sexta-feira, 21 de maio de 2010

O mau estado da educação portuguesa

“O tempo passado e o tempo presente, fazem todos parte do tempo futuro.” (T.S.Elliot, 1888-1965).

O comentário que teve a gentileza de dirigir à minha pessoa, meu caro Fartinho da Silva (aliás, como tem feito outras vezes sempre com grande proveito meu), é digno do meu reconhecimento e duma resposta sob a forma de post não condicionado em termos de espaço.
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Como sabe, tenho sido um acérrimo crítico à involução que em Portugal se assistiu na formação de uns tantos professores com a complacência dos governantes e a água benta de uns tantos sindicalistas. E digo porquê. Aquando da subida à Assembleia da República da moção sobre a criação da Ordem dos Professores (2005), ela não passou com o argumento de estar para breve a publicação de uma lei-quadro que retirava às ordens profissionais a sua fundamental razão de ser: o sancionamento da qualidade dos cursos que davam acesso a uma determinada profissão.
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Como se deve lembrar, vivia-se então o período agitado da Ordem dos Engenheiros não reconhecer os cursos de “engenharia” da Universidade Independente que funcionava a todo o pano com o reconhecimento de qualidade de ensino universitário dado pelo próprio ministério do Ensino Superior.
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Como deve estar lembrado, também, o Partido Socialista quis retirar, inclusivamente, a prerrogativa do reconhecimento das licenciaturas às próprias ordens profissionais já existentes. Não o conseguiu, mercê de um forte movimento de contestação dessas associações profissionais, tentando fazer recair esse ónus sobre os professores, em medida draconiana, como se o Estado português estivesse satisfeito com o andar do comboio do nosso ensino, e da formação dos seus agentes (uma coisa não anda desligada da outra), de que o PISA viria a demonstrar o mau estado e os péssimos carris que ele percorria.

Claro que deste calamitoso statu quo não se pode alhear a forma como em Portugal se passou a encarar a formação dos professores do 2.º ciclo do ensino básico, em duvidosa promiscuidade de formação a cargo simultâneo da Universidade e das Escolas Superiores de Educação. Até então a formação de professores de matemática (uma matéria em que as bases são os sólidos caboucos de conhecimentos mais avançados), mesmo, ou principalmente, para este grau de ensino (antigo 1.º ciclo dos liceus, depois ensino preparatório) estava a cargo de docentes licenciados por universidades passando, posteriormente, para as mãos de licenciados pelo politécnico para a docência em matemática e/ou ciências da natureza para o escândalo ser mais gritante.

E os resultados não se fizeram esperar: ”Zero foi a pontuação obtida na realização de problemas matemáticos por 40% dos 118 mil alunos, do 4.º e 6.º anos de escolaridade, que efectuaram provas de aferição, no ano lectivo de 2000/2001” (“Público”, 09/02/2002). Até acredito que esta percentagem possa melhorar substancialmente devido a perguntas deste ano nesses exames de que colho, uma vez mais, o simples exemplo da difícil resposta ao resultado da soma de 5+2!

Aliás, esta situação aberrante e injusta, mereceu, por parte de uma aluna da Faculdade de Ciências e Tecnologia - numa das mais concorridas Assembleias Magnas da Academia de Coimbra, em que se discutia a, ainda mais aberrante, proposta governamental de as escolas superiores de educação passarem a formar, também, professores para o 3.º ciclo do básico - que se assumiu “setenta por cento marxista”, a revolta gritada a pleno pulmões: “Nós [os universitários] suamos mais e trabalhamos mais do que os do Politécnico” (“Público”, 01/11/2001). Na mesma altura, e em idênticas circunstâncias, o Senado Universitário da Universidade de Coimbra não se guardou em declarar, urbi et orbi que “as propostas do governo subverteriam as missões e os objectivos dos Institutos Politécnicos e das Universidades e se traduziriam numa inaceitável degradação do ensino”. Esta posição foi, prontamente, secundada pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas.

Tudo isto (que não é nada pouco) faz com que todos nós nos recordemos, com respeito e saudade, dos professores do nosso tempo liceal (que os ventos da modernidade, mesmo pouco antes de 25 de Abril, fragmentou em dois ciclos do ensino básico (2.º e 3.º ciclos) e em ensino secundário), que nos marcaram pela positiva (a memória das pessoas não pode ser aprisionada em conveniência de quem quer que seja), de que é exemplo a crónica “O render dos heróis”, “Diário de Notícias", 22/10/1995, da autoria de Clara Pinto Correia. A sua autora, a páginas tantas, escreve, em homenagem a essas mulheres e homens que forjaram, em plena ditadura do Estado Novo, algumas das melhores cabeças pensantes do nosso tempo: “A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu mundo de trevas que se desenha o mundo da civilização. É nesse mesmo fundo que, de tempos a tempos, o brilho se dissolve e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. Não temos nenhuma razão, pelo contrário, para pensar que não volte a acontecer. Para evitar que assim seja temos nos professores do liceu [esclarece ela, mesmo que liceu seja uma palavra que já não se usa, dá jeito, no caso vertente, para simplificar o discurso e toda a gente perceber a que é que ela se refere] a mais importante das nossas armas. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto”.

