domingo, 16 de setembro de 2012

"Isto não é socialmente aceitável, pois não?"

Não sei se percebi bem o que li numa pequena notícia do Expresso desta semana.

O jornalista (Micael Pereira) explicou-se bem (na verdade, explicou-se muito bem) ao relatar um pesadelo colectivo dos tempos que correm, mas quem sabe que esse pesadelo não é inventado, que decorre da realidade, para defesa da sua racionalidade e da matriz de valores em que ela assenta, põe-se a duvidar da sua própria capacidade de compreensão. É o meu caso.

A notícia, intitulada Os impostos não são para todos, situa o pesadelo: num luxuosíssimo hotel construído num luxuosíssimo espaço algarvio. Ali, umas centenas de ricos, muito ricos, de vários países do mundo assistem a uma palestra proferida por um consultor estrangeiro sobre "como Portugal é a melhor escolha fiscal em 2012", pois "às vezes as medidas de austeridade em Portugal para os mais ricos são mais aparência do que realidade"... Isto é dito e está escrito num slide da sua apresentação. E o tom não é crítico (obviamente que naquela circunstância não o podia ser!), é afirmativo, para convencer os clientes a investirem (talvez investirem devesse ter aspas) em terras lusas...

Um milionário do Reino Unido presente, aparentemente desconcertado com o discurso, disse ao jornalista:
"(...) quem tem dinheiro, tem sempre forma de gerir a carga fiscal. Eu, no lugar do Governo. em vez de ter impostos baixos para gente como nós, baixava os impostos a todos os portugueses. Só assim é que há actividade económica (...) Além de mais, isto não é socialmente aceitável, pois não?"
Um milionário (sublinho, um milionário), a quem são oferecidas benesses fiscais, tem o discernimento social que falta a quem permite que se ofereçam benesses fiscais a "gente como ele".

Enquanto isto acontecia, nota o jornalista, o nosso Ministro das Finanças, em directo pela televisão, explicava ao país o mais recente aumento de impostos (destinado a "outra gente").

Tudo isto bate certo. Lamentavelmente.

6 comentários:

Graça Sampaio disse...

Até dói!...

José Batista disse...

Repare, estimada Professora Helena, que aquele milionário era do Reino Unido. Não que em Portugal não haja ricos decentes. Mais ou menos insensíveis à pobreza, mas decentes, em todo o caso.
As nossas elites políticas é que não têm estado à altura. Nem o povo que boçalmente as suporta. E elege. Mas que há-de o povo ver se o cegam(os) de todas as maneiras possíveis, impedindo que se erga e olhe longe?...
Falo da escola, naturalmente.
Com uma dor imensa.
O que fizémos a nós próprios?

Ildefonso Dias disse...

Senhor Professor José Batista;

Mas então o Senhor Professor não declarou aqui no DRN ser contra a Escola Única!!! (“E sou obviamente contra qualquer ideia de "escola única" seu comentário em http://dererummundi.blogspot.pt/2012/05/dont-worry-be-happy.html ).

Sim, porque a conceção que orienta a Escola Única é esta, “a da abolição de privilégios perante a cultura - privilégios de sexo, privilégios de dinheiro, privilégios de crenças. A natureza humana é una e todo o ser humano é, por consequência, portador dos mesmos direitos; a todos deve, portanto, ser proporcionada a completa aquisição dos conhecimentos que lhe permitam viver dignamente a vida, conforme as suas capacidades - uma só condição, uma só dignidade, uma só escola.” [Bento de Jesus Caraça]

Senhor Professor José Batista, é que o seu comentário é enganador, e é enganador para aquelas pessoas que possam acreditar que o Senhor Professor está aqui a reclamar uma nova reorganização do sistema de ensino “orientada por uma conceção nova da posição do homem em face da cultura e, consequentemente da posição da Escola na sociedade. Conceção essa, determinada por preocupações de natureza eminentemente social”. Não o Senhor Professor não está a reclamar nada disso. O Senhor Professor José Batista está a reclamar apenas e só a velha doutrina pedagógica, tão bem descrita pelo Professor J. Sebastião e Silva em entrevista na "A CAPITAL", publicada em 4 de Dezembro de 1968;

