quinta-feira, 13 de maio de 2010

Ordens Profissionais

“Se os cidadãos são livres para se associarem devem sê-lo igualmente para se dotarem com os estatutos e regulamentos que lhes pareçam mais apropriados ao fim a que se miram” – Encíclica Rerum Novarum, Papa Leão XIII.

Embora não podendo deixar de me penalizar por não ter sido capaz de passar a mensagem da criação da Ordem dos Professores a horizontes mais vastos, dois esclarecedores comentários sobre a temática que defendo mais que justificam a reprodução integral que deles farei a seguir. Rezam eles, por ordem cronológica de publicação:

1.º comentário (in "Uma carta sobre a Ordem dos Professores"):

Partilho a certeza de que só através de uma Ordem de Professores se poderia pôr cobro ao processo em curso que tem como objectivo transformar pessoas licenciadas em lesmas num ninho de abelhas, incapazes de mel. 'The heavy mortal hopes that toil and pass? Mesmo que assim seja, a sua tenacidade, Rui Baptista, é digna de assinalar no contexto castrador, imbecil e muito perigoso em que nos encontramos. Gostava de contribuir, mas não sei como. Isto já me parece um beco sem saída, pelo menos pela via pacífica” (anónimo, 11/05/2010; 20:38).

2.º comentário (in, “Resposta de Santana Castilho a Mário Nogueira"):

“’Sem espinhas!"’A clarividência desinteressada é sempre bem’melhor que um certo engajamento limitativo do horizonte de resolução das questões em jogo. A par da clarividência e do saber desinteressado urge a instituição que melhor enquadrará, estou certo, um verdadeiro e sereno rumo para a educação em Portugal -- uma "ordem dos professores". Não será a situação ideal para uma profissão quase liberal estar cingida pelo espartilho de uma ordenação institucional; apenas o momento político-educativo quase caótico o exige. Diria mesmo tratar-se de uma emergência nacional” (Miguel Portugal, 12/05/2010; 23:55).

Nem de propósito, em entrevista desta semana a Miguel Sousa Tavares na SIC, o combativo bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho Pinto, em crítica aos sindicatos dos magistrados defendia que a função dos sindicatos é, por tradição histórica,” a defesa de melhores salários e menos horas de trabalho”.

Uma conquista que eu não ouso sequer pôr em causa por dela muito beneficiaram os trabalhadores, de entre eles, os próprios professores. Contudo, contudo (repito) eu entendo que o magistério transcende estas finalidades. Ou seja, deve ir para além dela sacudindo a tutela asfixiante das entidades oficiais, através da criação da Ordem dos Professores mesmo quando exercida em regime de contrato de trabalho porque como doutrinou o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, Lopes Cardoso, essa profissão [mesmo quando em regime de contrato de trabalho] deve ser reconhecida como relevando de grande valor, precisamente porque exigindo, pelo menos, uma independência técnica e deontológica incompatível com uma relação laboral de pleno sentido” (“Cadernos de Economia”, Publicações Técnico-Económicas, ano II, Abril/Junho de 94).

Nessa mesma revista e nessa mesma altura, Costa e Sousa, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos não se escusa, na cerimónia que assinalou a criação do Conselho Nacional de Associações de Profissões Liberais, em dar uma definição de profissão liberal adaptada aos tempos que correm quando diz:

“Claro está que surge imediatamente a questão do número crescente de profissões ditas liberais que exercem a sua actividade não em regime livre, mas directa ou indirectamente por conta de outrem, quer no sector privado, quer público. Parece que nestes casos a profissão perderia a característica liberal . Devemos concluir que assim não sucede – e este é um conceito muito importante que convém reter – isto é, o carácter liberal é próprio da profissão e não da relação laboral da pessoa que a exerce , desde que seja mantida a absoluta independência laboral. (…) Um outro aspecto importante é a natureza do trabalho. É característica comum às profissões liberais produzirem trabalho de natureza intelectual para o que é necessária uma cuidada preparação técnica e científica, e daí a necessidade duma formação universitária para o exercício da maior parte delas".

Ou seja, se assim não fosse o médico só exerceria uma profissão liberal no seu consultório privado e por conta própria. Nos hospitais exerceria uma profissão não liberal. Não é esse o caso, como foi reconhecido, por exemplo, num “Acordão do Tribunal da Relação de Évora" (31/01/2006), que se transcreve no que ao assunto diz respeito:

“Na verdade, o falecido marido da A. era médico ainda que subordinado a um contrato de trabalho, exercia a actividade profissional de médico.Ora, em primeiro lugar as profissões liberais podem ser exercidas através de contrato de trabalho, como bem ressalva o art. 5.° n.° 2 da L.C.T.. E, em segundo lugar, é indiscutível que a profissão de médico é uma profissão liberal, talvez seja uma das mais antigas profissões liberais (nesse sentido veja-se o já revogado Código de Imposto Profissional que na tabela em anexo considerava como profissão liberal, entre outras, a de médico - Tabela a que alude o art. 2.° al. c) do Decreto-Lei 44 305 de 27/04/1962”.

