segunda-feira, 20 de maio de 2013

PREFÁCIO A “DOIS DEDOS DE CONVERSA SOBRE O DENTRO DAS COISAS”


Meu prefácio ao livro de Bruno Nobre e Pedro Lind, da nova editora Frente e Verso, que vai ser lançado amanhã, pelas 18h30m, na Livraria Férin, em Lisboa:

Bruno Nobre e Pedro Lind têm em comum o facto de pertencerem à mesma geração – a geração que tem hoje trinta e poucos anos – e de terem feiro um doutoramento em Física. E têm em comum o gosto pela troca de ideias e posições. Os dois apresentam-se, nas páginas deste livro, com atitudes opostas perante o divino: o primeiro, padre jesuíta, é evidentemente crente, ao passo que o segundo se declara convictamente ateu. A conversa entre eles anda à volta das relações entre ciência e religião, da realidade dos milagres e do lugar de Deus no mundo, da origem e destino do ser humano, dos valores e do sentido da vida, da fé e do seu proselitismo, do racionalismo e do relativismo. A forma é a epistolar. Os argumentos são esgrimidos pelos dois em prosa sábia, fluida e elegante. Ao contrário do que é costume nos debates entre nós, cada um escuta o outro com atenção e responde-lhe com honestidade. É um prazer, depois da agradável leitura, escrever um prefácio, na companhia inspiradora do Doutor João Lobo Antunes.

Nas suas primeiras cartas o Bruno e o Pedro interrogam-se sobre a compatibilidade entre ciência e religião. A respeito desta questão, o físico e teólogo Ian Barbour (com obras clássicas sobre o tema, que de resto o presente livro não se esquece de citar [1]) ensaiou uma tipologia que sistematiza as diversas posições. A primeira é a visão de incompatibilidade e conflito, defendida entre outros pelo físico Francis Crick, o descobridor da estrutura do ADN, e, mais modernamente, pelo biólogo Richard Dawkins, o polemista que apoiou a ideia dos autocarros britânicos com anúncios ateus. A segunda é a da compatibilidade entre ciência e religião por estas serem “magistérios distintos”. Esta é a tese defendida, entre outros, pelo teólogo protestante Karl Barth, e pelo biólogo Stephen Jay Gould: ciência e religião perseguem objectivos diferentes, usando meios diferentes, pelo que pouco terão a dizer uma à outra. A terceira é uma visão que, afirmando ainda a compatibilidade, vai mais longe, vendo na ciência e na religião uma certa margem de sobreposição: as duas podem, por isso, ganhar ao falar uma com a outra. Defendem uma posição desse tipo John Polkinghorne, que de professor de Física passou a padre anglicano vendo conexões entre a teoria do caos e a teologia natural, ou o físico Fritjof Capra, que descortina conexões entre a física moderna e religiões orientais. Por última, a quarta, e mais temerária, procura a integração ou conciliação completa das duas actividades humanas: neste caso a compatibilidade seria  total, assegurada pela convergência. Esta é a posição do naturalista  Edward O. Wilson, fundador da sociobiologia e defensor da ideia de “consiliência”, para quem a ciência acabará de certo modo por explicar a religião, ou, num plano bastante diverso, do paleontólogo e teólogo jesuíta Teilhard de Chardin, para quem o mundo é melhor descrito por um olhar sincrético. Onde se situam, neste quadro, os nossos interlocutores?

A virtude está no meio. Estão entre a segunda e a terceira, entre a independência e o diálogo. Os dois concordam que ciência e religião são independentes, não se podendo por isso confrontar como num jogo em que só um pode ganhar.. De facto, não surge neste livro um embate frontal entre ciência e religião. Tendo os dois autores formação e experiência científica, seria aliás difícil que algum deles permitisse que a ciência saísse ferida. A compatibilidade entre ciência e religião é aliás demonstrada pela existência de sacerdotes que fazem ciência. O Bruno não vê, na fé que professa e transmite, qualquer dificuldade em cultivar a física das partículas elementares, tal como o padre católico belga Georges Lemaître, um dos proponentes do modelo do Big Bang da origem do Universo, não considerava o seu exame do céu primordial uma procura de Deus. Foi ele que afirmou:

