domingo, 7 de setembro de 2008
PORTUGUESES ESQUECIDOS
Está quase a sair no Círculo de Leitores o livro “PORTUGUESES ESQUECIDOS” do jornalista e historiador Joaquim Fernandes, um dicionário de portugueses ilustres que mereciam, pela sua obra, ser mais conhecidos. Eis, em pré-publicação, o meu prefácio a esse livro (na imagem, Teodoro de Almeida, que se pode considerar o primeiro físico experimental português e também o primeiro divulgador da ciência entre nós):
A identidade nacional faz-se a partir da memória, mas a memória portuguesa é estranhamente selectiva. O historiador Joaquim Fernandes, neste seu Dicionário bem documentado sobre os “portugueses esquecidos”, vem lembrar-nos muitos nomes que, apesar de o merecerem, não têm conseguido passar no crivo da nossa memória colectiva.
As razões serão as mais variadas. Mas talvez a mais comum seja o facto de grande parte desses notáveis se terem ausentado do seu país natal (ou permanecido ausentes do país natal de seus pais). Muitos deles perseguidos na sua própria terra foram para longe e ficaram longe na nossa memória. Outros ficaram por cá, desafiando condições difíceis, mas foi como se tivessem ido para longe. Também foram injustamente ignorados.
Como já foi sobejamente notado, Portugal é um país paradoxal. Por um lado, tem-se revelado útil ou mesmo necessária a distância, a separação física, para se alcançar reconhecimento. Vejam-se no século XX os casos, aqui ordenados pelo nome de família, de António Damásio, Fernando Gil, Eduardo Lourenço, Emanuel Nunes, Paula Rego, José Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Maria Helena Vieira da Silva e um longo etc. Por outro lado, essa separação por vezes é tão brutal que conduz ao não conhecimento, ao mais completo olvido. Quem é que, fora dos círculos mais eruditos, ouviu falar de nomes incluídos no presente Dicionário como Teodoro de Almeida, José Bonifácio de Andrada e Silva, Manuel de Azevedo Fortes, João de Loureiro, João Jacinto Magalhães, Inácio Monteiro, Cavaleiro de Oliveira, Bento de Moura Portugal, António Ribeiro Sanches e um etc. não menor do que o anterior? Pois une todos estes nomes, além de figurarem nesta obra, o facto de terem realizado obra maior longe da pátria, no século XVIII. Ficaram conhecidos pelo nome de “estrangeirados”, uma designação pejorativa dada na época das luzes aos intelectuais portugueses que, fora do país, contactaram e absorveram as novas ideias que então proliferavam.
Pois, como poderá o leitor verificar consultando estes dois tomos, Almeida foi o primeiro físico experimental português e também um dos nossos primeiros divulgadores científicos, Andrada e Silva foi o mineralogista que está na base da descoberta do terceiro elemento químico (o lítio) além de ter sido um herói da independência do Brasil, Azevedo Fortes foi além de engenheiro militar o autor do primeiro tratado de lógica em português (já agora um dos lógico de maior fama mundial foi outro português cuja glória foi feita no estrangeiro, Pedro Hispano, ou João XXI, o único papa português), Loureiro foi um jesuíta naturalista que descreveu pela primeira vez muitas espécies vegetais da Cochinchina (Vietname) e da China, Magalhães foi um dos mais influentes cientistas e instrumentistas do iluminismo (ainda hoje a American Philosophical Society atribui uma medalha de ouro, que alguns equiparam ao Nobel, com o seu nome), Monteiro foi um matemático jesuíta que ousou romper precocemente com o aristotelismo dominante em Coimbra e no país, Oliveira foi um escritor e diplomata cujos escritos mordazes lhe valeram ser queimado em efígie (em Londres ironizou: “nunca senti tanto frio em toda a minha vida”), Moura Portugal foi um físico e inventor que morreu no frio cárcere da Junqueira depois de longos anos de enclausuramento e a quem na Alemanha chamaram o “Newton português”, e Sanches foi um médico na corte de Catarina a Grande, na Rússia, para além de filósofo e pedagogo inspirador da reforma pombalina da Universidade de Coimbra.
Olhando apenas para o período da nossa história no qual estas personalidades viveram, um período fortemente marcado pelo nepotismo do Marquês de Pombal (a quem o historiador americano de origem inglesa Kenneth Maxwell chamou, na frontaria de um dos seus livros, o “paradoxo do iluminismo”), podemos ver como que num espelho algumas das marcas maiores da nossa história cultural e social, para as quais de resto Joaquim Fernandes aponta bem o dedo: “errância, ignorância e intolerância”. Era o mesmo Pombal, que tinha sido “estrangeirado” nas cortes de Viena e Londres, que perseguia os jesuítas, como Loureiro e Monteiro, e os concorrentes dos jesuítas, os oratorianos como Almeida e Chevalier (este não consta da lista, mas podia constar: no seu exílio em Bruxelas chegou a Director da Academia Imperial e Real de Ciências e Belas Artes de Bruxelas), obrigando-os a “estrangeirar”. Era o mesmo Marquês que esmagava quaisquer eventuais concorrentes, perseguindo os pequenos nobres, como Moura Portugal e Cavaleiro de Oliveira, e os grandes, como os Távoras (Leonor de Almeida, a Marquesa de Távora, é uma das muito poucas mulheres deste Dicionário, só há outra e é também Leonor). Se Pombal seguia os conselhos de Ribeiro Sanches, é bom não esquecer que este tinha sido obrigado a exilar por ser judeu (tal como outro judeu “estrangeirado” que consta deste Dicionário, Jacob de Castro Sarmento, também médico, e que entre outras razões merece ser lembrado por ter sido o primeiro tradutor de Newton para português). Se Pombal comprava os instrumentos de Magalhães, convém lembrar que este, embora mantendo negócios com a pátria, nunca a ela quis regressar declarando de modo muito claro que não queria mais viver “sob um governo que não assegurasse a liberdade”. Finalmente, era ainda Pombal que, ao mesmo tempo que esvaziava a nação de algumas das suas melhores mentes, contratava cérebros estrangeiros para ensinar no Colégio dos Nobres e na Universidade de Coimbra, como o físico Giovanni Dalla Bella e o químico e naturalista Domenico Vandelli. Os paradoxos da modernidade pombalina eram tantos e tão insuperáveis que, como se sabe, a reforma da Universidade não sobreviveu por muito tempo ao seu autor.
