De há muito que sou leitor doblogue “A Educação do meu umbigo” daautoria de Paulo Guinote, uma referência no combate sem tréguas em aspectos problemáticos do nosso sistema educativo. Desta feita, numa altura em que sediscute acaloradamente os exames nacionais no final do 1.º ciclo do ensinobásico.
Refira-se ser Paulo Guinote um docente doutorado, exercendo o seumúnus numa escola do 2.º ciclo do básico, senhor de uma personalidade forte que se não deixa enredar em teias políticase/ou sindicais que possam desvirtuar o raciocínio crítico pela deturpação dematéria factual que sirva ( às claras ou na penumbra) determinados desígnios.
Publicou ele no seu blogue, nopassado dia 29 de Março deste ano, dois post’s seguidos com idêntico título, “ISee Dead People”, que transcrevo, mantendo os negritos do texto original, emamável deferência do respectivo autor e por os haver como merecedores decuidada reflexão por parte daqueles que possam ser a favor, contra ou,mesmo, sem opinião fundamentada acerca dosfuturos exames nacionais no 4.º ano de escolaridade. Assim:
“I See Dead People! - 1
“Adoro pessoas afalar do regresso aos exames da 4ª classe, quando elas nem sequer têm idadepara ter feito a 4ª classe. Eu já vou nos 47 e não fiz exame da 4ª classe! Deveser por isso que não fiquei traumatizadozinho com o “fascismo”.
Se os exames nãoresolvem os problemas da “Educação Nacional” e da “Escola Pública”, a verdade éque a sua ausência contribuiu, e muito, para uma certa bandalheira e falta derigor que se instalou no sistema educativo nas últimas décadas.
E depoisqueixam-se quando o privado tem melhores resultados. Não é só o dinheiro, meusamigos, porque os pobrezinhos não são necessariamente estúpidos e burros.
Esse é o piorpreconceito, enraizado até à medula numa certa esquerdinha parada no tempo.Para eles, os pobres precisam sempre de ajuda para chegar onde chegar osricos.E um determinismo social materialista profundamente preconceituoso, queamesquinha quem afirma querer defender.
Uma coisa édestacar que os alunos provenientes de meios económicos e sociaisdesfavorecidos precisam, às vezes, de algum apoio adicional para enfrentarem aescola em condições de alguma equidade, outra é tratá-los como inevitáveisidiotas.
Nesse aspecto,esquerdinha e direitinha partilham preconceitos oitocentistas: a arraia-miúda eas classes perigosas são estados de patologia social que épreciso curar. Só divergem na medicação.
Que raios, o meupai era pobre e comunista, mas orgulhava-se dos resultados que tinha nosexames. Os betinhos chics da esquerda actual até me arrepiamquando abrem a boca sobre isto. Ainda não tenho a certeza se eles percebem que,na prática, ofendem quem vem do meio social que eles repetidamente apresentamcomo sendo formado por um bando de inevitáveis imbecis.
Será que estaesquerda, velha, velhíssima nas ideias, não entende que o dinheiro não compratudo e que a inteligência não é apanágio dos filhos de alguém com muitosapelidos e consoantes dobradas no nome? Isso é o que certa direita sempre nosquis fazer crer. Pelos vistos, conseguiu”.
“I See Dead People - 2
Neste caso vejo os meus pais. Ambos chegando apenas a concluir oensino primário no início dos anos 40. Ambos sem possibilidade de seguirestudos por constrangimentos familiares e por dificuldades de acesso àEducação.
Razões principais: período de fortíssimacrise, com recursos escassos e ambos como filhos mais novos de famíliasefectivamente proletárias, para quem as perspectivas de estudo eram, na altura,reduzidas pela forma como a sociedade estava organizada. Uma sociedade pobre,incapaz de gerar desenvolvimento económico em que nem a emigração era ainda oúnico horizonte de fuga, com Liceus distantes de casa, deixava-os longe dequalquer hipótese de prosseguir estudos.