“O investigador cristão tem de dominar e aplicar com sagacidade a técnica apropriada para o seu problema. Os seus meios de investigação são os mesmos que os do seu colega não-crente... Num certo sentido, o investigador abstrai da sua fé na sua investigação. Ele faz isso não porque a sua fé lhe poderia causar dificuldades, mas sim porque ela não tem diretamente nada a ver com a sua actividade científica. Afinal, um cristão não age de forma diferente do que qualquer não-crente, quando se trata de  caminhar ou de correr." [2]

Está aqui bem expressa a ideia do “duplo magistério”. Esta separação de águas, possível dentro da mesma pessoa, pode ser remontada a Galileu, um homem de fé que não perdeu a fé diante do Tribunal da Inquisição, quando se viu no lugar de actor principal num drama que marcou a história das relações entre igreja e ciência, hoje já resolvido após o papa João Paulo II ter admitido um erro de juízo. Para Galileu, e como ele próprio escreveu numa carta à grã-duquesa Cristina de Lorena citando o cardeal Baronius, bibliotecário do Vaticano, “a intenção do Espírito Santo é  ensinar-nos como ir para o céu e não como o céu se move” [4]. Um outro cardeal italiano, este moderno, Gianfranco Ravasi, que preside à Congregação da Cultura, considera que esta frase, mais do que digna de um cientista, é digna de um teólogo. No seu livro Breve História da Alma, numa secção significativamente intitulada “Tinha razão Galileu, o teólogo”, escreve: “Tinha razão Galileu – que, neste caso, se revelava melhor teólogo do que os seus opositores teólogos”. [4]

Por outro lado, os dois autores deste livro abordam, na sua discussão, algumas questões sensíveis na zona de contacto entre ciência e religião, às quais respondem com a sua mundividência  individual.. Percebe-se que há, ou pode haver, algum interacção entre ciência e religião. Ravasi, depois de apontar a independência entre ciência e religião, observa que há elementos que a ciência e a religião partilham: “Como aconteceu também no debate sobre a evolução, a tentação do derrube das fronteiras é sempre forte, até porque é idêntico o objecto examinado pela ciência e pela teologia ou filosofia, quer dizer, o homem.”  Tem razão, Ravasi, o teólogo. Tanto a ciência como a religião são pertença do humano, constituindo-se como dimensões diferentes do mesmo ser. É tão humano querer conhecer o mundo como aspirar ao outro mundo. E só se pode compreender o homem quando se olha para tudo aquilo que ele faz. É o facto de ciência e religião terem por origem e destinatário o ser humano que permite que as duas coloquem por vezes questões semelhantes ou mesmo idênticas, embora lhes respondam de modos diferentes, dadas as diferenças não só dos seus objectivos mas também da sua metodologia.

O diálogo entre crentes e ateus vai, claro, muito além das relações entre ciência e religião. Tal acontece quando está em causa o modo diferente de olhar a vida por pessoas que receberam o dom, ou graça, de acreditar no transcendente, quer dizer, a fé, e por outras que não o receberam. O que é a fé? Santo Agostinho disse que “fé é acreditar naquilo que não se vê; a recompensa é ver aquilo em que se acredita”.  Há decerto um hiato, um salto, entre a crença e a não crença. Pode-se tê-la ou não tê-la. Pode-se ganhá-la ou perdê-la. Mas será que só esse dom ou graça pode dar sentido à vida? Será que os valores individuais e sociais, a ética, têm de radicar apenas na religião? É óbvio, e fica mais óbvio após ler uma carta do Pedro, que não. É possível uma ética que não entronque na ideia de Deus. Ninguém poderá dizer que, por exemplo, o físico Albert Einstein, que não acreditava em Deus (pelo menos no Deus pessoal do Antigo Testamento, acreditando antes numa religiosidade cósmica à moda de Espinosa), não tivesse um sentido da existência humana extremamente impregnado de ética. Mas foi ele que afirmou, numa linha seguida aqui pelo Pedro, que a ética era um assunto puramente humano:

“Eu não acredito na imortalidade do indivíduo, e considero a ética como uma questão exclusivamente humana sem qualquer autoridade sobrehumana por trás." [5]

Foi Einstein que o disse, mas o mesmo poderia ter sido dito por alguém sem formação científica. Tal posição nada tem a ver com a ciência de Einstein.