[…] “O que importa focar, sobretudo, é que estamos em presença de um sistema educacional que não ensina a observar, nem a experimentar, nem a reflectir, nem a raciocinar, nem a escrever, nem a falar: ensina apenas a repetir mecanicamente, a imitar e, por conseguinte, a não ter personalidade. É um sistema. É um sistema que reprime o espírito de autonomia e todas as possíveis qualidades criadoras do aluno, nas idades decisivas em que essas qualidades deveriam ser estimuladas ao máximo: um sistema feito à medida da mediocridade obediente, que acerta o passo enquadrada em legiões de explicadores. É, portanto, um ensino em regime de desdobramento: professor-explicador (e o mais grave é que o professor já conta com o explicador). É, portanto, um ensino que favorece os passivos, os superficiais e os privilegiados economicamente, em prejuízo dos autónomos, dos inteligentes e dos economicamente débeis. Em conclusão: é um ensino capaz de atribuir 20 valores ao Conselheiro Acácio e orelhas de burro a Einstein!”

Senhor Professor José Batista, os leitores assíduos do DRN sabem bem qual é o propósito do seu comentário; é a manutenção e o reforço de um sistema educacional como o descrito pelo Professor Sebastião e Silva. Assim, todos ficamos a saber que a preocupação pelos mais desfavorecidos nunca fora nem é sua preocupação.

Ricardo Figueiredo disse...

Ildefonso Dias,

Sem querer estar a intrometer-me em nenhuma guerra de palavras alheia — da qual parece aliás ser participante único — não consigo deixar de lhe fazer notar que existem outras citações interessantes que podem ser feitas numa discussão, além das dos (notáveis) Professores Bento de Jesus Caraça e Sebastião e Silva.

Usar sempre as mesmas referências, qual doutrina, revela um gritante desconhecimento de outras que suportem a mesma tese. E há tantas, caro amigo.

Por isso lhe peço: não esgote o nome de duas das nossas maiores personalidades do último século em argumentos vácuos recorrentes, difíceis mesmo de contextualizar como resposta a textos como este de Helena Damião. Agradeço-lhe eu e creio que muitos outros leitores quasi-anónimos do "De Rerum Natura".

Obrigado.

Ildefonso Dias disse...

[da biografia do Professor Sebastião e Silva, realizada pelo Professor Catedrático da Faculdade de Ciências do Porto António Andrade de Guimarães]

"Nota: O fascículo dos "Anais" da Faculdade de Ciências do Porto, então previsto como número especial inteiramente consagrado à excelsa memória de José Sebastião e Silva, não chegou a ser publicado, por motivo do veto imposto a esse projecto (de verdadeiro interesse nacional) pelo então Director dos referidos "Anais". Este e outros vetos de que foram alvo outras projectadas manifestações de homenagem póstuma à grande figura nacional que é José Sebastião e Silva, - todos esses vetos constituem afinal tocantes confissões de sentido reconhecimento de um facto essencial que sempre ensombrou a vida de Sebastião e Silva, - a saber: esse Homem era demasiado grande para a tacanhez primária do meio em que nasceu e viveu.

O drama que foi a vida do nosso grande Cientista e Professor José Sebastião e Silva (vida em grande parte gasta na luta contra o meio) faz lembrar irresistivelmente a célebre síntese que, na hora da agonia, o notável estadista liberal Rodrigo da Fonseca Magalhães proferiu, já com voz trémula: «Nasci entre brutos, vivi entre brutos, morro entre brutos». O mesmo poderia ter dito, ao morrer dramaticamente em 25/Maio/1972, o nosso grande cientista e Professor José Sebastião e Silva. Volvidos quase 19 anos sobre a data dessa perda trágica para o País, a ignóbil conspiração de silêncio que (ao longo de um vinténio), omnimodamente, vigilantes esbirros têm mantido sobre a excelsa memória do grande Português José Sebastião e Silva, permite já afirmar hoje (Abril de 1991) que a triunfal falange dos brutos (exorcizados em 1858 pelo agonizante Rodrigo Fonseca Magalhães) se multiplicou e se aguerriu, hoje em dia (década de 1990) com tão impunes ousadia e impudor que nada deixam a desejar. É como é.”

Joel-G-Gomes disse...

Desconfia-se, mas espera-se sempre que não seja tão mau como desconfiamos. E acaba por ser igual ou pior. É uma pena.

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