terça-feira, 2 de setembro de 2008

BIOLOGIA, SOCIEDADE E SACARRÃO

Não é demais falar sobre os grandes professores e cientistas portugueses. Recupero o meu texto com o título de cima, uma recensão publicada em 1990 na revista "Omnia" de "Biologia e Sociedade", notável livro do Prof. Germano da Fonseca Sacarrão (1914-1992), biólogo da Universidade de Lisboa. Sacarrão foi para o meu colega Paulo Gama Mota o "maior evolucionista português". Um artigo sobre a vida dele pode ser lido aqui e alguns escritos dele encontram-se aqui. Agora que se aproxima o ano Darwin é bom ir lendo o que os bons professores de biologia escreveram.

O Professor da Universidade de Lisboa Germano Sacarrão tem sido um dos autores de divulgação científica mais prolixos entre nós, tendo desenvolvido desde há bastantes anos (desde 1945, ainda não havia a estrutura do ADN!) ampla actividade de escrita sobre ciências da vida. Mas o seu livro "Biologia e Sociedade", em dois grandes volumes, com a chancela das Publicações Europa-América, tem sido injustificadamente pouco referenciado. Se é justo dizer que é curta a obra de divulgação científica de autores portugueses, importante se torna referir as excepções que infirmam essa regra. Que viva pois esta excepção!

Numa prosa escorreita e extraordinariamente legível (o bom português do autor contrasta com as retroversões de um inglês qualquer que por aí pululam), Sacarrão efectua um estudo quase que exaustivo das complexas relações entre biologia e sociedade, adoptando como tese central a afirmação de que são injustificadas e perigosas muitas das conclusões no domínio do social que alguns (por exemplo, os sociobiólogos extremistas, a "nova direita") têm procurado extrair das descobertas da moderna biologia. O prefácio é bem claro sobre os propósitos do autor: "Toda a tentativa de aplicar à sociedade e ao indivíduo os resultados da biologia transmite quase sempre uma ideologia, traduz, em regra, uma atitude política, mesmo que o autor, biólogo ou não, não se dê conta disso, mesmo que o não queira. Por isso me parece ser de fundamental importância explicitar os preconceitos, tentar desmontar as conexões da ciência com a sociedade, revelar as ideologias subjacentes, as influências em jogo, submeter dúvida e crítica toda a referência biologia moderna, em particular as explicações biológicas da sociedade e do comportamento individual e colectivo".

Passa depois nas 382 + 358 = 740 páginas em revista questões como a evolução (que toma quase todo o primeiro tomo), a violência, o racismo, a regulação genética, a inteligência humana, etc., analisando aquela zona nebulosa onde acaba a ciência e começa a ideologia, onde a consciência crítica é chamada a confrontar-se com conhecimento técnico, onde a ética é chamada à acção. Trata-se de um livro que resume e de certa forma coroa todo um trabalho de análise e reflexão do autor, baseado na zoologia, de que é especialista, mas focado afinal na espécie humana e nas suas virtualidades culturais. Qual é a distância exacta entre o animal e o homem? Dir-se-ia que ela tem encurtado ao longo dos últimos anos com as investigações genéticas, com o melhor conhecimento do cérebro, com os estudos de etologia, etc. Sacarrão vem-nos dizer que essa distância não corre o risco de encurtar para zero, que o homem é um animal particularíssimo, moldado pela história e pela comunidade. Defende que é longo, cheio de atalhos e talvez impossível de percorrer na totalidade o caminho entre o ADN da célula e o comportamento humano. O homem não será um simples joguete dos genes mas um produto cultural complicado, inextrincável, imprevisível, fruto tanto do inato como do adquirido, alguém que até pode assenhorear-se do seu destino.