Anos mais tarde (2004), Adriano Moreira no Seminário “Reflexos da Declaração de Bolonha”, com a autoridade reconhecida pelos seus pares académicos e políticos, estabelece doutrina sobre profissão liberal:

“Convém recordar que o conceito de profissões liberais está historicamente relacionado com um saber reconhecido valioso pela comunidade, mas também com o exercício independente de vínculos de subordinação a entidades orivadas ou públicas, Profissões clássicas, em que se destacam o direito, a medicina, a arquitectura, mais tarde a engenharia [há aqui um pequeno equívoco: a Ordem dos Arquitectos foi criada pelo decreto-lei 176/98,de 15 de Dezembro, tendo sido criada a Ordem dos Engenheiros 62 anos antes: Decreto-Lei 27.888/36, de 24 de Novembro] , preencheram o núcleo duro do conceito, fortalecendo o prestígio pelo envolvimento nos grandes desígnios dos titulares do poder político, ajudando a perpetuar na memória pelas grandes intervenções legislativas, pela monumentalidade dos empreendimentos, pelo amparo às forças combatentes. As suas Ordens forma responsáveis pela ética do exercício, e essa ética teve sempre uma presença considerável na evolução da comunidade, e da sua relação com o poder político, apoiando o prestígio das Universidades que lhes deram a primeira credencial do título académico nobilitante.

Talvez por isso, quando vejo outras profissões representadas por ordens profissionais me interrogo sobre a relutância da classe docente em ser representada por uma ordem profissional para ter assento, de facto e de jure, na elaboração de programas escolares e de exames, e de representação ética, sim, ética, sobre os deveres e os direitos da classe. A criação da Ordem dos Professores não pode ser vista como um caso de amor ou ódio em que impera o sentimento sobre a razão. Discutamos, pois, a criação da Ordem dos Professores sem nos deixarmos levar pela posição cómoda de deixar correr o marfim…e logo se verá!

Será pedir muito, a ponto de me poderem amarrar ao pelourinho de eu estar a defender uma causa com intuitos pouco claros? Logo eu que aposentado estarei arredado de nela estar inscrito? Esta a prova da minha isenção pela luta que mantenho sobre a criação de uma Ordem dos Professores.

Infelizmente, fica-me este desejo muito forte ainda não realizado e, por isso, tão-só, resta-me o fraco consolo de transcrever uma mensagem que é um forte apelo à perseverança dos que lutam por uma causa que consideram justa:

“Nas planícies da hesitação
Branqueiam os ossos de incontáveis
Milhões os quais, na alvorada
Da vitória, sentaram-se para descansar.
E, descansando, morreram"

Não se alhearam os autores dos dois comentários aqui transcritos de uma discussão que diz respeito a todos os professores que não querem continuar “arrabaldes de si próprios" (Fernando Pessoa) com a cidade a ser ocupada pelos locatários da 5 de Outubro que devem ser tidos como hóspedes indesejáveis por quererem perpetuar em suas mãos a tirânica soberania que, noutras profissões de idêntica formação académica, competem às respectivas ordens profissionais por poderes inerentes às associações públicas que lhes são atribuídas por disposições constitucionais.

Justifica-se plenamente, portanto, esta singela homenagem que presto aos subscritores dos dois comentários aqui transcritos numa altura em que, como escreveu Marguerite Yourcenar, "toda a verdade gera um escândalo".

7 comentários:

Rui Baptista disse...

Na gravura do meu "post" estão representados bastonários de algumas ordens profissionais.

joão boaventura disse...

Caro Rui Baptista

No presente momento o Estado encontrou no Sindicato(s) dos professores a arena onde os actores educativos ou educacionais fixam a sua atenção para os distrair e impedi-los de se centrarem nos problemas mais agudos e fundamentais, para os quais o mesmo Estado não encontra, por incompetência ou ignorância, soluções.

E este cenário repetido até à exaustão, serve perfeitamente como deleite espiritual para quem, como o Estado, se julga único detentor da gestão educativa, e como único detentor da economia, com os resultados críticos a desnudarem a total ausência de discernimento.

