terça-feira, 11 de maio de 2010
De Neandertal, todos temos um pouco
Nova crónica de António Piedade saída antes no "Diário de Coimbra":
Em Agosto de 1856, no pequeno vale de Neander, na Alemanha, são encontrados, por mineiros numa gruta, ossos de um esqueleto de um “homem antigo” baptizado como Neandertal 1. Três anos depois é publicada a obra “As Origens das Espécies”, de Charles Darwin.
Quase meio século após, ao fim da tarde de 8 de Novembro de 1895, o físico alemão W. C. Röntgen conseguiu fazer, pela primeira vez, uma emissão controlada de uma radiação electromagnética que ele temporariamente baptizou por radiação X, uma vez que não sabia de que tipo de radiação se tratava. A designação raios-X propagou-se século XX adentro e todos hoje entendemos a importância e a utilidade dessa descoberta. É quase óbvio no que à Medicina diz respeito para o diagnóstico auxiliar, mas também nas Ciências dos Materiais é muito útil na análise estrutural fina da microestrutura de ligas metálicas, por exemplo.
Contudo, o uso dos raios X, principalmente o registo e interpretação dos padrões resultantes da sua difracção ao atravessar estruturas cristalinas (devemos muito deste trabalho teórico ao físico-químico britânico W. Bragg), permitiu desvendar a estrutura tridimensional de moléculas biológicas, das quais talvez a mais famosa seja o ADN (Watson, Crick, Franklin, Wilkinson, 1953). A resolução da estrutura permitiu perceber que a forma desta biomolécula está intrinsecamente associada à sua função biológica. A estrutura em em duas fitas helicoidais homólogas, conectadas por pares de bases complementares (A:T , G:C), permite não só a sua cópia fiel durante a divisão celular, como também a detecção de erros, mutações pontuais, por maquinaria proteica específica. De não menos importância é o facto de este arranjo tridimensional garantir a conservação da informação genética herdada de ancestrais longínquos, talvez desde as primeiras células há cerca de 3600 milhões de anos. Daí que a descodificação dos genes inscritos no ADN, para além de nos permitir perceber melhor como é que os organismos se desenvolvem e interagem com o meio envolvente, constituí uma poderosa ferramenta de detecção, quer de graus de parentesco contemporâneos, mas também para abrir uma janela no registo cronológico das relações genealógicas (filogenéticas, para ser mais preciso) entre espécies que existiram num passado distante.
O livro da vida (o genoma) não é só um manual de instruções que permite à célula, ou ao organismo, construir-se e manter-se vivo, com mais ou menos saúde. Estão também nele inscritas a história dos nossos antepassados, a aventura dos nossos genes.
As biotecnologias potenciadas pela descoberta da estrutura tridimensional de biomoléculas, e o entendimento de que a sua forma determina a sua função, espoletou um sólido conjunto de técnicas de biologia molecular no último quartel do século XX, como seja a da Reacção em Cadeia da Polimerase (PCR, em inglês), que permite amplificar amostras vestigiais de ADNs até à quantidade necessária para as analisar com confiança e em laboratórios independentes.
A descodificação do genoma humano, em 2002, foi sem dúvida um grande marco. A compreensão de como os cerca de 30 mil genes funcionam ainda está em curso, mas trará muitas aplicações concretas para a saúde, para uma medicina ajustada a cada um. A cartografia genómica de outros primatas que se seguiu, veio permitir confirmar relações de parentesco mais ou menos afastadas com outros hominídeos, presentes e passados, e também colocar novas questões, como é próprio do método científico. Por exemplo, esta antropologia crono-molecular, tem permitido confirmar trilhos de migrações milenares dos nossos antepassados hominídeos. Paralelamente, o apuramento das técnicas de genética molecular, as melhorias substanciais nas boas práticas laboratoriais que asseguram, com muita confiança e reprodutibilidade, a eliminação de possíveis contaminações, com microrganismos ou mesmo com o ADN dos investigadores actuais, das amostras de ossos fossilizados a analisar, começa a dar os seus frutos. Recentemente, soubemos de que terá co-existido um terceiro hominídeo juntamente ao H. sapiens sapiens e ao H. sapiens neandethalensis: o Homem de Denisova.
Agora, a equipa liderada por Svante Pääbo, do Max Planck Institut de Leipzig, Alemanha, que conduziu o estudo do ADN mitocondrial da falangeta fossilizada de Denisova (aqui), publicou na edição da semana passada da revista Science (aqui) a sequenciação anunciada e ansiada do genoma do H. sapiens neandethalensis. A partir de 21 ossos de Neandertais, encontrados na caverna croata de Vindija, o estudo agora publicado mostra que os humanos modernos partilham genes comuns aos Neandertais. Ou seja, significa que o cruzamento entre as duas subespécies foi possível e deixou descendência fértil.
Afinal, a criança do Lapedo pode mesmo ter sido o resultado do cruzamento entre um(a) Neandertal e um(a) Sapiens contemporâneos e pré-lusitanos. E de Neandertal todos temos um pouco (entre 1 a 4% dos genes). O que é que eles fazem? A ver vamos.
