“Ensina-se pouco, educa-se menos e exige-se quase nada” (Associação Comercial do Porto)
Meu Caro Adolfo Figueiredo:
Nesta hora não pode deixar de me ocorrer à memória o sociólogo e filósofo Roland Barthes quando escreve: “Existe uma erótica do novo, o antigo é sempre suspeito”.
Vem isto a propósito da questão levantada pelo exame nacional do 4.º ano do ensino básico (antiga 4.ª classe do ensino primário). Quiçá porque, como nos ensina a sabedoria popular, “as palavras são como as cerejas”, logo surgiu a questão do ensino ministrado nas extintas escolas industriais e comerciais.
Embora seja dito que a história se não repete, nada me impede pensar que ela se reflecte no futuro, conquanto com roupagens diferentes. Em regresso saudoso aos meus livros de mesinha de cabeceira, o gigante da literatura do século XIX, autor de “Os Maias”, da minha declarada preferência que reforça esta perspectiva. Escreveu Eça de Queiroz, com o título “Brasil dos Doutores”:
“Bem cedo, do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou nem sequer brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes. A Nação inteira se doutorou. Do Norte ao Sul do Brasil, não há, não encontrei, senão doutores! Doutores, com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios; doutores com um apito, dirigindo a polícia; doutores com uma lira soltando carmes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, misturando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado”. (…) E este título não é inofensivo: imprime carácter. Uma tão desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa atmosfera de doutorice”.
Mutatis mutandi, não venham tentar dizer-me que a história não se repete, repete-se ainda que com adaptações a épocas e a países diferentes! Posto isto, e para que se não possa pensar que as antigas escolas industriais (e comerciais) mereceram a minha defesa por puro oportunismo, arredo para bem longe tal hipótese, transcrevendo um excerto dum meu post, ínsito neste blogue. Escrevi então:
“Mais vezes do que aquelas que a minha paciência suporta, algumas vozes tentam convencer a opinião pública da bondade do operado no actual sistema educativo que se traduziu em aumentos exponenciais de cidadãos de posse de diplomas de ensino superior.Tudo isto seria digno de encómio, ou mesmo de orgulho nacional, não se desse o caso de na percentagem de licenciados se incluírem todos os indivíduos com um pergaminho ou simples cartolina com o imprimatur Estado que os iguala em direitos e os desiguala em deveres, numa espécie de preito a um demérito que a ética deve reprovar, a justiça obriga a rejeitar e um estado de direito não pode legitimar. Aqueles valores percentuais só são possíveis pelo desconhecimento de uma simples regra da adição do ensino primário que nos ensina que não se podem somar peras com maçãs.Há quem diga que a actual situação, em que, muitas vezes, a bolsa dos pais conta mais que a massa cinzenta dos filhos, se deve a uma louvável democratização do ensino que conduz a que indivíduos que ontem trabalhavam nas obras possam hoje pensar no acesso à universidade. Pena é, no entanto e por outro lado, que, devido ao desemprego de diplomados em engenharia, estes, por vezessem o suficiente “know-how”, sofram agora o pesadelo de terem que voltar para as obras.Ora este statu quo fica a dever-se a uma coisa bem simples, que repousa menos no direito constitucional à educação e mais no novo-riquismo da democracia portuguesa, reconhecido pelo ex-ministro da Educação David Justino quando lamentava o facto de, no pós-25 de Abril, “se ter morto o ensino técnico e profissional, tendo-se perdido, com isso, quase 30 anos” ("Diário de Coimbra", 10/12/2003).
Trancrevo, sobre esta temática, a voz de Howard Gardner, psicólogo da Universidade de Harvard e festejado autor da “Teoria das Inteligências Múltiplas"“Chegou a hora de alargar a nossa noção do espectro dos talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente. É um objectivo que perdemos completamente de vista. Em vez disso, submetemos toda a gente a uma educação em que, se somos bem sucedidos, a pessoa fica preparada para ser professor universitário. E, ao longo do percurso, avaliamos toda agente de acordo com esse estreito padrão de sucesso. Devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a ajudá-las a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultivá-los. Há centenas de maneiras de ser bem sucedido e muitas capacidades que nos ajudarão a lá chegar”.
