domingo, 15 de novembro de 2009

ELOGIO DE 'MONSIEUR' GERMAIN


O filósofo espanhol Fernando Savater, a propósito da questão europeia dos crucifixos nas salas de aula, escreveu ontem um artigo no "El País" com o título que está em cima e do qual, para melhor divulgação entre nós, traduzi o excerto que conta a história que justifica o título (todo o artigo pode ser lido aqui):
"Nestes tempos, convém lembrar Monsieur Germain. Foi professor de Albert Camus na escola primária e, muitos anos mais tarde, o destinatário da primeira carta que o seu ex-aluno escreveu após ganhar o Prémio Nobel: "Quando me deram a notícia, o meu primeiro pensamento, depois da minha mãe, foi para o senhor. Sem si, sem essa mão amorosa que estendeu à criança pobre que eu era, sem o seu ensinamento e o seu exemplo, nada disto teria acontecido." A história podemos lê-la em O Primeiro Homem, pouco mais do que um rascunho, mas infinitamente significativa e tocante, parte da obra póstuma de Camus. Ele conta aí a miséria terrível dos primeiros anos do escritor, filho de um soldado francês falecido na Primeira Guerra Mundial e de uma minorquina estabelecida por necessidade numa aldeia argelina. Sem livros, sem rádio, sem cultura de qualquer espécie, quase sem linguagem além das falas elementares: o menino solitário fascinado pela mãe analfabeta e desesperadamente melancólica e pela força avassaladora do sol africano.

Mas estava ali o Sr. Germain, que se fixou no seu "pequeno Camus" e o guiou com uma severa benevolência. Um professor à antiga, que não hesitava em punir infracções com golpes de régua nas nádegas... sem excluir desses correctivos o seu aluno preferido. Mas também o salvador, que convenceu a família da importância de a criança prosseguir no Liceu de Argel os seus estudos (apesar dos sacrifícios económicos que isso implicava) e, assim, o resgatou para a palavra libertadora. É fundamento da integridade humana e criativa de Camus nunca ter esquecido nem renegado as suas origens humildes.

O Sr. Germain foi, sem dúvida, um mestre com auctoritas, ganha tanto pela sua justiça e sabedoria como pelo respeito dos alunos e suas famílias, esse respeito que sentem os desfavorecidos pelo ensino cuja importância emancipadora valorizam tanto quanto outros mais bem instalados desprezam. E tudo isso num contexto colonial e pluriétnico nada favorável a fáceis harmonias...

Depois do Nobel, Louis Germain escreveu uma longa carta ao seu cher petit. Nela recorda episódios passados, acabando por se centrar nos alarmes do presente (estamos em 1959). Informa o seu ex-aluno "como professor laico" das ameaças que vê abaterem-se sobre a escola pública. Deixa claro que - como Camus comprovava - sempre manteve uma imparcialidade escrupulosa em matérias religiosas, explicando na sala de aula que há várias religiões e que há pessoas que não seguem nenhuma: "Creio que, em toda a minha carreira, respeitei o que há de mais sagrado na criança: o direito de procurar a sua verdade. " E por isso o alarmam as notícias de que, nalguns departamentos franceses, as aulas são dadas com um crucifixo na sala: "Considero-o um atentado abominável à consciência das crianças".
Imagem: Escola Primária de S. João do Souto, em Braga, por volta de 1959.

5 comentários:

Costa Pinto disse...

Ao fundo a fotografia do velho Almirante Américo Tomás, era para ter sido Gago Coutinho que não aceitou algumas propostas, nomeadamente incompatibilidade com a censura

Paulo Pimenta disse...

A questão dos crucifixos em salas de aula é muito mais complexa que simplesmente dizer que são uma imposição cultural. A cultura judaica sobreviveu a todas as persiguições que sofreu e sofre, justamente por preservar valores culturais, e a religião a eles pertence, em ambientes de educação. Os europeus que tanto lutaram pelo cristianismo no passado, agora o abandonam em nome de uma correção política, de um novo mundo possível, que pode destruir a cultura ocidental.

Paulo Pimenta

Manuel de Castro Nunes disse...

Sou professor. Ensinei durante mais de vinte anos. Se há algo a que um professor se deve furtar é à tentação de querer partilhar do êxito dos seus alunos.
O dever de um professor é ensinar, seja, transmitir o melhor que puder o seu conhecimento e a sua experiência, e aprender com os seus alunos. Os alunos não têm dever algum, uma vez que a escolaridade seja obrigatória. Bem como os seus conteúdos.
Não vejo que relação necessária de causa e consequência possa existir entre um professor e um génio.
Na minha escola também existia um crucifixo e um retrato de Craveiro Lopes. Depois de Américo Tomás. Não posso dizer que foi por essa razão que seria anti-salazarista e que não sou católico.
Mas como republicano e adepto de um estado laico penso que nas escolas não deve haver insígnias religiosas, quaisquer que sejam.
Mas não é a escola produtora de um discurso pleno de alusões ideológicas, mais ou menos óbvias? Podemos evitar isso?
Em minha opinião, não.
E perdoem-me os professores.

Costa Pinto disse...

Os alunos não têm dever algum, uma vez que a escolaridade seja obrigatória
Um erro do ponto de vista pedagógico, lamento mas os alunos tem o dever de aprender, "elementar meu caro"

Manuel de Castro Nunes disse...

Os alunos não têm dever algum, uma vez que a escolaridade é obrigatória... bem como os seus conteúdos.
Poderia acrescentar para alimentar a polémica: o único dever dos alunos é irem à escola. Nenhuma lei lhes impõe, nem seria eficaz que impusesse, que aprendam.
O facto de aprenderem ou não é mais dever de Vossas Senhorias e minha.
Ora, é aí que reside o mistério do insucesso escolar, quando começamos a imputar aos alunos o dever de aprenderem.
Bem, mas não estou deveras interessado em atear a polémica.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...