quinta-feira, 5 de abril de 2012

Os Bicentenários das Cortes de Cádiz e da Constituição de 1812


Novo texto de João Boaventura:

« [les lois]…elles sont justes, puisqu’elles font le bonheur de ceux qui les adoptent. »
Platon, Les lois. Paris: Gallimard (1997: 106)

« À ce train, on admettra que le Droit, dont on nous a enseigné qu’il est constitué d’un ensemble de règles confinant au juste, et qui, par leur constance, assureraient la sécurité et le salut des individus, n’est en réalité, jamais acquis. »
A.-J. Arnaud, Le Droit trahi par la Sociologie. Paris: L.G.D.J. (1998: 247)

“A Constituição é um texto puramente proclamatório, cujo destino só pode residir no incumprimento da maior parte das suas disposições.”
Manuel Queiró, Público, de 16.7.2003

O presente tema foi sugerido pelas várias notícias publicadas na imprensa diária sobre a persistência e convicção do Primeiro Ministro, de que inscrever “os limites ao défice” na Constituição, constituiria uma “regra de ouro”, e motivando o PS a aderir à medida para os procedimentos legísticos, mas o entusiasmo de um tem reflectido o desinteresse da oposição socialista, e a indiferença dos restantes partidos.

Bem se entende que a proposta não resolveria nada a não ser a de transmitir ao FMI a boa vontade política de prometer segurar os gastos públicos futuros, inúteis e sumptuosos. Primeiro porque a Constituição está recheada de “regras de ouro”, e sabe-se como tem sido difícil ao Tribunal Constitucional, constantemente assediado para manter as 296 “regras de ouro” vigentes incólumes, encontrar a unanimidade nos acórdãos. Veja-se o mais recente exemplo de outra “regra de ouro”, configurada no projecto de criminalização do enriquecimento ilícito, e chumbada pelo Tribunal Constitucional porque violava o princípio da presunção de inocência. Acrescendo ainda a asserção do sociólogo catalão Castells, ao considerar que o FMI não passa de um “fetiche” porque, em vez de dar dinheiro, se limita a oferecer ideologicamente uma linha de crédito como forma de o país recuperar a confiança dos investidores.

Esta leitura acidental de Passos Coelho ocorrida no momento em que se comemoram os dois bicentenários, o das Cortes de Cádiz (1810-1812) e o da promulgação da Constituição espanhola de 1812 – que inspirou a Constituição portuguesa de 1822 – questiona a credibilidade das Constituições criadas, ainda que representem o fim do Antigo Regime e a adesão ao liberalismo cujos princípios radicavam no combate ao intervencionismo do Estado.

A Constituição de Cádiz importa aqui assinalá-la como a grande inspiradora da Constituição de 1822, e quase aprovada como nacional, no momento histórico marcado pelo fim das invasões francesas, exílio do Rei no Brasil, e submissão ao jugo político e militar britânico, que redundou em manifestações de soberania popular no Porto e em Lisboa, com aclamações ao Rei e desejos do seu retorno. Opinava-se que a soberania, a representação nacional, só seria exequível pelo sistema eleitoral inscrito na Constituição de Cádiz, pelo que seria oportuno jurá-la, no que alguns constituintes, entre eles Fernandes Tomás e outros vintistas se demitiram. O Soberano Congresso, apoiando-se na de Cádiz, resolveu elaborar a Constituição (entre 1820-1822), marcando a transição da monarquia absoluta para a monarquia liberal, com a aquiescência de D. João VI que, no regresso do exílio, foi o primeiro a jurar a Constituição de 1822.

A este propósito, o jornal O Atleta n.º 6, de 5.5.1838, a páginas 42, tem este desabafo:

”Além da espanhola que adoptámos como nossa no começo da revolução de 1820, contamos com a de 1822, a de 1826, e actualmente com a do ano presente (1838) tantos Códigos, e tantas vicissitudes máximas, temos experimentado no espaço de 18 anos.”

Mas este reparo à adopção da Constituição de Cádis não parece correcto. Na 15.ª sessão do Congresso, de 13.2.1820, o deputado Fernandes Thomaz observara que: "A constituição espanhola não é um evangelho. Eu sou português e estou aqui para fazer uma constituição portuguesa e não espanhola”. E o deputado Loureiro diria mais tarde que “a constituição portuguesa não era a espanhola, promotora de anarquias”.

No dia 19 de Março de 1812, Cádiz proclamou a Constituição com muitos festejos e previstas iluminações nocturnas nas fachadas das Embaixadas Portuguesa e Britânica, e da Câmara Municipal, mas as chuvas torrenciais tiveram que as adiar para o dia seguinte. E no dia 29 de Março foi publicada a Constituição, observando judiciosamente um escritor espanhol que “Cádiz tinha sido a parteira da Nação, e o berço da Constituição”, considerando que esta inscrevia e consagrava a palavra Nação.

A Ilustração Portuguesa, n.º 345, de 30.09.1912, anunciava os festejos do Primeiro Centenário das Cortes de Cádiz, com a indicação das pessoas convidadas a participar, não apenas nacionais também dos países iebroamericanos (imagem em cima).

Presentemente existe o Museu Municipal das Cortes de Cádiz, que se convida a visitar, a quem de tempo e disposição disponha, considerando as ligações umbilicais da Constituição de Cádiz com a nossa Constituição de 1822, e que as comemorações, iniciadas em 15 de Março, terminam em 31 de Maio de 2012.

João Boaventura

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