Numa altura em que o flagelo do bullying nas escolas dos ensino básico e secundário está longe de estar resolvido, tendo merecido um post meu neste blogue, intitulado “Bullying nas escolas portuguesas” (04/03/2010), foi transposto, agora, com agressividade inaudita, para o ensino universitário, pela agressão física de um rapaz a duas caloiras, suas colegas de curso, segundo notícias de jornais do passado dia primeiro de Abril, durante praxes universitárias das margens do Mondego (e não só!), Para a tanto obstar, evoco, em legado de Albert Einstein: “É fundamental que o estudante adquira uma compreensão e uma percepção nítida de valores”.
Em exemplo contrário, não posso deixar de registar o seguinte testemunho, colhido do site da já, muitas vezes, referenciada Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques, que homenageia o seu corpo docente, preza o culto de disciplina dos seus alunos, embora, de certo modo, com a irreverência natural da juventude, e honra quem o escreveu. Reza ele:
“Naturalmente que, como em tudo, no respeitável corpo docente que ao longo dos anos leccionou na nossa escola, nem todos conseguiram ser populares, mas todos contribuíram, de uma forma ou de outra, para a nossa formação, quer como estudantes, quer como pessoas. Alguns deixaram a sua marca.(...) Ainda hoje, eu faço notar isso aos meus filhos, eu sei o nome dos meus professores, e faço questão de realçar a sua competência. Pena que nem todos eles possam já tomar conhecimento de que também fazem parte da nossa saudade académica”.
Last but not least, meu caro Adolfo, chego ao leit motiv desta minha missiva: agradecer-te o comentário que escreveste no meu post “O Pragmatismo do Ministro Nuno Crato” (28/03/2012). Do seu expressivo conteúdo, destaco, com muito agrado e não menor justiça, a prosa generosa e em bom estilo literário demonstrativa de uma boa formação ética e do cuidado posto no ensino da Língua Portuguesa dos alunos da “nossa” saudosa Escola. Aliás, matéria de destaque nos novos programas nacionais do ensino de português e aumento da respectiva carga horária, em remendo de um passado de irresponsabilidade, ou mesmo conivência, de antigos governos que retiraram grandes vultos da literatura nacional dos programas de então, tornando vítimas inocentes dessa aberrante medida antigos e actuais alunos ou, mesmo, diplomados saídos aos magotes de escolas de estudos superiores (mormente, privadas), quais padarias lançando fornadas e fornadas de pão mal cozido, de peso inferior ao tabelado e de exagerado preço.
Bem a propósito, disso mesmo nos deu prova Clara Ferreira Alves (“Revista Expresso”, 31/03/2012). Escreveu ela: “E prontos, como dizem os jovens letrados”! No dia seguinte, o “Suplemento 2”, publicado aos domingos no jornal “Público”, para além de erros de palmatória (mesmo sem os cinco olhos num tempo em que, por sorte de um destino malvado, a "escola era risonha e franca”, como dizia a propaganda do Estado Novo), dava conta , em crónica de acutilante ironia de um dos seus subdirectores, Nuno Pacheco, intitulada, “Pois é: antes fosse mentira”, de exemplos como estes que transcrevo com a isenção de me não tornar juiz em causa própria: “É vulgar ler, em textos de gente com idade para ter juízo, coisas como ´tentou que o jogo realiza-se hoje’, em lugar de ‘realizasse’. Nas legendas dos filmes, então, é de bradar aos céus. Ver uma frase como ‘O livro? Lê-lo-ei mais tarde´ é impossível. Já raros escrevem assim. Devem achar uma coisa medieval. É mais certo que escrevem ‘lerei-o mais tarde’”.
Ipso facto, em circunstâncias como estas, em que a tua escrita correcta, meu caro Adolfo, pode atribuir-te injustamente o apodo de ”bota-de-elástico”, por não acompanhares o “estilo literário” dos supracitados exemplos, não deveria ser corrigido Roland Barthes: Existe uma erótica do velho, o novo é sempre suspeito?
Um abraço grato pelo teu oportuno comentário,
Rui Baptista
Na imagem: Fotografia da fachada da actual Escola Industrial 1.º de Maio do Maputo, antiga Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques.
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