Meu prefácio ao livro de Bruno Nobre e Pedro Lind, da nova editora Frente e Verso, que vai ser lançado amanhã, pelas 18h30m, na Livraria Férin, em Lisboa:
Bruno Nobre e Pedro Lind têm em comum o
facto de pertencerem à mesma geração – a geração que tem hoje trinta e poucos anos
– e de terem feiro um doutoramento em Física. E têm em comum o gosto pela troca
de ideias e posições. Os dois apresentam-se, nas páginas deste livro, com
atitudes opostas perante o divino: o primeiro, padre jesuíta, é evidentemente
crente, ao passo que o segundo se declara convictamente ateu. A conversa entre
eles anda à volta das relações entre ciência e religião, da realidade dos
milagres e do lugar de Deus no mundo, da origem e destino do ser humano, dos
valores e do sentido da vida, da fé e do seu proselitismo, do racionalismo e do
relativismo. A forma é a epistolar. Os argumentos são esgrimidos pelos dois em
prosa sábia, fluida e elegante. Ao contrário do que é costume nos debates entre
nós, cada um escuta o outro com atenção e responde-lhe com honestidade. É um
prazer, depois da agradável leitura, escrever um prefácio, na companhia inspiradora
do Doutor João Lobo Antunes.
Nas suas primeiras cartas o Bruno e o
Pedro interrogam-se sobre a compatibilidade entre ciência e religião. A
respeito desta questão, o físico e teólogo Ian Barbour (com obras clássicas
sobre o tema, que de resto o presente livro não se esquece de citar [1])
ensaiou uma tipologia que sistematiza as diversas posições. A primeira é a visão
de incompatibilidade e conflito, defendida entre outros pelo físico Francis
Crick, o descobridor da estrutura do ADN, e, mais modernamente, pelo biólogo Richard
Dawkins, o polemista que apoiou a ideia dos autocarros britânicos com anúncios
ateus. A segunda é a da compatibilidade entre ciência e religião por estas serem
“magistérios distintos”. Esta é a tese defendida, entre outros, pelo teólogo
protestante Karl Barth, e pelo biólogo Stephen Jay Gould: ciência e religião perseguem
objectivos diferentes, usando meios diferentes, pelo que pouco terão a dizer
uma à outra. A terceira é uma visão que, afirmando ainda a compatibilidade, vai
mais longe, vendo na ciência e na religião uma certa margem de sobreposição: as
duas podem, por isso, ganhar ao falar uma com a outra. Defendem uma posição
desse tipo John Polkinghorne, que de professor de Física passou a padre anglicano
vendo conexões entre a teoria do caos e a teologia natural, ou o
físico Fritjof Capra, que descortina conexões entre a física moderna e
religiões orientais. Por última, a quarta, e mais temerária, procura a
integração ou conciliação completa das duas actividades humanas: neste caso a
compatibilidade seria total, assegurada
pela convergência. Esta é a posição do naturalista Edward O. Wilson, fundador da sociobiologia e
defensor da ideia de “consiliência”, para quem a ciência acabará de certo modo
por explicar a religião, ou, num plano bastante diverso, do paleontólogo e
teólogo jesuíta Teilhard de Chardin, para quem o mundo é melhor descrito por um
olhar sincrético. Onde se situam, neste quadro, os nossos interlocutores?