O diálogo entre crentes e não crentes tem sido cultivado nos últimos tempos pela Igreja Católica. O papa emérito Bento XVI ainda só era cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, quando, num diálogo público no ano 2000, em Roma, com o filósofo ateu Paolo Flores d’Arcais sobre se Existe Deus?, declarou que a “fé não deve impor-se com o poder – isso é um grande pecado e um grande erro – mas propor-se à evidência da razão e do coração”, ao que o seu interlocutor respondeu que ”é possível viver sem fé: a fé não é necessária para dar sentido à própria existência, pode conferir-se sentido à existência de muitas formas” [6].  Mais modernamente, o cardeal Ravasi tem organizado o chamado Pátio dos Gentios, um lugar de discussão com toda a gente fora do templo, numa alusão ao famoso sítio no exterior do templo de Salomão, em Jerusalém, destinado aos não judeus (num episódio dos Actos dos Apóstolos, S. Paulo é acusado de ter feito entrar um grego no templo). Esses encontros disseminaram-se, a partir de Itália, no mundo, tendo chegado a Portugal. Os livros que retratam esses debates [7] e a presente obra mostram como podem ser enriquecedores os diálogos desse tipo. Revelam-se afinidades que não eram à partida evidentes. Tanto um crente como um não crente podem acreditar (uma palavra a que nenhum deles nem quer nem pode renunciar!) que o mundo de amanhã pode ser melhor, pelo menos um bocadinho melhor. Esta é uma crença que conduz à acção, que preside à acção. Podemos, de facto, tornar o mundo de manhã melhor. Se esse esforço se chama redenção, a redenção é uma vontade comum de pessoas que pareciam estar em campos diametralmente opostos. E a acção pode ser comum.

NOTAS:

[1] Ian Barbour, Religion and Science: Historical and Contemporary Issues, New York HarperCollins, 1997, e  When Science Meets Religion, Enemies, strangers, or partners, ibid., 2000. Ver também Peter Harrison (ed.), The Cambridge Companion to Science and Religion, Cambridge: Cambridge University Press, Cambridge, 2010
[2] Odon Godart and Michał Heller, Cosmology of Lemaitre, Tucson: Pachart Publishing House, 1985.
[3] Carlos  Fiolhais, “Em busca de sentido: ciência e religião”, in Secretariado Diocesano de Evagelização e Catequese, Em Busca de um sentido: Ateísmo e crença na construção da pessoa que ama, Coimbra:  Gráfica de Coimbra 2, 2012
[4] Gianfranco Ravasi, Breve História da Alma, Lisboa: D. Quixote, 2011.
[5] Alice Calaprice (ed.), The Ultimate quotable Einstein, Princeton: Princeton University Press, 2011, with a Foreword by Freeman Dyson.
[6] Joseph Ratzinger e Paolo Flores d’Arcais: Existe Deuis? Um confronto sobre verdade, fé e ateísmo, Lisboa: Pedra Angular, 2009.
[7] Gianfranco Ravasi et al., O Átrio dos Gentios. Crentes e não-crentes perante o mundo e hoje, Lisboa: Edições Paulinas. 2012., e Lorenzo Fazzini, Diálogos no Pátio dos Gentios. Onde os Laicos e os Católicos se encontram, Braga: Diário do Minho, 2012.

3 comentários:

perhaps disse...

A argumentos tão bem esgrimidos não se acrescenta. Parabéns aos autores todos.

Banda in barbar disse...

e ainda há quem se dê ao luxo de imprimir livros para pôr em saldos
ou oferecer a quem se não goste

José Batista disse...

Entre nós, ouvi um dia o padre jesuíta e cientista (biólogo), Luís Archer, afirmar com alguma graça que, no laboratório, não se pode acreditar em milagres. Excepto naqueles que podem resultar do trabalho sério, persistente e bem feito, foi acrescentando.
As palavras não foram exactamente estas, mas foi este o sentido, com a plácida concordância dos que o ouviam.

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