sábado, 30 de janeiro de 2010

O FINANCIAMENTO DA IDA À LUA


Ontem, a interessantíssima sessão de Maria Luísa Malato Borralho no Centro Ciência Viva Rómulo de Carvalho, em Coimbra, sobre Júlio Verne levou-me a reler passagens o livro "Da Terra à Lua". E na edição do projecto Gutenberg (Imprensa Nacional, 1874, tradução de Henrique de Macedo, "Lente de mathematica na escola polytechnica e astronomo no observatorio de marinha") do livro foi fácil encontrar a única referência a Portugal, que participou no projecto global (globalização "avant la lettre"!) com 30000 cruzados, pouco mas que, apesar de tudo, foi mais do que deu a Espanha, que andava a construir ferrovias (o TGV da época) e cujo espírito anti-científico é ridicularizado por Verne. Transcrevo o delicioso texto verniano, onde é patente uma humorística sociologia das nações, com o itálico meu sobre a contribuição ibérica:
"Tres dias depois da publicação do manifesto do presidente Barbicane estavam subscriptos nas differentes cidades da União, quatro milhões de dollars. Com esta somma, por conta de maior quantia, já o Gun-Club podia ir fazendo alguma cousa. Dias depois, noticiavam os despachos telegraphicos á America que as subscripções no estrangeiro eram cobertas com verdadeiro enthusiasmo. Alguns paizes faziam-se notaveis pela generosidade da sua offerta. A outros lá custava mais a desapertar os cordões á bolsa. Questão de temperamento.

Em summa, mais eloquentes são os algarismos que as palavras, e eis a descripção official das sommas que foram escripturadas no activo do Gun-Club, logoque se encerrou a subscripção.

A Russia deu como contingente a enorme quantia de trezentos sessenta e oito mil setecentos e trinta e tres rublos, e só poderá causar espanto a grandeza da quantia a quem desconhecer o gosto dos russos pelas sciencias, e o progresso que imprimem aos estudos astronomicos, devido aos numerosos observatorios que possuem, dos quaes um, o de mais importancia, custou dois milhões de rublos.

A França começou por se rir das pretensões dos americanos. Serviu ali a Lua de pretexto a mil calembourgs já estafados, e a algumas dezenas de vaudevilles em que o mau gosto e a ignorancia disputavam primazias. Porém os francezes, que já de antiga data trazem o habito de cantar e ainda em cima pagar, d'esta vez riram, mas tambem depois pagaram, subscrevendo com a quantia de um milhão e duzentos e cincoenta tres mil novecentos e trinta francos. Por este preço realmente assistia-lhes o direito de se divertirem um bocado.

A Austria, apesar dos seus apertos financeiros, mostrou generosidade bastante. Elevou-se a parte d'esta potencia, na contribuição geral, á quantia de duzentos e dezeseis mil florins, que bem boa conta fizeram.

Cincoenta e dois mil rixdales foi o obolo da Suecia e da Noruega. A cifra já era de consideração em proporção do paiz; porém, maior ainda teria sido, se a subscripção se tivera aberto ao mesmo tempo em Christiania e em Stockholmo. Seja lá por que rasão for, o caso é que os norueguezes não gostam de mandar o seu dinheiro para a Suecia.

A Prussia deu testemunho, mandando duzentos e cincoenta mil thalers, de que prestava á tentativa a sua alta approvação. Os differentes observatorios d'esta nação contribuiram de boa vontade com uma quantia importante, e foram dos que com mais ardor animaram o presidente Barbicane.

A Turquia portou-se com generosidade, e não admira porque estava pessoalmente interessada n'aquelle assumpto, visto ser a Lua quem lhe fixa o curso dos mezes e a epocha dos jejuns do Ramadan. Nem lhe ficava bem dar menos de um milhão trezentas e setenta e duas mil seiscentas e quarenta piastras, que foi o que effectivamente deu, e com ardor tal que parecia até dar a entender que houvera certa pressão da parte do governo da Porta.

A Belgica distinguiu-se entre todos os estados de segunda ordem por um donativo de quinhentos e treze mil francos, proximamente treze centimos por habitante.

A Hollanda e suas colonias tomaram parte na operação com cento e dez mil florins, mas sempre foram pedindo cinco por cento de desconto, visto pagarem de contado.

A Dinamarca, um tanto restricta em extensão territorial sempre rendeu novecentos mil ducados de oiro fino, o que é prova do amor que os dinamarquezes consagram ás expedições scientificas.

