quarta-feira, 5 de outubro de 2011

A ciência inútil

A propósito da recente homenagem ao Professor Jorge Dias de Deus, e como leitora dos seus magníficos livros de divulgação científica, aqui deixo um texto intitulado A ciência inútil, que faz parte no livro Ciência, curiosidade e maldição, publicado em 1986 pela Gradiva (páginas 138-140). Não obstante os anos que passaram, o texto continua actual e pertinente.
"Quando perguntaram a Faraday – físico inglês do século passado que descobriu, entre outras coisas, as leis da indução electromagnética que estão na base dos geradores de energia eléctrica – para que servia a ciência fundamental que ele fazia, Farady respondeu, inteligentemente, com outra pergunta. Para que serve uma criança acabada de nascer?

Esta resposta-pergunta de Faraday é talvez, para além do honestíssimo «não sei», a melhor que é possível encontrar à questão da utilidade da ciência fundamental. Que ela não leva directamente à elaboração de produtos para colocar no mercado, sejam eles produtos de beleza ou medicamentos, metralhadoras a sério ou metralhadoras a brincar, frigoríficos ou máquinas de lavar roupa, isso é claro. Mas servirá essa ciência fundamental para alguma coisa? E a criança acabada de nascer para que serve?

Curiosamente, Faraday mostrou ter uma melhor visão da ciência do que alguns dos seus colegas cientistas da pura ciência deste século. O matemático inglês Hardy que trabalhava, estava convencido de que a teoria dos números em que trabalhava, para grande satisfação sua, não servia para nada. O físico Rutherford, outro cientista puro, troçavam dos que sonhavam, usando a relatividade, extrair a poderosa energia armazenada nos núcleos atómicos. Tanto Hardy como Rutherford não perceberam o que fora evidente, quase um século antes para Faraday. Ajudando a formular a teoria dos números e a teoria dos átomos Hardy e Rutherford tinham responsabilidades de paternidade sobre a criança gerada das quais de modo algum se queriam ver livres. E o que é que ia ser de cada uma dessas crianças?

A inútil e exotérica teoria dos números está na base da actual teoria dos códigos, secretos e não secretos. O puríssimo Hardy encontra-se assim – coisa que o teria chocado imenso – envolvido na muito pouco limpa ciência militar, com os seus segredos e as suas espionagens.

A estranha e engenhosa teoria dos átomos, com a relatividade e a física quântica a ajudar, está na base da descoberta da mais espectacular fonte de energia até hoje conhecida: a energia nuclear, com a cisão e a fusão nucleares, com as bombas e as centrais nucleares, com a maravilhosa luz que o Sol cada dia nos dá.

Hardy e Rutherford não tinham razão. Embora Hrady só quisesse brincar com os números e a sua lógica e Rutherford com os modelos ingénuos dos átomos, a ciência aparentemente inútil que eles faziam ia preparar intelectualmente o caminho de onde as aplicações iriam surgir de forma inevitável.

Na história da ciência, e muito em especial neste século, o esquema repete-se. Não há ciência verdadeiramente inútil (excepto alguma ciência aplicada de rotina). Cada vez mais as aplicações inovadoras, boas ou más, nascem a partir da ciência fundamental. E, em particular, não haverá desenvolvimento tecnológico num país onde a liberdade da ciência fundamental não estiver assegurada e a ciência fundamental não for praticada e transmitida às nova gerações.”

2 comentários:

Pedro Andrade disse...

Gostei muito da análise! Hoje em dia parece que se um trabalho científico não tiver aplicação directa num medicamento ou numa tecnologia qualquer não vale a pena ser feito. Quantas vezes não vemos comentários a notícias de novas descobertas do género "isto não serve para nada", ou "façam alguma coisa importante", esquecendo-se que a ciência, mesmo que eventualmente um dado ramo não tenha aplicações práticas, é um dos grandes motores do desenvolvimento humano.
Como biólogo, fico particularmente irritado por perguntas do género "para que serve a evolução", seguidas de respostas invariavelmente ligadas ou a resistência microbiana a antibióticos, ou à necessidade da conservação da biodiversidade, e com isto esquece-se que os trabalhos de Darwin mudaram a forma como as pessoas vêm e se relacionam com o mundo vivo e a Natureza. Tal como as descobertas de Galileu, Newton, Einstein, e inúmeros outros cientistas anónimos que pouco a pouco trabalham para construir a imagem do mundo em que vivemos. Não é que a aplicabilidade prática do conhecimento científico seja de extrema importância - no fundo gasta-se dinheiro para fazer investigação, investigação essa que muitas vezes é feita à custa do dinheiro dos contribuintes, e por isso tem que ser bem controlada. Mas a ciência inútil serva para muita coisa!

Anónimo disse...

Excelente post e excelente comentário.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...