Os autores – os melhores, diga-se – fazem eco dentro de nós, deixam rasto. Alguns ressoam na nossa memória e acompanham-nos pela vida fora.
No meu caso, Aquilino é um deles. Dizer que comecei a interessar-me por ele em virtude da aura política que lhe veio do processo movido pelo Estado Novo, quando da publicação de Quando os lobos uivam, talvez seja exagero. É sabido como uma perseguição da PIDE salazarista dava ânimo a qualquer livro, mas Aquilino não precisava disso. A minha sedução pela sua obra é anterior.
Quando comecei a ganhar gosto pelos livros, Aquilino era então um dos maiores nomes da nossa literatura, se não mesmo o maior, e daí a obrigação de o ler, o dever de o apreciar e o alegre esforço para alcançar esse nível e, consequentemente, essa satisfação, esse puro prazer. Aquilino exigia (e exige) esforço; mas qual o grande autor (o grande amor) que o não exige?
Há quem o acuse de falta de profundidade psicológica, de uma trama pouco densa e estimulante, de falta de dramaticidade nos seus romances, e até de um formalismo já algo tardio, e, portanto, serôdio. Talvez seja verdade. Não esquecer, porém, outros da mesma época, de grande qualidade, como Tomaz de Figueiredo, João de Araújo Correia, por exemplo, onde o que se manifesta é esse gosto da forma a dar a ler uma realidade social e cultural muito forte e nítida, que se lhes impunha e que eles procuravam traduzir e recriar.
É pois o tipo de argumento que, face à obra em causa, sempre me pareceu algo deslocado, difícil de integrar na realidade sistémica que, sobretudo no caso de Aquilino, o seu estilo impunha.
Porque ele não era fácil, hoje talvez ainda menos, mas o sabor da sua prosa valia (e vale) bem o trabalho de o ler, compensando-nos largamente de tudo.
Não era de pressas. A sua ação pausada, as suas lentas e gongóricas descrições, os seus largos excursos eruditos ou evocativos, as suas sintaxes envolventes e de frases longas e, sobretudo, o seu léxico rico, vastíssimo, inesperado, inventivo, amiúde extravasando o melhor dicionário, entre o popular, o regionalista e o vernáculo, nunca esquecendo os clássicos (traduzindo, vertendo), nem a latinidade, a sacralidade, a santanidade, e até a liturgia, com sua parafernália de ternos e expressões, numa mistura muito própria que a sua filigrana estilística única e inimitável exigia.
Não era fácil, não. Mas deleitava.
Em Aquilino, como disse, o enredo, interessando talvez menos, não é, todavia o livro sem história à moda de alguns atuais, sobretudo da área do já antigo “novo romance”, ou do desconstrutivismo posterior. Não, o enredo existe e prende, mas é sempre submetido ao seu modo de contar, e este à exigência de uma sintaxe elaborada, frequentemente retorcida, ao seu vocabulário que não perde a oportunidade de pôr ao sol termos esquecidos, de endireitar outros, empenados pelo mau uso, de criar muitos, ali mesmo, para a necessidade do momento, e sempre sob a aba inspiradora de sabor oitocentista e setecentista, que as frases e as palavras evocam, e de uma ancestralidade que ressoa nas nossas reminiscências dir-se-ia que platónicas, se não fosse quase escandaloso dizê-lo hoje.
É pois uma escrita sempre subordinada ao classicismo da construção, à riqueza e originalidade do vocabulário, ao gosto de uma descrição que não permite uma prosa dinâmica, e menos ainda desestruturada e desconstruída que a literatura contemporânea nos veio propor.
Aquilino Ribeiro é talvez o nosso último grande clássico. Mas, passados cinquenta anos sobre a sua morte, e depois de tanta experiência, de tantos experimentalismos, artísticos e outros, ainda bem que o foi, e valha-nos isso!
É pois um autor para ler devagar, que não se casa bem com a diluição atual duma certa identidade que foi tão nossa, nem com a desestruturação cultural a que se assiste, nem com muitas das regras gramaticais que a moderna literatura começou a praticar, ou a despraticar, nem com a aridez vocabular corrente, nem com a pesporrência da literatura televisiva dominante, nem com a incultura transformada em cultura, nem com o palavrório ininterrupto, embora construído com meia dúzia de palavras. Menos ainda com a moderna vertigem substitutiva dos estímulos, que tira o sabor à vida, e ainda menos com uma era de eletrónicas em que tudo desaparece no momento em que aparece, etc. etc.
