o próprio tratamento das carnes com nitrito e nitrato
já lhes dá alguma cor característica. Modernamente, usam-se também
corantes como a hemoglobina e a mioglobina. Em qualquer dos casos,
nenhum destes aditivos é venenoso. A morte do rato poderia, assim,
ser devida ao uso criminoso de um corante tóxico como o mínio, um
óxido de chumbo, ou o vermelhão, sulfureto de mercúrio, entre
vários outros possíveis, mas em princípio não seria um corante da
família das anilinas. Uma hipótese, mais provável para a
morte do rato, poderá ser a intoxicação com a toxina do botulismo
ou com salmonelas, em ambos os casos por deficiente conservação ou
preparação da salsicha. Actualmente, os excessos nos aditivos, a
falsificação, ou a contaminação biológica, poderiam ser
detectados em análises de rotina. Em conclusão: provavelmente a
acusação ao corante foi precipitada, sendo mais certa outra causa
para o envenenamento.
O segundo,
coitadinho,
À farinha se
deitou,
E comeu um
bocadinho,
Um bocadinho
bastou.
Após comer a
farinha
Teve ele a mesma
sorte,
Pois o alúmen
que ela tinha
Conduziu-o assim
à morte.
O alúmen é um
sulfato de alumínio e potássio com muitos usos tradicionais. Um
destes, conhecido desde há vários séculos, era como aditivo da
farinha, para facilitar a preparação do pão, funcionando talvez
também como conservante. Actualmente, pode ainda aparecer em
preparações de farinhas auto-levedantes (não consegui verificar).
Não é, com certeza, um sal venenoso em pequenas quantidades (um
bocadinho bastou), embora recentemente tenha havido alguma
preocupação com a presença do alumínio, quando este foi
injustamente associado à doença de Alzheimer. Para causar a morte
do rato, ou o alúmen estaria numa quantidade inaceitável e
facilmente detectável, ou ocorreu um erro relativamente comum até
há alguns séculos: trocar o saco da farinha com o do óxido de
arsénio (conhecido como arsénico) já que são ambos pós brancos!
De novo a acusação é infundada, continuando desconhecida a razão
do óbito.
O terceiro, pra
seu mal,
Gotas de leite
sorveu,
Mas o leite tinha
cal;
Foi por isso que
ele morreu.
A adição de cal ao
leite numa quantidade que fosse perigosa é uma falsificação
desconhecida pois o leite ficaria irremediavelmente alterado,
provavelmente precipitando. São conhecidas várias falsificações
do leite, algumas relativamente perigosas, mas, actualmente, este é
um dos alimentos mais controlados, tanto em termos químicos como
biológicos e isso seria imediatamente detectado. Em tempos idos, o
leite não pasteurizado e não analisado poderia transportar doenças
como a brucelose ou o carbúnculo, ter toxinas contaminantes como
aquela que matou a mãe de Lincoln nos Estados Unidos, ou ainda
sofrer adulterações químicas com dicromato, hipoclorito, água
oxigenada ou bicarbonato, para ajudar à sua conservação. Não
hoje: como referido anteriormente, todas estas possibilidades são
analisadas de forma rotineira e, destas últimas, só o dicromato
poderia oferecer algum perigo. Assim, conclui-se que a possibilidade
do óbito ter sido causado pela cal no leite é muito remota.
O quarto,
desmiolado,
A negra morte
buscou,
E julgou tê-la
encontrado,
Quando veneno
encontrou.
E sorvendo
sublimando,
Enquanto este
gastava,
(Agora invejo-lhe
o fado)
O feliz rato
engordava.
É só cá neste
terreno,
Que caso assim é
passado-
Até o próprio
veneno
Já fora
falsificado!
Sublimado é
o nome pelo qual era conhecido em Portugal o sublimado corrosivo,
cujo nome moderno é cloreto de mercúrio II. Este composto é muito
tóxico e foi usado como medicamento para infecções, em particular
para a sífilis, numa altura em que não existiam antibióticos.
Claramente, estamos na presença de uma falsificação também
indeterminada. O rato não poderia engordar com a ingestão de
cloreto de mercúrio, nem sobreviver às doses que estaria a tomar
para tentar o suicídio. Para além disso, este composto é corrosivo
e causaria queimaduras na garganta além de complicações físicas
generalizadas. Assim, ou se tratava de uma falsificação, ou de um
medicamento homeopático que de cloreto de mercúrio teria quase nada
e de açúcar tudo.
O poema é muito
interessante, mas a sua química forense é especulativa e na
generalidade incorrecta. Caso encerrado de forma inconclusiva.
4 comentários:
Artigo muito bom, muito interessante, aliás, como sempre Sérgio.
Obrigado! O meu filho mais novo leu-me o poema e eu não resisti a analisá-lo um pouco mais.
Parabéns pelo texto! Análise muito interessante.
Ao nível da poesia parece-me que este tipo de incorreções são admissíveis, o que me preocupa são as incorreções que surgem nos manuais e, por vezes, perpetuadas pelos professores no ensino das ciências. O ano passado deparei-me, no manual de Estudo do Meio de 1º ano do meu filho, com erros científicos relativos à flutuação.
Sílvia,
Obrigado pelos comentários. As incorrecções da poesia são não só admissíveis como, muitas vezes, desejáveis, porque nos interrogam (ponde de lado aquele "E logo à mercearia/ Dirigiram-se a correr" que me soa mal). Neste caso permitiram-me chegar, a brincar, à questão muito séria da segurança alimentar e dos preconceitos que existem sobre a química. A questão das incorrecções nos manuais e no ensino é uma tragicomédia que partilhamos com outros países. Ele são as abelhas ácidas, a água que sobe quando se apaga a vela porque se consumiu o oxigénio, os vidros que escorrem ao longo dos séculos, entre outras tolices que se perpetuam ano após ano sem que que ninguém pareça notar. Mas temos de notar: se está errado devemos, educada e fundamentadamente, dizer às editoras e professores. A ciência só avança com a correcção dos erros.
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