Resulta daqui um crescimento inusitado e inapropriado do referido Sindicato que lentamente vem ganhando terreno em funções que caberiam a uma Ordem dos Professores.

A própria Constituição lhe abriu as portas quando, no n.º4 do art.º 267 da Constituição, explicitou que "As associações públicas só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas, não podem exercer funções próprias das associações sindicais e tem organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”.

A tradução deste articulado aponta para um critério num só sentido, ou seja, as "Ordens não podem exercer
funções próprias das associações sindicais", donde se conclui, por a Constituição ter sido construída num meio muito agitado de extremismo político, que "os Sindicatos podem exercer funções próprias das Ordens".

Posto isto, os Sindicatos, porque legitimados pela omissão, começaram a extravasar das funções laborais (horários e salário) para outras funções: pedagógicas, didácticas, deontológicas, docimológicas (avaliação de professores e alunos), segurança nas escolas e provavelmente policiamento.

E a continuar nesta aceitação passiva e conivente do professorado, acabar-se-á na criação de um Sindicato monstro em luta permanente com o outro monstro da 5 de Outubro.

Fica assim desenhada as razões que levam e continuam a levar os Sindicatos a oporem-se à criação da Ordem dos Professores. Porque pretendem conquistar ideologicamente a Escola, para a roubar à ideologia do Ministério.

Chegados aqui acabou o sossego nas Escolas que passarão a ter uma bicefalia no topo, preocupados no domínio e no poder. As escolas serão os instrumentos de que o Ministério e o Sindicato se servirão, mais do que para servi-las, servirem as suas ideologias.

Quem ainda não viu este filme, devem, os professores e os alunos, sujeitarem-se ao futuro que os espera.

O filme original foi a luta entre Cunhal e Mário Soares. Ganhou então Mário Soares.

Hoje a luta repete-se entre as mesmas duas ideologias, já não no campo político, mas no campo educacional. Com uma certeza: a escola perderá sempre.

A Ordem defendida arduamente pelo Dr. Rui Baptista ainda virá a tempo de salvar a escola das duas garras?

Rui Baptista disse...

Caro João Boaventura:

Mais uma vez fui bafejado pela sorte, agora, com o seu comentário em que encontro arrimo para a defesa da criação da Ordem dos Professores , qual Sisifo hodierno que chegado ao cume de íngreme montanha vê rolar escarpa abaixo um sonho que queria ter tornado realidade.

Mas tanto forcejei que concluí que pelo seu trabalho de natureza intelectual a profissão docente bem se enquadra nas fronteiras de uma ordem profissional pelas razões citadas no meu “post” e doutrinadas, em 94, por Lopes Cardoso, ex-bastonário da Ordem dos Advogados, e por Costa e Sousa, presidente do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos.

Acresce, por seu lado, que o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (2006), também citado (id., ibid), garante uma visão, se não “lato sensu”, pelo menos “stricto sensu”, de profissão liberal. A crença, sincera ou maldosa, que expurgava a docência do âmbito de profissão liberal, servia de arma de arremesso nas mãos de todos aqueles que se opunham, com argumento havido como irrespondível, a quem defendia uma Ordem dos Professores.

Ultrapassado este obstáculo, que alguns desejavam que fosse inamovível Rochedo de Gibraltar, restava-lhes, como “ultima ratio”, o argumento : “Estou contra a criação de uma Ordem dos Professores, porque estou!”

Infelizmente, o seu comentário vai muito para além de um negro presságio. Pelo andar da carruagem, é uma análise sociológica lúcida do que se passa no campo profissional docente e nas suas relações com o ministério da Educação e algumas associações sindicais.

Termina o seu comentário com a pergunta se a Ordem defendida arduamente por mim ainda virá a tempo de salvar a escola de duas garras. Isto é, de duas ideologias educacionais representadas por Cunhal e Mário Soares.

Como a esperança é a última coisa a morrer, anseio bem que sim. E tudo continuarei a fazer para que assim seja, recusando-me a comungar do desalento do poeta de “Orpheu”: “Já não me importo/ Até com o que amo ou creio amar./Sou um navio que chegou a um porto/ E cujo movimento é ali estar”.

Cordialmente,
Rui Baptista

Anónimo disse...