A virtude está no meio. Estão entre a
segunda e a terceira, entre a independência e o diálogo. Os dois concordam que
ciência e religião são independentes, não se podendo por isso confrontar como
num jogo em que só um pode ganhar.. De facto, não surge neste livro um embate
frontal entre ciência e religião. Tendo os dois autores formação e experiência
científica, seria aliás difícil que algum deles permitisse que a ciência saísse
ferida. A compatibilidade entre ciência e religião é aliás demonstrada pela
existência de sacerdotes que fazem ciência. O Bruno não vê, na fé que professa
e transmite, qualquer dificuldade em cultivar a física das partículas elementares,
tal como o padre católico belga Georges Lemaître, um dos proponentes do modelo
do Big Bang da origem do Universo, não
considerava o seu exame do céu primordial uma procura de Deus. Foi ele que
afirmou:
“O investigador cristão tem de dominar e aplicar com sagacidade a técnica
apropriada para o seu problema. Os seus meios de investigação são os mesmos que
os do seu colega não-crente... Num certo sentido, o investigador abstrai da
sua fé na sua investigação. Ele faz isso não porque a sua fé lhe poderia causar
dificuldades, mas sim porque ela não tem diretamente nada a ver com a sua
actividade científica. Afinal, um cristão não age de forma diferente do que
qualquer não-crente, quando se trata de caminhar ou de correr." [2]
Está aqui bem expressa a ideia
do “duplo magistério”. Esta separação de águas, possível dentro da mesma pessoa,
pode ser remontada a Galileu, um homem de fé que não perdeu a fé diante do
Tribunal da Inquisição, quando se viu no lugar de actor principal num drama que
marcou a história das relações entre igreja e ciência, hoje já resolvido após o
papa João Paulo II ter admitido um erro de juízo. Para Galileu, e como ele próprio
escreveu numa carta à grã-duquesa Cristina de Lorena citando o cardeal Baronius,
bibliotecário do Vaticano, “a intenção do
Espírito Santo é ensinar-nos como ir
para o céu e não como o céu se move” [4]. Um outro cardeal italiano, este moderno, Gianfranco Ravasi, que preside à
Congregação da Cultura, considera que esta frase, mais do que digna de um
cientista, é digna de um teólogo. No seu livro Breve História da Alma, numa secção significativamente intitulada “Tinha razão Galileu, o teólogo”, escreve:
“Tinha razão Galileu – que, neste caso,
se revelava melhor teólogo do que os seus opositores teólogos”. [4]
Por outro lado, os dois autores deste
livro abordam, na sua discussão, algumas questões sensíveis na zona de contacto
entre ciência e religião, às quais respondem com a sua mundividência individual.. Percebe-se
que há, ou pode haver, algum interacção entre ciência e religião. Ravasi,
depois de apontar a independência entre ciência e religião, observa que há
elementos que a ciência e a religião partilham: “Como aconteceu também no debate sobre a evolução, a tentação do derrube
das fronteiras é sempre forte, até porque é idêntico o objecto examinado pela
ciência e pela teologia ou filosofia, quer dizer, o homem.” Tem razão, Ravasi, o teólogo. Tanto a ciência
como a religião são pertença do humano, constituindo-se como dimensões
diferentes do mesmo ser. É tão humano querer conhecer o mundo como aspirar ao
outro mundo. E só se pode compreender o homem quando se olha para tudo aquilo que
ele faz. É o facto de ciência e religião terem por origem e destinatário o ser
humano que permite que as duas coloquem por vezes questões semelhantes ou mesmo
idênticas, embora lhes respondam de modos diferentes, dadas as diferenças não
só dos seus objectivos mas também da sua metodologia.
O diálogo entre crentes e ateus vai, claro,
muito além das relações entre ciência e religião. Tal acontece quando está em
causa o modo diferente de olhar a vida por pessoas que receberam o dom, ou
graça, de acreditar no transcendente, quer dizer, a fé, e por outras que não o
receberam. O que é a fé? Santo Agostinho disse que “fé é acreditar naquilo que não se vê; a recompensa é ver aquilo em que
se acredita”. Há decerto um hiato,
um salto, entre a crença e a não crença. Pode-se tê-la ou não tê-la. Pode-se ganhá-la ou perdê-la. Mas será
que só esse dom ou graça pode dar sentido à vida? Será que os valores
individuais e sociais, a ética, têm de radicar apenas na religião? É óbvio, e
fica mais óbvio após ler uma carta do Pedro, que não. É possível uma ética que
não entronque na ideia de Deus. Ninguém poderá dizer que, por exemplo, o físico
Albert Einstein, que não acreditava em Deus (pelo menos no Deus pessoal do
Antigo Testamento, acreditando antes numa religiosidade cósmica à moda de
Espinosa), não tivesse um sentido da existência humana extremamente impregnado
de ética. Mas foi ele que afirmou, numa linha seguida aqui pelo Pedro, que a ética
era um assunto puramente humano:
“Eu
não acredito na imortalidade do indivíduo, e considero a ética como uma questão
exclusivamente humana sem qualquer autoridade sobrehumana por trás." [5]
Foi Einstein que o disse, mas o mesmo
poderia ter sido dito por alguém sem formação científica. Tal posição nada tem a
ver com a ciência de Einstein.