No entanto, nunca detectei nelesqualquer amargura com a escola, com as provas e com os exames finais. Pelocontrário, em ambos via-se o orgulho pelos resultados que tiveram. A Escola nãoos tinha tratado mal. O País, a Sociedade, a Organização Política, sim.
No caso paterno, a ida para a Primáriaaté foi tardia, apenas aos 8 anos. Mas, lá chegando, e até porque tinha umirmão mais velho por lá, houve autonomia para o fazer progredir mais depressa eir fazer o exame da 3ª classe (sim, da 3ª classe, aprendam Históriada Educação antes de falarem em Estado Novo, que o da 4ª classe aparece apenasem meados dos anos 50 e para os rapazes!) ao mesmo tempo que o meu tio.
Que estranho, um pobre miúdo proleta aprogredir dois anos apenas em um no tempo horrível do fascismo? Mas erapossível, assim o professor o achasse capaz e a família não se opusesse. Mesmosendo de família reconhecidamente simpatizante do comunismo (embora ache que omeu avô era mais para o anarca).
O problema é que muita gente não viveuou estudou as coisas e fala delas como se tivessem passado mesmo como descritocom abundância de gestos e tons numa aula inflamada e estimulante de umqualquer professor universitário bloquista menos preocupado com os factos doque com a mitologização do seu próprio passado.
Nunca vi no meu pai sinais de traumapor, aos 10 anos, ter ido fazer o exame ao Barreiro (salvo erro), tendo para isso queir a pé ou nalguma carroça de transporte de cortiça, pois confesso não merecordar de todos detalhes da história familiar. Nem na minha mãesinais de outro trauma que não o do imobilismo mental familiar(neste casocom matriz alentejana) que determinou que, não tendo estudado acima da3ª classe nenhuma das irmãs mais velhas, ela também não deveria seguir estudospara não despertar incómodas ciumeiras domésticas.
O maior problema do Estado Novo nãoforam a Educação ou os exames da 3ª ou 4ª classes; alguém deveria explicar isso aosjovens deputados do Bloco e do PCP. Era a autarcia míope de uma ditaduramesquinha que tinha medo de crescer, que abominava o desenvolvimento, quequeria tudo no seu lugar, respeitando a ordem política. Ao contrário do que sediz e escreve com profusão, o salazarismo não era elitista no sentido de sóquerer promover os filhos dos ricos, através de exames que os distinguissem;era elitista no sentido de só querer promover aqueles que aderissem e servissemo ideal político de Salazar, ricos ou pobres.
Não era uma sociedade meritocrática, eraautocrática e, nas palavras de boca cheia de alguns, plutocrática, mas davaprovavelmente tantas hipóteses a um pobre fascista como a um rico democrata.Mesmo se estamos fartos de ver como os filhinhos de burgueses progressistasacabaram em universidades estrangeiras nos anos 60. Mas eu aqui falo dos anosde chumbo de 40.
O problema do Estado Novo era o da selecçãoe exclusão política, não o da selecção e exclusão académica. Claro que oproblema económico interferia com as hipóteses de progressão, mas não digam quea culpa era dos exames da Primária. Há que ler mais do que apenas o volumecorrespondente da História de Portugal do Círculo de Leitores.
Querem criticar o regresso ao EstadoNovo na política educativa deste (e dos anteriores) governo(s)? Falem da lógicaconcentracionária da rede escolar. E mesmo aí teriam de chocar com a expansãosalazarista das escolinhas arquetípicas do Plano dos Centenários. Falem dafalta de proximidade das escolas no interior do país (a níveis de final doséculo XIX), da rarefacção e encarecimento dos transportes públicos, emcombinação com o crescimento galopante do desemprego e subemprego, que deixamas famílias com expectativas cada vez menores de sucesso.
Isso sim são aspectos bem mais válidospara falarmos a um regresso ao pior de um passado que gostaríamos de verenterrado.