Nesta sentido Aquilino é hoje uma força conta a corrente, e, portanto, uma rocha a que nos podemos agarrar. Em suma, um autor com um valor educativo hoje altamente acrescentado.
É, por outro lado, a imagem dum Portugal que existiu, e de que pouco ou nada já resta: rural, pobre, política e economicamente injusto, mas ativo, habitado e animado, demograficamente vivo, humano e humilde, mas teso, finório e boçal, afável e velhaco, troca-tintas e honrado. Disso, desta mistura donde todos descendemos, Aquilino nos dá testemunhos através de tipos humanos inigualáveis, em inúmeras histórias e situações pitorescas, cruéis, hilariantes, traiçoeiras, amenas…
Mas o melhor de Aquilino está no gosto de descrever as paisagens beirãs, as aldeias, as festas, os trabalhos, as pessoas, os bichos; o amor na procura das raízes vocabulares e sintáticas, no trabalho da língua, de sentirmos o formão e a goiva da sua marcenaria fina afeiçoando uma madeira dura e macia, que deixa, depois de bem trabalhada, obra feita. Para durar. E perfeita.
Aquilino Ribeiro é sobretudo um prosador, a gente sente-o a saborear o que escreve e a amar o que descreve e conta. E ao lê-lo, assim como mergulhamos numa portugalidade antiga que nos moldou os ossos e os sentimentos, para o melhor e o pior, e de que andamos esquecidos, ou a tentar fugir, cheios de prosápia, também usufruirmos de uma espécie de reorganização interior, uma reformulação de alma que todo o sentimento estético nos provoca e engrandece.
A grande literatura é essa forma incessante de nos reorganizarmos, de acrescentarmos ao que éramos uma outra nova e mais rica forma de ser, de sentir por nós dentro esse oxigénio que a funda enxada, cavando, fortalece e revigora.
Ler Aquilino é mergulhar nesse Portugal desaparecido, rural, duro, resistente, devoto e anticlerical, macio e cruel, atrasado e finório, que era o mundo que foi o dos nossos pais, avós e tetravós. Para os mais novos é um modo de ter notícia desse tempo perdido, de conhecer os sentimentos, as vozes, os olhares, os valores estéticos e morais de que era feito, e, ao mesmo tempo, ter a experiência de um País profundo, ancestral, resultante da acumulação de muitos sedimentos de gentes, hábitos, culturas, lugares, ocorrências, e que é, desta terra pobre e castigada, muito da sua melhor herança.
Se todos os portugueses, hoje, pudessem ler, gostar e interpretar Aquilino Ribeiro, pelo que significaria de amor à Pátria, de conhecimento dela e de sentido crítico para os seus defeitos e qualidades, que grande, que incomparável mudança nas mentalidades não sofreríamos todos.
João Boavida
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
13 comentários:
Concordo. Há em Aquilino uma inteireza granítica. Facto que hoje pouco se verifica.
De Aquilino não li a obra toda. Mas (tudo) o que li de Aquilino me levou a "olhá-lo" como o mais notável mestre no uso da língua portuguesa do século vinte. É claro que também não li muitas outras páginas notáveis de tantos dos nossos escritores do século passado. Por outro lado, algumas das que li dos nossos "monstros sagrados" da mesma época ou já mais próximos confesso que me decepcionaram. Nem sequer me esquivo a dar exemplos actuais: o obra "A viagem do elefante" parece-me um livro menor que não engrandece um nóbel... Também o livro "Hei-de amar uma pedra" foi uma chateza que dificilmente levei até ao fim. Etc. Naturalmente, o defeito só pode estar em mim, e na natureza da minha sensibilidade. Mas é a realidade como a vejo e sinto e de que não me importo de dar testemunho (meramente) pessoal. Isto para voltar a Aquilino, um escritor que não sabia nem podia escrever menos que muito bem. Creio que até Salazar o respeitava, e... receava.
Agora, o desejo de que todos os portugueses pudessem actualmente ler, gostar e interpretar Aquilino é que me parece uma empresa praticamente impossível. Vejo a obra daquele Mestre como um "prato" delicioso a que apenas muito poucos podem ter acesso. Foram muitos anos a descurar e a perverter a língua (veja-se o triste AO...), não capacitando nem dotando de ferramentas que possam abrir à generalidade dos nossos jovens a possibilidade de descobrir, desbravar e saborear certos tesouros da nossa (medular) identidade, que os temos. O que é uma pena.