A Confederação germanica cooperou com trinta e quatro mil duzentos e oitenta e cinco florins; não se lhe podia exigir mais, nem que lh'o exigissem o daria.

Apesar dos seus grandes apuros a Italia sempre encontrou nas algibeiras dos seus filhos duzentas mil liras, mas foi preciso rebusca-las bem. Se a Italia já estivera de posse do Veneto melhor iria o negocio, mas o caso é que ainda não possuia o Veneto.

Os Estados da Igreja entenderam não dever mandar menos de sete mil e quarenta escudos romanos, e Portugal levou a sua dedicação pela sciencia até trinta mil cruzados.

O Mexico, esse deu o obolo da viuva, oitenta e seis piastras fortes; verdade é que os imperios, nos primeiros tempos da sua fundação, sempre vivem pouco á larga de meios.

De duzentos e cincoenta e sete francos foi o auxilio modesto prestado pela Suissa á obra americana. Força é dize-lo e francamente, a Suissa não percebia o lado pratico da operação; não se lhe afigurava que o acto de arremessar uma bala á Lua fosse preliminar adequado para entabolar relações commerciaes com o astro das noites, e n'este presupposto pareceu-lhe pouco prudente empenhar capitaes em tentativa tão aleatoria. E no fim de contas talvez a Suissa tivesse rasão.

Em Hespanha é que foi impossivel juntar mais de cento e dez reales, circumstancia a que serviu de pretexto ter a nação que acabar os seus caminhos de ferro. Mas a verdade é que a sciencia não é cousa lá muito bem vista em tal paiz, que ainda está um tanto atrazado. E demais, havia certos hespanhoes, e não eram dos menos illustrados, que não concebiam com exactidão que relação havia entre a massa do projectil comparada com a da Lua, e que temiam que o choque fosse alterar a orbita do astro, perturba-lo no seu papel de satellite, provocando-lhe a quéda na superficie do globo terrestre. Em casos taes o melhor era abster-se. E foi o que, com differença de alguns poucos reales, fizeram os hespanhoes.

Falta a Inglaterra. Já dissemos com que desdenhosa antipathia fôra ali recebida a proposta Barbicane. Os inglezes têem todos uma só e mesma alma para todos os vinte e cinco milhões de habitantes que povoam a Gran-Bretanha. Limitaram-se a dar a entender que o emprehendimento do Gun-Club era contrario ao «principio de não intervenção», e nem com um ceitil concorreram.

O Gun-Club, quando soube tal nova, deu-se por satisfeito em erguer os hombros, e proseguiu na sua grande tarefa. Logo que a America do Sul, isto é, Peru, Chili, Brazil, provincias do Plata, Columbia entregaram a sua quota de trezentos mil dollars, ficou o Gun-Club de posse do consideravel capital cujo computo detalhado segue:

Dollars
Subscripção dos Estados Unidos 4.000:000
Subscripções estrangeiras 1.446:675

Somma 5.446:675

Eram portanto cinco milhões quatrocentos e quarenta e seis mil seiscentos e setenta e cinco dollars, que o publico tinha despejado nos cofres do Gun-Club."

Júlio Verne

3 comentários:

Paisano disse...

Interessante a preocupação de Jules Verne acerca do investimento em caminhos de ferro na Península Ibérica de forma a merecer uma nota de destaque no seu livro.
Se olharmos ao desenvolvimento do caminho de ferro na Europa, a Península Ibérica não foi dos locais onde esse meio de transporte iniciasse muito antes do que nos países precursores do meio de transporte, nomeadamente o Reino Unido.
Será que o autor estaria com uma crise de ciúmes com o que se passava do outro lado da fronteira pirenaica do seu país???
Parece que os Piríneos não eram só uma barreira para os peninsulares mas também para os vaidosos descendentes dos gauleses de Astérix!!!

Anónimo disse...

Sem gastar dinheiro algum
nem de licença pedir
a qualquer autoridade,
quando da terra me canso,
morto de tédio e fastio,
na lua me refugio
sem precisar de avião
nem de qualquer foguetão,
chegando lá num momento
utilizando somente
as asas do pensamento!

Para ser franco e sincero
e de todo verdadeiro,
vou e venho quando quero
sem gastar nenhum dinheiro.

JCN

Anónimo disse...

O humorismo e a ciência
fazem boa companhia:
a graça com ironia
estimula a inteligência!

JCN

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...