António Piedade
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12 comentários:
Segundo o "mito" (chamemos-lhe antes novela mexicana...), wilkinson terá mostrado a Watson e Crick, sem autorização, o resultado de cristalografia cabal de Rosalind Franklin. Segundo o mesmo mito, esta seria uma estrela em ascensão e wilkinson teria "invejite aguda", daí o ter fornecido provas à "concorrência". Portanto, baseada neste "mito", a ser verdade (e Watson, com as suas posturas, apenas tem levado a fazer crer q será verdade...), repudio veemente a associação de wilkinson à primeira descrição da dupla hélice... :-p :D
A propósito de PCR, partilho aqui os seguintes videos do youtube, por uma questão lúdica (se é que não conhecem já):
http://www.youtube.com/watch?v=-bF2QalUj1Y
http://www.youtube.com/watch?v=_zxr-52KwKo
eheheh :)
A Vani
Partilho o seu repúdio pelo prémio nobel também ter sido atribuido a Wilkinson.
Também eu tenho promovido o papel central, se não mesmo decisivo, da Rosalind Franklin, na elucidação da estrutura helicoidal do ADN. Como deverá saber, o próprio Watson, no seu livro "A dupla hélice" presta-lhe o seu tributo, apesar de póstumo (ela morreu em 1958, antes da atribuição do prémio novel em 1962) e reconhece o trabalho dela, ainda hoje muitas vezes injustamente ignorado.
Se mencionei Wilkinson, neste artigo, foi por intenção de fomentar este tipo de esclarecimentos e muito menos por qualquer reconhecimento a Wilkinson, que nesta história, foi só o superior hierarquico de Rosalind.
António Piedade
É a prova de que nem sempre colhem os louros aqueles que o merecem. Talvez Watson e Crick pudessem ter desenhado na mesma o modelo da dupla hélice mesmo sem a prova de cristalografia de Rosalind Franklin, mas como se costuma agora dizer, poder, podiam...mas não era a mesma coisa. Lol.
E como exemplos destas novelas mexicanas dos bastidores da Ciência não faltam, quem sabe q outros grandes cérebros não foram plagiados e injustamente associados a determinadas descobertas-chave.
Esquecemo-nos sempre que tudo é um trabalho de equipa e nunca de uma pessoa só.
Segundo li, Rosalind só não recebeu o Nobel porque já tinha falecido e o Nobel não é entregue postumamente. Mas o seu contributo não será esquecido, tanto no deslindar da estrutura 3D do DNA como na própria técnica de cristalografia. ^_^
Desculpe a extensão do comentário, mas admiro esta cientistas desde que li sobre ela :).
* eu queria dizer, que outros grandes cérebros terão sido injustamente afastados da ribalta ou da associação a uma descoberta.
Há dias em que as gralhas estão coladas à ponta dos dedos, peço desculpa.
"LIÇÃO DE TOLERÂNCIA"
Ao Prof. Erik Trinkaus
Dou-lhe toda a razão, sinceramente,
insigne Professor, pela censura
que faz ao mundo de hoje,intransigente,
de acordo com a sua conjectura.
Persista embora alguma discordância,
tudo faz crer que entre os Neandertais
e os nossos primitivos ancestrais
houve uma relativa tolerância.
Contrariamente a nós, civilizados,
onde o racismo ainda é uma praga,
eles nos dão lições que não têm paga.
Tratando-se de ramos afastados
da espécie humana em franca divergência,
nada se opôs à sua convivência!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Na verdade, o instinto de protecção de um território ou de um clã ainda permanece nos humanos actuais. Daí a violência e agressão para com os que são, de alguma forma, diferentes. Está-nos no sangue e por muito racionais que possamos ser, há instintos (hoje baptizados de preconceitos, no fundo) que ainda prevalecem. Acaba tudo por se resumir ao ver quem "marca mais território". Obviamente que é uma visão simplista, mas não encontro diferenças entre esta mania de catalogar e cartografar povos e terras e as brigas dos cães no meu quintal pelo dominio de uma determinada porção do terreno...
Tenho de confessar (já faço do blogue um confessionário...) que me entusiasma a ideia de uma outra espécie humana poder ter-se cruzado connosco e de carregarmos as provas desse encontro. ^_^ Quase que me leva a acreditar que um dia poderá existir uma versão melhorada do Homo sapiens actual, numa nova espécie (esperemos que não a espécie profetizada pelos teóricos de conspiração iluminati).
Acho de péssimo gosto... a comparação canina! JCN
O MENINO DO LAPEDO
(Ode solutrense)
Ao Prof. João Zilhão
Numa bela manhã de primavera
numa caverna escura como breu
algo de nunca visto aconteceu,
mas que somente agora se soubera.
A fim de se abrigarem da friagem
insuportável que fazia fora
um neandertal entrando se enamora
de ignota e feminina personagem.
Era uma sapiens que se extraviara
do respectivo grupo e que entretanto
naquela mesma gruta se acoitara.
Meses depois, para geral espanto,
desse fortuito encontro resultou
o estranho ser que há pouco se topou!
JOÃO DE CASTRO NUNES
Gostos não se discutem... ;-p
Por outras palavras: há gostos para tudo JCN
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