Só mais uma linha para acrescentar que, sobre um tão rico escritor, há muitas décadas que não dou fé de ter sido produzido um texto tão pertinente, elucidativo e estimulante.
O que já não é (nada) mau.
Pela parte que me toca, muito obrigado.
No fim da primeira linha do que escrevi antes, onde ficou "me levou" devia ter ficado "levou-me". Também a palavra "nóbel" ficou incorrectamente acentuada, devia ter grafado "nobel". As minhas escusas.
É claro que a hipótese de todos os portugueses lerem Aquilino é obviamente académica, mas o que quis dizer é que seria bom que o maior número possível o lesse, ou lesse dele algumas das melhores obras. Embora a sua obra esteja de algum modo datada, como clássico que é haverá sempre quem o leia, porque, para os estudiosos não será possível ignorá-lo. Mas é pena que se fique por um grupo restrito porque ele trabalhou a língua portuguesa como ninguém. E em termos educativos a sua linguagem está tão cheia de informações e o seu vocabulário é tão rico que o seu efeito sobre os alunos seria de imenso valor. Além disso tem textos engraçadíssimos que, bem trabalhados pedagogicamente, abririam portas e sensibilizariam para a estética literária como poucos.
Senhor Professor Boavida, que venha aqui alguem dizer que até Salazar respeitava Aquilino é de uma bruteza inimaginavel, uma enorme falta de respeito para com a memória de Aquilino, para com todos portugueses vitimas de um regime fascista e criminoso, mas, sobretudo, revela um enormissimo desconhecimento daquilo que foi vida e Obra de Aquilino Ribeiro.
Lamento que o senhor Professor Boavida nada diga sobre isso, não tenha uma palavra para condenar essa brutidade, e seja passivo com tal ofensa a Aquilino às vitímas do regime, mas não estou surpreso com esta sua atitude.
Também o seu texto esconde o Aquilino como o homem do povo, que acima de tudo amava o seu povo, bem, o senhor fala em amor à pátria, sim também está bem, mas não julgue que Aquilino se importaria ou se envergonharia se o senhor utiliza-se a palavra povo.
O senhor nunca leu o prefácio de Álvaro Cunhal escrito para o livro "Quando os Lobos Uivam"?! deveria ler. E os opinadorezecos muito menos! certamente.
Vêja-se o que escreve Álvaro Cunhal no prefácio para Quando os Lobos Uivam, «para os críticos burgueses que afirmam que as intenções sociais nas obras de arte sacrificam a forma ao conteúdo, Quando os Lobos Uivam é um nítido desmentido» e ao contrário, «a nova riqueza do conteúdo deste romance deu nova riqueza e novo mérito à forma literária».
P.S.: O Professor Boavida na sua crítica literária esqueceu esta riqueza assinalada por Álvaro Cunhal.
Qualquer pessoa que tivesse lido Aquilino nunca escreveria "se o senhor utiliza-se a palavra povo". Mas enfim.
E como um homem não é de pau, e a (minha) paciência hoje á nenhuma para aturar destrambelhados, digo o que se segue sobre o que chamarei "A surriba inglória do megalomaníaco da (ou de?) escola única":
Com espanto e tristeza sou alvo aqui, desde há longos meses, e sempre a tentar desviar-me ao máximo, das investidas de um doido hediondo que exibe grotescamente a sua desumana e ascorosa miséria. Trata-se de uma besta à solta como eu nunca conheci, nem conheço pessoalmente (nem quero conhecer), e ainda bem. Está-lhe na natureza convencer-se de que alguém o considera; e ignorar que as pessoas de bem só o podem desprezar. Alimenta e espalha ódio e nutre-se dele. Supõe, tamanha é a demência, que isso lhe faz proveito, e assim se inferniza. O que (pessimamente) escrevinha causa(-me) tal horror que suponho que, na década de cinquenta do século passado, em Portugal, teria dado um torcionário estúpido mas dedicado do Tarrafal. E antes, no final da década de trinta, lá para a europa central, podia ter sido um esbirro abstruso mas diligente das SS. Hoje, ocupa-se a atirar lama não só a mim mas às pessoas a quem repugna o esterco em que chafurda, que vaza escabrosamente nestas caixas de comentários, e que é a sua marca distintiva.