Dado o clima de intolerância que vivemos no século XVIII (que, de resto, vinha de trás: passaram há pouco quinhentos anos sobre a primeira grande perseguição aos judeus no tempo de D. Manuel I, e que nos causou a perca no rol de “portugueses lembrados” de nomes como Bento Espinosa) era difícil, apesar dos ventos renovadores do liberalismo, que o século XIX fosse muito melhor, sequer melhor, que o anterior. Já não havia o ouro do Brasil… E a nova riqueza provinha não da conquista de terra, mas da conquista do conhecimento. O facto é que, do ponto de vista da ciência e da técnica, o nosso século XIX não foi tão fértil como o anterior. Houve, de facto, nomes que conheceram fama internacional como o botânico Félix Avelar de Brotero e o inventor Padre Himalaia, que constam deste bem informado Dicionário. Mas não admira que Antero de Quental, nas suas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, que Joaquim Fernandes traz à colação no seu intróito, inclua a falta de ciência entre os factores que motivaram o nosso atraso. O grupo dos intelectuais à volta de Antero, que incluía o também “estrangeirado” Eça de Queirós, diagnosticou bem a situação, mas, com o passar dos tempos, sentiu-se impotente para mudar o país, para o colocar num nível já não de topo na Europa mas apenas medianamente europeu. É bem adequada a designação, que eles próprios criaram, de “vencidos da vida” a esses convivas, que nos seus jantares na meia-idade, confessavam a impossibilidade da realização das suas aspirações de juventude. Antero, como é sabido, suicidou-se…
O século XX foi o que se sabe, com nova onda de “estrangeirados” obrigados a sê-lo. Este Dicionário, e com razão (o olvido exige alguma distância no tempo), pára antes de lá chegar. Mas o país chegou e até já o ultrapassou, sem contudo ter ultrapassado todas as contradições que os séculos anteriores acumularam. Que este livro sirva, hoje, para nos lembrar de quem não nos lembramos. Para nos lembrar, quando o abrirmos, os “portugueses esquecidos” e as suas por vezes tão impressionantes realizações.
Fernando Pessoa, um “estrangeirado” na África do Sul até aos dezassete anos (algum dia poderia ele ter comparado a Vénus de Milo com o binómio de Newton se acaso tivesse frequentado a escola portuguesa?) e depois disso um poeta esquecido em vida, escreveu no seu poema “Tabacaria”: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Para ser alguma coisa, para realizar sonhos escondidos, os portugueses têm-se espalhado pelo mundo. A diáspora portuguesa é decerto uma das características maiores do ser português: “a vida pelo mundo em pedaços repartida” foi como a sintetizou Camões, um outro poeta que viveu longe da sua terra durante dezassete anos e que também foi anónimo em vida. Eduardo Lourenço, em “Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade”, notou que nenhum outro povo tem a esfera do mundo na sua bandeira. Ir para longe tem sido, em regra, demandar o futuro, deixando o país no passado. E tem sido, demasiadas vezes, esquecer e ser esquecido.
Contrariando o esquecimento, os leitores deste Dicionário podem hoje saber o que alguns dos seus ascendentes mais notáveis mas menos conhecidos quiseram e conseguiram ser, lá fora ou cá dentro. Portugal, para ir para fora cá dentro, tem de querer e conseguir ser o país que muitos “portugueses esquecidos” sonharam.
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2 comentários:
Neste reyno de Portugal existe um ditado popular que diz que ninguém é santo na sua terra.
Mas este reyno de Portugal, em quase um milénio, conseguiu sempre não aproveitar convenientemente a PRATA DA CASA!
Era mais fácil o Oiro do ....Brasil, assim como as modas.... du Paris!
Teodoro de Almeira, sacerdote católico perseguido e expulso pelo Marques de Pombal!
Então o marquês não espulsou a padralhada estúpida e inculta que impedia a universidade portuguesa de crescer? Então não era este padre e outros jesuítas que só ensinavam burrices aos alunos portugueses?
E não assistimos ao nascimento de um esplendoroso ensino secundário e universitário com o Marquês a iluminar o caminho?
Queres ver que com tanta luz ficámos todos cegos...???
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