A “bicefalia do domínio e do poder” (expressão de João Boaventura) já se encadeirou na escola com a fisionomia alegre e festiva de casamento recente e duradouro. Os Directores sabem que isto é para durar e gostam, gostam mesmo muito. E os amigos deles também gostam, gostam mesmo muito. Com a conivência dos professores, claro, todos baralhados e lixados. Poucos foram os não foram realmente coniventes, e vêem-se agora com uma menção de avaliação que não lhes permite, por exemplo, subir de escalão (após muitos anos de congelamento de uma carreira em vias de extinção) e, principalmente, a “braços” com o subtil-eficaz desrespeito dos pares que, claro, tiveram bons e muito bons, (desrespeito esse que interfere no trabalho que passam a não poder fazer…)

“Depois da turbulência, veio o “refluxo” em que os velhos hábitos da antiga sociedade do medo voltaram, reinstalando-se nos comportamentos individuais e mesmo em múltiplas práticas institucionais” (José Gil, Em Busca da Identidade, o desnorte, p.10-11).

Uma Ordem de Professores já não vem a tempo, digo eu, com propriedade ou não (quem dera sem ela).

Mas virá ela a seu tempo?

Certamente que sim, Eros e Thanatos não passam um sem o outro. Virá o momento das rupturas trágicas, penso eu. Mas afinal, só o trágico é portador de transformação no homem…!!!

O contributo de Rui Baptista (e de todos os optaram pela reflexão honesta) para dignificar a profissão do professor é merecedor de todo o respeito. Não mobilizou como ambicionava (pelo menos para já), mas as suas palavras tiveram eco nas convicções de muitos outros, reforçando-as com a mais-valia da informação documentada. Esse mérito ninguém lho poderá tirar.

Rui Baptista disse...

Prezado anónimo:

O melhor proveito que eu tirei do meu post foi o ter-me posto em contacto com pessoas de elevada craveira cultural que muito o valorizaram. Despiciendo me parece dizer-lhe que me refiro à sua pessoa e a comentadores anteriores.

Mas debrucemo-nos sobre o cerne da questão. Percentagem esmagadora (e, por vezes, as excepções, em puro oportunismo, se tornam regra) do sindicalismo docente, em nome do slogan de “para igual trabalho igual salário” permitiu (e acarinhou, até, em vassalagem ao vil metal das quotizações) a inscrição de quem tivesse dado algumas aulas sem qualquer habilitação para tanto, estabelecendo confusão entre um sapateiro que toca rabecão e um virtuoso do violino.

“Nihil novi sub sole”! Já o próprio Engels em carta a Marx (1881) se queixava dum certo sindicalismo : “Aqueles piores sindicatos ingleses que se permitem serem liderados por homens vendidos ou, ao menos, pagos pelos burgueses”. Ou seja o sindicalismo do século XIX destinava-se (ou era pretendido que se destinasse) a operários tomando em mãos as rédeas do seu destino e não a homens vendidos.

Escreveu Eça, ser Portugal um país traduzido do francês em calão. “Mutatis mutandi”, o actual sindicalismo docente português está a copiar (e uma cópia é sempre pior que o original) os vícios do sindicalismo inglês quando são dirigidos por ex-docentes que passaram a fazer do dirigismo sindical uma verdadeira profissão. Li em tempos só faltar que seja criado um sindicato de sindicalistas para defender os seus interesses que deixaram de ser os da docência.

Quanto à conivência dos docentes para com este “statu quo” (de que todos nós de uma maneira ou de outra nos devemos responsabilizar), questão por si levantada com toda a pertinência, salta à vista desarmada o exemplo escandaloso da demissão dos professores do secundário ao votarem para o antigo cargo de presidente do conselho directivo indivíduos com um simples médio ou mesmo secundário. Como diz o povo, quem semeia ventos colhe tempestades…

Entretanto, cá continuo eu no papel quixotesco de defender uma Ordem dos Professores, agora com o lenitivo de saber que existem espíritos lúcidos, esclarecidos e bem intencionados que me acompanham numa jornada que acabará por ter o fim das causas justas. Leve o tempo que levar…mesmo que para isso sejam necessárias “rupturas trágicas”, como escreveu.

Cordiais cumprimentos,
Rui Baptista

Rui Baptista disse...

Correcção ao meu comentário a anónimo:

Na 7.ª linha, do 5.º §, onde escrevi"indivíduos com um simples médio ou mesmo secundário", deverá ser acrescentado curso: indivíduos com um simples curso médio ou mesmo superior.

joão boaventura disse...

Só para acrescentar que ao Estado interessa que o Sindicato alargue as suas competência para lá dos salários e dos horários dos professores, como é o caso das avaliações, e outras que a oportunidade do tempo esclarecerá, porque retarda a oportunidade da criação da Ordem.

O Estado é, assim, maquiavelicamente, conivente com a actuação do Sindicato nas áreas fora da sua jurisdição.

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