Ou seja, seria bastante mais cómodo e, até, digno de louvor de néscios dizer que tudo corre a contento no ensino de Portugal, tecendo subservientes loas aos governantes que deixaram mergulhar no caos este país do início do século XXI, merecedor do puxão de orelhas que as locomotivas do pesado comboio da União Europeia lhe deram pelos disparates que se andaram a cometer com a conivência de um segredo que se desejou afastado daqueles que serão as suas vítimas mais directas e mais inocentes.

Meu Caro Fartinho da Silva. Termino com a transcrição de seu desalentado post scriptum: " Sinto uma enorme tristeza por sentir que Portugal ainda não passou a fase da adolescência, apesar dos seus 900 anos de História”. Permita-me, todavia, com a frontalidade que usa para comigo, que o corrija. Portugal mais se assemelha, hoje, a um velho gagá que nada aprendeu com os erros da juventude reproduzindo-os e ampliando-os até. Já Eça (autor privilegiado das minhas citações), se lamentava em finais do século XIX (1891): “Eu creio que Portugal acabou. Só o escrever isto faz vir as lágrimas aos olhos, mas para mim é quase certo que a desaparição do reino de Portugal há-de ser a grande tragédia do... século."

Estamos no princípio de um novo milénio, o reino de Portugal substituído por um regime republicano, mesmo sem o desânimo de Eça, desperta-me o temor de que a República Portuguesa corre um grave perigo ou… no mínimo um grande susto. Julgo que todos nós temos a obrigação patriótica (não com aquele patriotismo balofo que os políticos usam para sacudir a água do capote das suas responsabilidades) de dizer, alto e bom som, que o rei vai nu. E, dentro das nossas fracas possibilidades, para não nos tornarmos coniventes desta situação, cobri-lo, nem que seja, apenas, com um modesto pano de serapilheira!

4 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro Dr. Rui Baptista: como
é que a gente pode clamar... que "o rei vai nu", se é coisa que já não temos?!... Não será isto... uma impossibilidade metafísica? JCN

Ana disse...

É interessante constatar que os problemas que na altura se associaram à monarquia continuam na ordem do dia. No entanto, não esqueçamos que de monarquia temos muitos anos e de república só uns poucos. Não esqueçamos também que somos um povo cujas "classes" altas, as que tb tinham acesso à letracia e educação, sempre se habituaram a torcer o nariz a quem trabalha. Trabalhar é coisa de pobre! Ou de escravo! Só muito recentemente é que esta mentalidade se foi esbatendo, sendo contudo ainda visivel...pois se quem mais trabalha é quem menos rende com isso! O Rei vai mesmo nu, sem dúvida.

Mas a história do "já não se fazem professores como antigamente", e quem diz professores pode dizer outra profissão, não impede que alguma azia se me instale no estômago ;p... não tenho dúvidas em achar que há cinquenta anos atrás estes mesmos temas estariam sendo dissecados num qualquer café ou sala de reunião. Porque, como já se disse, e como tb eu acho, ainda há bons profissionais, feitos da cepa correcta ou pelo menos batalhando para que assim se mantenham.

Outra questão, prende-se com a excessiva burocratização do serviço docente. Enquanto o dia só tiver 24 horas, gostava de saber em que alturas é que o professor conseguirá dirigir a sua atenção para a sua própria formação contínua, mesmo que auto-didacta. Se ele já mal consegue assegurar a preparação das matérias a serem leccionadas. Se ele já tem de lidar com programas extensos e burocratizados e totalmente inadequados. Se ele é constantemente enxovalhado na praça pública, devido aos seus maus representantes sindicais. Se ele já mal consegue viver. Se muitos são mal pagos e acabam por ter de aceitar a situação de continuarem mal pagos porque caso contrário não conseguem desdobrar-se para cumprir a enchente de tarefas que lhe cabem agora.

Na verdade, o grande problema não será ter deixado que a política se imiscua na educação e dite o seu rumo?...

E não dirão os adeptos de teorias mais conspirativas (e mais do que nunca vivemos num mundo em que uma conspiração facilmente poderia ser montada), com a sua razão, que o facilitismo e a estupidificação das massas permitirão controlá-las melhor. Manter na ignorância, para reinar. Como sempre foi feito...

Será que alguma vez deixámos de ter reizinhos e cortezinhas?...

Acho, também, que somos um povo que fala muito. Muito e bem, por vezes. Mas quando se trata de agir, poucos se mexem...

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Baptista,

Concordo com este seu post, no entanto continuo a considerar, tal como Vani, que enquanto as escolas estiverem ao serviço de interesses pouco claros não vamos a sítio nenhum. Temos que ser mais pragmáticos.

Anónimo disse...

Cara senhora: dadas as circunstâncias, não seria altura de, em vez de se dizer "o rei vai nu", passar a dizer-se "o p. residente vai nu"?!... É que, por estas bandas, já pouca gente faz ideia do que seja um rei, não obstante continuarmos a utilizar termos como "reinação", "reinadio" e quejandos. Quando é que deixarão de "reinar" connosco? JCN

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