Interroguem-se porque quase 40 anos deDemocracia nos estão a fazer regredir a níveis de subdesenvolvimento e fracturasocial próximos dos da Ditadura.”
Paulo Guinote
Na imagem: Paulo Guinote no televisor de Lelé Batita.
9 comentários:
Sr. Professor Paulo Guinote;
“A Escola não os tinha tratado mal.”
Ora essa, uma escola que não os ensinou a pensar nem refletir e necessariamente a ter personalidade, obrigava-os apenas a decorar não os tratou mal?!!; que estranha opinião, a sua, de professor!
“via-se o orgulho pelos resultados que tiveram”
De que resultados é que o senhor nos fala? os mesmos a que se referia o sr. Presidente do Conselho na altura «Ler, escrever e contar chega para a maioria dos portugueses».
“O maior problema do Estado Novo não foram a Educação ou os exames da 3ª ou 4ª classes;”?
Pode dizer então qual foi?
“O problema é que muita gente não viveu ou estudou as coisas e fala delas...”
Agora chega, desculpe-me, não o vou questionar mais na sua petulância... vou apenas citar o Professor Abel Salazar, para servir os leitores do DRN, sim porque é afinal de miséria que aqui se trata.
“Fuja o leitor destas misérias; se a cultura lhe não servir para se fazer mais refletido, mais tolerante, mais compreensivo e mais humano, para nada lhe servirá então a cultura: porque a cultura de salão, de botequim ou de clube, degrada em vez de elevar.”
Rui Baptista
Se não se importa referencie, se fizer o favor, os créditos da fotografia de Paulo Guinote. Estão aqui:
http://peroladecultura.blogspot.pt/2009/12/paulo-guinote-na-opiniao-publica.html
Muito obrigada.
Lelé Batista e Rui Baptista:
Os créditos?
A fotografia tem créditos em que instituição financeira?
A brasileirice já chegou ao De Rerum Natura.
Nada resiste.
Depois venham dizer-me que a culpa deste linguarejar estranho também é do «eduquês», qual canivete suíço, remédio para todos os males (todas as culpas) de que padecemos.
Correcção:
Lelé Batita
de vossa portugalidade por emenda
deveria preocupar-vos ao empenho
a que compreenda além da contenda
esta a originalidade o vosso lenho!
Ao Joaquim Dias que escreveu:
"Ora essa, uma escola que não os ensinou a pensar nem refletir e necessariamente a ter personalidade, obrigava-os apenas a decorar não os tratou mal?!!; que estranha opinião, a sua, de professor!"
... eu questionaria o seguinte:
1) Que autoridade tem o distinto senhor para considerar que os meus pais não aprenderam a reflectir e, inclusivamente, a ter personalidade?
2) Que autoridade tem o senhor para insinuar que todas as pessoas que fizeram a Primária e os seus estudos até 1974 são seres sem carácter, capacidade de reflexão e "personalidade"? Aprenderam-na apenas em casa, nas ruas?
3) Que autoridade tem "vocelência" para considerar seja o que for, com juízos de valor à mistura, sobre pessoas que não conhece, apenas porque os seus fantasmas pessoais o atormentam?
Poderia ir buscar uma citação qualquer para abrilhantar este comentário, mas quem precisa de palavras alheias para expressar o que sente é porque, quase certamente, lhe falta a capacidade própria para dizer o que gostaria de pensar.
Uma coisa é criticar, outra escrever disparates sobre pessoas concretas que não conhece (não falo de mim, mas o que explicitou sobre os meus pais). Isso sim é próprio de conversa de esplanada mal requentada, porque há botequins e cafés muito dignos.
A Santos
Isto é humor ou dislexia?
As fotografias não se fazem sozinhas, alguém tem de carregar num botão. Isso chama-se autoria. E referi-la é de bom tom.
O seu tom é que é completamente dissonante deste Blogue.