Julgo-o capaz de tudo dizer e de tudo fazer, mas não julgo possível que alguma pessoa de bem o acredite no que quer que seja. Em minha opinião, faz mal quem, de algum modo, lhe alimente a loucura e o ódio, porque lhe potencia os horrores e lhe apressa o fim trágico a que chegará inexoravelmente. Não quero imaginar o sofrimento das pessoas que tiver por perto e espero que não acabe por matar alguém. Lamento, com profundo pesar, uma tal degenerescência do ser humano. Resta-me o consolo de saber que nunca contribuí para a sua funesta e esquizofrénica ilusão.
E o mal que lhe desejo, a ele como a qualquer mortal, que me aconteça (antes) a mim e aos meus filhos, que são a luz dos meus olhos.
Isto dito, resta acrescentar que não perdoo o mal que (me) tem tentado fazer: nunca em nenhuma circunstância.
Procurarei não insistir nesta caixa de comentários, para dar largueza à jactância imunda da picareta insultante, já que não vejo melhor maneira de anular a horrenda criatura do que deixá-la (auto)expôr a sua medular, pesporrente e louca velhacaria aos olhos das pessoas respeitosas e lúcidas.
Com indizível desconforto escrevi este texto.
Ah, o nome do bicharengo é Joaquim Ildefonso Dias, um tipo que diz que é engenheiro, e dos bons.
Inteiramente de acordo, caríssimo Professor.
Professor Boavida, obrigado pelo seu comentário. Aquilino é um dos autores da minha vida, lido ainda jovem por influência do meu avô e do meu pai. No fim da década de 90 adormeci o meu filho com leituras da minha cópia do "Romance da Raposa" - tendo ele cinco ou seis anos, cada texto lido tinha de ser acompanhado de uma longa lista de explicações e de sinónimos, que estes textos são realmente de outro tempo e de outra forma de ver o mundo.
Permito-me sugerir uma semelhança de atitude perante a língua e perante a vida por parte de outros dois autores. Um, contemporâneo de Aquilino, João Guimarães Rosa; o outro, a maravilhar-nos de modo recorrente, Mia Couto. Os três transformam a língua em algo vivo, sem medo das palavras. Às vezes dou comigo a fantasiar uma tertúlia de café entre os três...
Ontem estive em Belém. Percorri de autocarro 700 kms. Sai do conforto de minha casa. Estive numa manifestacão de luta contra a miséria em que o povo portugues vive e querem que continue a viver.
Lá, na vida real, aprende-se, vê-se a angustia que está estampada no rosto das pessoas, e quando se conversa sente-se logo a dignidade mais profunda e genuina que pode existir numa pessoa.
Não é pois de estranhar que eu manifeste aqui a minha indignacão para com aqueles que aqui vêm louvar Salazar, ou que não tenham, sequer, uma palavra de condenacão para isso.
P.S.: Eis aqui um exemplo de como se revela o «amiguismo» que alguns fazem aqui no DRN, que é do género de «os amigos são para as ocasiões» tudo isto são coisas já tão bem conhecidas e nocivas neste país.
Fora a riqueza do vocabulário, aonde vou buscar palavras novas sempre que posso, não tenho grande prazer em ler Aquilino (já li cinco ou seis romances, tendo-os todos em casa). Quando o leio sinto que estou a ler alguém do século XIX, o que é irónico porque o Eça sempre me faz pensar num escritor do XXI. Acho os enredos monótonos, o diálogo falso, as personagens pouco desenvolvidas, e, pior de tudo, sem qualquer humor.
Dêem-me José Saramago, o nosso melhor romancista do século XX. O seu vocabulário também é riquíssimo, a sua prosa é bela e inventiva, os personagens são interessantes, ele constrói enredos surpreendentes, e é de partir a rir.
Discordo do com. quanto ao Salazar...
Aliás, é conhecido o com. do mesmo Salazar, a respeito do mesmo Aquilino, para um jornalista estrangeiro de quem se despedia, que cito de memória, mas palavra por palavra:
- "Vá, fale por exemplo com Aquilino Ribeiro, vai por certo dizer-lhe mal do Governo, mas não importa. È um grande escritor".
Não se penitencie pelo que escreveu ,José Batista. Se mais ninguém estiver de acordo, pelo menos tem em mim um incondicional "concordante". Leio tudo que posso sobre Aquilino e fujo de Saramago como o diabo da cruz. Comparado consigo e com os escritores que refere, posso considerar-me um analfabeto. Como não sei assinar, ponho o dedo por baixo em tudo que escreveu.
Enviar um comentário