O autor é forte nesta e noutras afirmações que faz mas não arrisca muito em especulação própria. Coloca dificuldades sobre dificuldades ao percurso biológico-reducionista mas, uma vez instalada a dúvida, deixa-a por resolver. Refere autores diferentes e diz, pacificamente, que nem tanto ao mar nem tanto à terra, que nem tanto aos genes nem tanto à sociedade, e que a virtude estará possivelmente num meio termo ainda a definir. Não chega, portanto, a ser polémico nem, de resto, era preciso que o fosse. A polémica, porém, é que faz o milagre da multiplicação dos leitores e da criação dos "best-sellers".

Sacarrão critica alguns desses milagreiros da edição. Ocorre aqui referir, por exemplo, Stephen Jay Gould, o paleontólogo e prolixo divulgador de ciência da Universidade de Harvard, que arriscou a teoria do "equilíbrio intermitente", segundo a qual a evolução biológica se processa por revoluções ocasionais intervaladas por pausas mais ou menos longas. No seu livro "Wonderful Life" (“A Vida é Bela”), Gould defende que o elemento do acaso é essencial no processo de desenvolvimento biológico. As suas teses, embora polémicas, têm vindo a encontrar algum eco. Sacarrão refere Gould mas não lhe confere demasiada importância, adoptando uma posição gradualista e conservadora. Outro exemplo: Desmond Morris foi polémico com o seu livro "Macaco Nu", onde pretendia "animalizar" o homem. Sacarrão chama-lhe, no mínimo, um exagerado, subeentendendo-se que é preciso vestir o macaco. Em questões de doutrina, Sacarrão é obviamente um moderado ou, se se preferir, céptico. Monod, outro exemplo ainda, é conhecido pela sua explicação natural e reducionista da evolução humana. Sacarrão “arruma-o”, assim como aos seus seguidores, com alguns comentários, ainda que aparentemente pertinentes, sobre a inseparabilidade da natureza e da cultura. Isto para não falar já de K. Lorentz e de E. Wilson, que não são poupados. Esses publicitários (Sacarrão dixit) são todos, uns mais e outros menos, uns exagerados.

Estamos perante um livro prudente que coloca travões na euforia desenfreada de alguns biólogos. Desaconselha a embandeirar em arco com as extrapolações das ciências da vida. Pode-se evidentemente ir a Sacarrão buscar uma referência apropriada ou uma sinopse oportuna. Mas não se trata de uma obra de divulgação que entusiasme e ou emocione um público vasto, ou a imaginação dos jovens, como acontece com alguns dos autores discutidos. O discurso é amiúde universitário e sisudo. Está certo que todo o autor tenha o supremo direito ao seu estilo mas uma pitadinha de humor, o humor que um Gould ou um Dawkins magistralmente conseguem, tornaria a leitura mais cativante. "Biologia e Sociedade" é de leitura algo pesada e que, por isso, não se aconselha a pessoas pouco treinadas em leituras de fundo (mas que se aconselha às outras todas!). O tamanho resulta tanto do número e variedade de temas abordados como de algumas ênfases e citações. Encontram-se algumas repetições, que servem para reforçar a mensagem expressa mas que tornam o texto desnecessariamente grande. As transcrições dos autores referenciados são feitas em inglês ou francês, sem tradução, em excertos por vezes longos (diga-se de passagem que soa a falso ler, por exemplo, Erich Fromm ou Eibl-Eibesfeldt, em francês).

Algumas palavras sobre a edição. Sacarrão é um velho conhecido de Lyon de Castro, pois este tem-lhe publicado a obra desde há muito tempo. A colecção "Saber" da Europa-América foi pioneira da divulgação científica em Portugal (há, bem entendida, a colecção "Cosmos" anterior) e em 1957, muito antes de Chernobyl, já lá surgia a "Radioactividade e a Vida", de Sacarrão. Este escriba confessa que o primeiro livro que leu desse género foi da colecção Saber: a "História do Atomo", do prémio Nobel Sir George Thomson filho do primeiro prémio Nobel da Física, J. J. Thomson, num dos seus primeiros anos liceais (custou-lhe trinta escudos). Confessa ainda que tem uma recordação saudosa da série "O Homem perante a Ciência" da Europa-América, contendo debates vivos que lhe alimentaram as fantasias científico-sociais da adolescência. Confessa ainda que leu, já no declinar da adolescência, alguns clássicos das colecções "Estudos e Documentos" e "Biblioteca Universitária" da Europa-América" (o Morin e os outros). Isto dito, falta acrescentar quanto o tem desiludido a colecção "Forum da Ciência" da mesma Europa-América. Escolhas pouco criteriosas de títulos, traduções miseráveis, revisões assassinas (um livro de Gribbin surgiu com o nome do autor gralhado na capa!).