Sorry! (sem brasileirismos)
Sr. Professor Paulo Guinote;
Obviamente que não me refiro aos seus pais, refiro-me ao sistema educacional vigente.
Mas asseguro-lhe que poderia referir-me, não aos seus pais – pois que não conheço - mas aos meus pais; sim, sei bem que os meus pais pagaram e continuam a pagar pela sua ignorância - e na medida em que o tempo lhes for proporcionando, pois tem a 4ª classe (sabem ler, escrever e contar; tal como pretendia o sr. Presidente do Conselho).
Quanto às questões de autoridade que me coloca respondo-lhe com a seguinte citação (sei que não gosta de citações) mas entenda eu não quero aqui conseguir autoridade para mim, apartir de um Professor eminente que foi alguém no mundo matemático, o maior do nosso país, criador de ciência; trata-se somente de esclarecer e não lhe emprestar, a sí, mais autoridade.
O sistema educacional nos graus pré-universitário era assim descrito pelo Professor Sebastião e Silva – entrevista na "A CAPITAL", publicada em 4 de Dezembro de 1968;
[…] “O que importa focar, sobretudo, é que estamos em presença de um sistema educacional que não ensina a observar, nem a experimentar, nem a reflectir, nem a raciocinar, nem a escrever, nem a falar: ensina apenas a repetir mecanicamente, a imitar e, por conseguinte, a não ter personalidade. É um sistema. É um sistema que reprime o espírito de autonomia e todas as possíveis qualidades criadoras do aluno, nas idades decisivas em que essas qualidades deveriam ser estimuladas ao máximo: um sistema feito à medida da mediocridade obediente, que acerta o passo enquadrada em legiões de explicadores. É, portanto, um ensino em regime de desdobramento: professor-explicador (e o mais grave é que o professor já conta com o explicador). É, portanto, um ensino que favorece os passivos, os superficiais e os privilegiados economicamente, em prejuízo dos autónomos, dos inteligentes e dos economicamente débeis. Em conclusão: é um ensino capaz de atribuir 20 valores ao Conselheiro Acácio e orelhas de burro a Einstein!”
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Lelé Batita:
Não será, afinal, o seu comentário que está muito deslocado, pelo menos em relação à compreensão do que eu escrevi?
A maneira abrasileirada de dizer as coisas, que é cada vez mais comum entre nós, infelizmente, deve-se a um espírito que bascula entre o snobismo e a subserviência.
Os brasileiros são uns criativos no uso da Língua, imbatíveis, nós temos outras formas de construção das frases.
Eles não constroem as frases à portuguesa, nós não o devemos fazer à brasileira.
Foi tão só isto o que quis dizer.
É evidente que todas as fotografias têm autoria, como reconhece («As fotografias não se fazem sozinhas, alguém tem de carregar num botão. Isso chama-se autoria.») isto é, ficam a dever-se aos seus autores; mas tal como nós não dizemos «xerocar» quando fazemos fotocópias (como os brasileiros dizem), não devemos dizer créditos quando nos referimos à autoria de um documento.
Outro pormenor intrigante (inquietante) do seu comentário: «O seu tom é que é completamente dissonante deste Blogue.»
Agradeço-lhe a chamada de atenção (aviso/convite à saída), mas já o percebi há muito tempo, por isso muito raramente comento, cada vez o farei menos, provavelmente deixarei mesmo de aqui vir; o que só me aproveita a mim (deixo de ser convidado à saída) e aos digníssimos frequentadores/«donos», deixam de ter contraditório, passam a auto-aplaudir-se sem limites.
O que me inquieta é o espírito persecutório em ralação a tudo o que é diferente, dissonante, o que é revelador de grave doença social (das relações sociais).
As pessoas deviam, ao menos, ser capazes de se ouvir umas às outras.
Em vez do «Sorry! (sem brasileirismos)», eu prefiro dizer: lamento muito.
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