sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Democracia directa e demagogia

Numa crónica anterior, reflecti sobre os três princípios fundamentais da democracia grega antiga: a isonomia (‘igualdade perante a lei’), a isocracia (‘igualdade perante o poder’), a isegoria (‘igualdade no uso da palavra’). Com estes três princípios, reforçados pela ideia de que a força da decisão é colocada na vontade da maioria, os Atenienses estabeleceram a essência do regime democrático, sendo normas comuns, portanto, às diferentes aplicações genuínas do ‘poder do demos’ (ecoado, aliás, no refrão popular ‘o povo é quem mais ordena’).

Devo notar que os direitos da cidadania plena abrangiam apenas 10 a 15% da população, sendo, por conseguinte, grande a percentagem dos excluídos, em maior ou menor grau. Este facto costuma ser aproveitado pelos críticos da democracia antiga, apelidando-a de regime elitista e mesmo esclavagista. Esta limitação é inegável, mas regra geral a argumentação apresentada peca por ligeireza de análise, por descurar o contexto histórico e a situação real das pessoas, quando comparada com as condições oferecidas por outras sociedades.

No entanto, o aspecto determinante para explicar esta limitação do número de cidadãos (cerca de 30.000) deriva do facto de a democracia ateniense ser uma democracia directa, que pressupõe a reunião efectiva de todos os cidadãos, o que é muito diferente da democracia representativa em que vivemos, na qual a esmagadora maioria da população delega, através do voto, a capacidade de decisão nos seus representantes.

Por isso é que o número de cidadãos pode chegar facilmente aos milhões, enquanto no caso ateniense teria de ficar-se por alguns milhares. Ainda assim, Atenas alargou a cidadania até onde lhe foi possível e 10 ou 15% da população, apesar de pouco para a nossa prática, é bastante mais do que 1 ou 1,5%, cifra característica de regimes oligárquicos.

Uma última nota: as democracias modernas continuam a dispor de mecanismos que aplicam a democracia directa, se bem que os utilizem apenas em situações excepcionais. É o caso do referendo, que permite uma consulta directa a toda a população. Há, ainda, outras formas disfarçadas de consulta popular directa, como acontece com as chamadas telefónicas ou mensagens electrónicas, muito usadas em concursos públicos ou então como forma de obter sondagens.

Não é raro constatar que os meios de comunicação o fazem, porém, essencialmente para garantir audiências e isto poderia levar-nos a ponderar um outro problema: os riscos da demagogia, muito maiores numa sociedade como a nossa, que tem um acesso muito facilitado à informação, mas que, em boa parte, vive também alheada da política no sentido mais nobre (real empenho na vida da pólis), ficando, por isso, particularmente exposta à mensagem errática dos falsos ‘condutores do povo’. A estes voltaremos em outra oportunidade.
Delfim Leão

2 comentários:

Atena disse...

Só uma pequenina pergunta: o que quer dizer com -"viver numa lógica autista"?
Por acaso sabe no que consiste a Perturbação do Espectro do Autismo?(Todo o resto do texto é muitíssimo interessante).

Anónimo disse...

Como aprendiz de feiticeiro, permito-me questionar as razões da limitação da prática do voto vigente na democracia ateniense que, longe de residir na dificuldade material do seu exercício no terreno, assentava no conceito da prápria cidadania, partilhada apenas pelos cidadãos propriamente ditos, os "polítai", a tal décima parte da população gera,, ou seja, os "aristoi" que mutuamente se fiscalizavam ou vigiavam quanto ao exercício do poder. O resto da população não gozava da cidadania plena. Daí chamar-se ao regime político ateniense uma "oligarquia democrática", regime que vai ser alterado pela sociedade romana que instaura uma autêntica "democracia oligárquica", em que toda a população é chamada às urnas por intermédia das suas trinta e cinco tribos. É a verdadeira democracia que se perpetuou nos dias de hoje no fundamental. Minudências... que estão nos manuais. JCN

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