O livro de Germano Sacarrão não está na colecção "Forum da Ciência" e ainda bem. Não tem gralhas: pode o leitor ir de candeia acesa a ver se as caça que se lhe vai esgotar o azeite. O autor ou alguém por ele deve ter queimado as pálpebras a escalpelizar e a rever a prosa. As referências são minuciosas e cuidadas (embora faltem referências a traduções portuguesas; por exemplo, todos os livros mencionados do Sagan existem em versões portuguesas e "O Acaso e a Necessidade" de Monod existe em português na mesmíssima "Biblioteca Universitária" da Europa-América onde "Biologia e Sociedade" veio a lume). O papel e a tinta são bons e justificam, pelo menos em parte, o elevado preço dos livros. Trata-se de uma obra que, se do ponto de vista do "conteúdo" pode eventualmente soçobrar aos previsíveis avanços das ciências biológicas, do ponto de vista do "continente" vai durar muitos anos.

Estamos em presença de dois volumes bem pensados e bem escritos, sérios e parcimoniosos, e que por isso se recomendam. São bons para ler depois do Lorentz ou do Wilson, para fazer esvanecer certezas. Em português é um dos melhores tratamentos das implicações da biologia no mundo de hoje. Convém pôr a ênfase no "em português" porque estamos num país onde tanto a empresa científica propriamente dita como os seus aspectos ideológicos não têm sido devidamente comentados. Conforme diz Sacarrão, a biologia portuguesa tem vivido historicamente da chaveta, da classificação, ignorando pura e simplesmente o enquadramento doutrinal de Darwin e a sua saudável discussão. Pior do que contestar Darwin (o que acontece, enfim, de uma maneira ou noutra em todos os países civilizados) é ignorar Darwin. E entre nós ignorou-se e ainda se ignora Darwin. Não pode haver biólogos anti-darwinistas assim como não pode haver físicos anti-einsteinianos, mas existem várias modalidades de darwinismo. A ausência de diálogo não ajuda a discernir o trigo do joio. Vive-se do ponto de vista do público culto e interessado uma certa pasmaceira. Não houve ainda uma boa polémica como aquela que houve e há nos Estados Unidos entre darwinistas e os seus críticos. Lima de Faria, um contestário de alguns aspectos de Darwin, é um cientista português emigrado em Lund, na Suécia e escreve para uma grande editora científica holandesa como a Elsevier, mas, em Portugal, pouca gente o conhece.

Darwin foi uma figura paradigmática da ciência: levou a biologia a um confronto violento com a sociedade vitoriana. Hoje em dia, os lugares de encontro e cruzamento entre biologia e sociedade são múltiplos e bem visíveis, embora talvez menos violentos. Sacarrão vem enriquecer o nosso património científico-cultural, invocando judiciosamente Darwin, lamentando-se da falta de recepção a Darwin e, indo mais longe, falando das potencialidades e limites do genoma humano, explicando as capacidades e perigos da engenharia genética, discutindo o modo como a biologia está a contribuir para o nosso presente e como vai contribuir, para o bem e para o mal, para o nosso futuro. Leia-se esta advertência de um biólogo sábio sobre as possibilidades e as impossibilidades do saber biológico.

-Germano F. Sacarrão, "Biologia e Sociedade", Vol. 1 "Crítica da Razão Dogmática" e Vol.2 "O Homem Indeterminado", Publicações Europa-América, Mem Martins, 1989.

2 comentários:

perspectiva disse...