O diálogo entre crentes e não crentes tem
sido cultivado nos últimos tempos pela Igreja Católica. O papa emérito Bento
XVI ainda só era cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito para a Congregação da
Doutrina da Fé, quando, num diálogo público no ano 2000, em Roma, com o
filósofo ateu Paolo Flores d’Arcais sobre se Existe Deus?, declarou que a “fé
não deve impor-se com o poder – isso é um grande pecado e um grande erro – mas
propor-se à evidência da razão e do coração”, ao que o seu interlocutor
respondeu que ”é possível viver sem fé: a
fé não é necessária para dar sentido à própria existência, pode conferir-se
sentido à existência de muitas formas” [6]. Mais
modernamente, o cardeal Ravasi tem organizado o chamado Pátio dos Gentios,
um lugar de discussão com toda a gente fora do templo, numa alusão ao famoso sítio
no exterior do templo de Salomão, em Jerusalém, destinado aos não judeus (num
episódio dos Actos dos Apóstolos, S. Paulo é acusado de ter feito entrar um
grego no templo). Esses encontros disseminaram-se, a partir de Itália, no
mundo, tendo chegado a Portugal. Os livros que retratam esses debates [7]
e a presente obra mostram como podem ser enriquecedores os diálogos desse tipo.
Revelam-se afinidades que não eram à partida evidentes. Tanto um crente como um
não crente podem acreditar (uma palavra a que nenhum deles nem quer nem pode renunciar!)
que o mundo de amanhã pode ser melhor, pelo menos um bocadinho melhor. Esta é
uma crença que conduz à acção, que preside à acção. Podemos, de facto, tornar o
mundo de manhã melhor. Se esse esforço se chama redenção, a redenção é uma
vontade comum de pessoas que pareciam estar em campos diametralmente opostos. E
a acção pode ser comum.
NOTAS:
[1] Ian Barbour, Religion
and Science: Historical and Contemporary Issues, New
York HarperCollins, 1997, e When Science Meets Religion, Enemies, strangers, or partners, ibid., 2000. Ver também Peter Harrison (ed.), The Cambridge Companion to Science and Religion, Cambridge :
Cambridge University Press, Cambridge ,
2010
[2] Odon Godart and Michał Heller, Cosmology
of Lemaitre, Tucson :
Pachart Publishing House, 1985.
[3] Carlos
Fiolhais, “Em busca de sentido: ciência e religião”, in Secretariado Diocesano de Evagelização e Catequese, Em Busca de um sentido: Ateísmo e crença na
construção da pessoa que ama, Coimbra:
Gráfica de Coimbra 2, 2012.
[4] Gianfranco
Ravasi, Breve História da Alma,
Lisboa: D. Quixote, 2011.
[5] Alice
Calaprice (ed.), The Ultimate quotable
Einstein, Princeton : Princeton University
Press, 2011, with a Foreword by Freeman Dyson.
[6] Joseph Ratzinger e
Paolo Flores d’Arcais: Existe Deuis? Um
confronto sobre verdade, fé e ateísmo, Lisboa: Pedra Angular, 2009.
[7] Gianfranco Ravasi et
al., O Átrio dos Gentios. Crentes e
não-crentes perante o mundo e hoje, Lisboa: Edições Paulinas. 2012., e Lorenzo
Fazzini, Diálogos no Pátio dos Gentios.
Onde os Laicos e os Católicos se encontram, Braga: Diário do Minho, 2012.
3 comentários:
A argumentos tão bem esgrimidos não se acrescenta. Parabéns aos autores todos.
e ainda há quem se dê ao luxo de imprimir livros para pôr em saldos
ou oferecer a quem se não goste
Entre nós, ouvi um dia o padre jesuíta e cientista (biólogo), Luís Archer, afirmar com alguma graça que, no laboratório, não se pode acreditar em milagres. Excepto naqueles que podem resultar do trabalho sério, persistente e bem feito, foi acrescentando.
As palavras não foram exactamente estas, mas foi este o sentido, com a plácida concordância dos que o ouviam.
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