As divergências entre a perspectiva "gradualista e conservadora" de Sacarrão e o "equilíbrio pontuado" de Stephen Jay Gould são sintomáticas. Apesar de se tratar de dois cientistas já falecidos, ainda podemos falar deles no presente:

1) Sacarrão defende o gradualismo porque não vê como é que seja possível a evolução por saltos. Ela implicaria a criação e a recombinação súbita de milhões de nucleótidos, criando novas sequências codificadoras de novas estruturas e funções. Já Darwin defendia que tal entendimento levaria a teoria da evolução de volta para o mundo do milagre. Para os gradualistas a evolução por saltos é simplesmente impossível.

2) Stephen Jay Gould, por seu lado, olhando para o registo fóssil, afirma que ele não fornece qualquer evidência de evolução gradual. Pelo contrário (e confirmado aquilo que já Darwin observara e registara), o registo fóssil demonstra o surgimento abrupto das espécies (como defendem os criacionistas) e a sua permanência inalterada no registo fóssil (o que também é defendido pelos criacionistas) durante "milhões de anos". Olhando para o registo fóssil, a evolução, a ter existido, só pode ter sido por saltos. A evidência fóssil é clara: a evolução gradual não aconteceu neste mundo, com estas rochas e com estes fósseis. A evolução gradual só pode ocorrer nas especulações abstractas e desenraizadas dos evolucionistas.

3) Curiosamente, existe uma grande margem de acordo entre criacionistas e Sacarrão, por um lado, e Gould, por outro. Os criacionistas estão totalmente do lado de Sacarrão quando este rejeita a evolução por saltos, precvonizada por Gould, por ser do domínio do fantástico. Do mesmo modo, os criacionistas estão inteiramente do lado de Gould quando este observa que o registo fóssil desmente a evolução gradual. Para os criacionistas, a conclusão lógica só pode ser: a evolução gradual não aconteceu e a evolução por saltos é impossível. Logo, só a criação súbita, por um Deus criador da leis naturais, é que pode ter acontecido. A existência de biliões de fósseis em rochas onde abundam evidências de catástrofe só pode ser testemunha de sepultamento abrupto por uma catástrofe em larga escala: um dilúvio global e suas naturais sequelas catastróficas locais.

Esta conclusão é inteiramente corroborada por o DNA conter informação codificada, em quantidade e qualidade inabarcável por toda a comunidade científica, armazenada de uma forma triliões de vezes mais eficaz do que o conseguido pelos mais sofisticados micro-chips. Também ele nunca poderia ter surgido se não instantaneamente, plenamente formado e funcional. De resto, só assim se compreende que a síntese de DNA necessite de enzimas que necessitam de RNA, que por sua vez necessita de DNA.

Se a isto juntarmos a ideia de Sacarrão segundo a qual o caminho entre o DNA da célula e o comportamento humano é
"longo, cheio de atalhos e talvez impossível de percorrer na totalidade", temos o puzzle completo.

A evidência da evolução não existe no mundo real: nem no registo fóssil nem na biologia molecular.

A esta luz, pode tirar-se outra conclusão, também ela inteiramente corroborada pelas observações: as mutações e a selecção natural diminuem a quantidade e a qualidade da informação genética disponível, conduzindo, a continuar indefinidamente, a um "mutational meltdown" e mesmo à extinção das espécies.

Fernando Martins disse...

Caro Doutor das Leis:

Fale do que sabe, não daquilo de que acredita.

Já lhe explicaram aqui que há diferenças entre acreditar, seja lá por que motivo, e fazer com os factos se encaixem na nossa ideia, e estudar, sem preconceitos ou bases iniciais.

Quanto a S. J. Gould, já lhe expliquei aqui uma vez, com direito a citação e tudo, que ainda não percebeu bem a sua teoria.

PS - Eu homem que usa os factos e ideias dos cientistas para os torcer e porem a dizer o contrário do que de facto dizem é um ser moralmente inferior - há uns tempo chamei-lhe uma série de coisas por causa das afirmações intelectualmente desonestas sobre estalactites: quando é que ganha vergonha e deixa de dizer baboseiras?

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