quinta-feira, 15 de maio de 2008
Vergonha é...
O que a gente faz
É por debaixo dos pano
Pra ninguém saber
Ney Matogrosso
“Vergonha é… roubar e ser apanhado”. Subjacente a este dito irónico está a ideia de que o mal não é propriamente a prevaricação, mas alguém descobrir o prevaricador.
Qualquer pessoa adulta, nascida e criada neste lado do mundo, por menos instrução que tenha, percebe que não é assim, e que, salvo raras excepções, o mal está, efectivamente, na prevaricação e que a vergonha decorre do facto de se ter prevaricado.
Pois é… mas quando passamos para o plano da acção a coisa torna-se um bocado diferente. Agir de acordo com os preceitos morais que advogamos nem sempre joga a nosso favor, que é como quem diz, a favor das nossas conveniências, comodidades, dos nossos pequenos ou grandes interesses e vícios.
Os entendidos numa área de estudo da Psicologia que se designa por Desenvolvimento Moral, cedo identificaram este curioso fenómeno, não conseguindo, contudo, explicá-lo inteiramente. E, portanto, continuamos sem perceber porque é que, em muitas circunstâncias, não nos comportamos de acordo com os preceitos axiológicos que advogamos.
Há quem defenda tratar-se de uma questão de carácter, porquanto, pugnar por esses preceitos, não raras vezes, implica determinação, escolhas difíceis, conflitos, além de acarretar esforço, desprazer, perdas várias…Enfim, arrelias que não vale a pena arranjar, nesta doce e pacata cultura hedonista, relativista, “tolerantista” em que vivemos, cultura que privilegia a narração e, em sequência, a quase inevitável compreensão.
Isto vem a propósito de, nesta semana, ter sido noticiado que um certo primeiro-ministro, um certo ministro, uns certos membros de um certo governo, e mais umas certas pessoas suas acompanhantes, fumaram num certo sítio.
O problema não reside no facto de esta gente ter fumado. Se estivesse em sua casa, ou nos poucos sítios onde ainda se pode fumar, a notícia não corria nos jornais, telejornais e, claro, de boca em boca. Mas não estava em sua casa, estava num voo da companhia aérea do seu país, onde é proíbido fumar.
O princípio do problema reside no facto de esta gente:
1. se arvorar em defensora da sanidade nacional, justificando em nome deste objectivo uma perseguição aos fumadores, como se estes fossem perigosos inimigos públicos;
2. ignorar uma lei de restrição de fumo que, tão diligentemente, saiu da sua lavra, dando a entender que a lei é para nós, o povo, e nunca para os dirigentes, a elite.
Mas o problema tem outra dimensão mais grave, que se materializa nas justificações dadas pelo primeiro ministro, e que são piores do que o próprio acto. Disse ele que:
1. desconhecia não se poder fumar naquele local, sendo certo que não podia deixar de o saber. Além disso, o desconhecimento da lei não desobriga o seu cumprimento;
2. ia definitivamente deixar de fumar. Ora, essa é uma decisão privada, que não interessa a quem quer que seja, a não ser ao próprio. Desde que fume onde a lei que promulgou permita, pode fumar os maços de tabaco que lhe aprouver sem ninguém ter nada a ver com isso.
Alertada que estou para os “efeitos psicossociais”, evidenciados por estudos da Psicologia Social, nas últimas linhas que escrevi vislumbro ainda uma outra dimensão no problema, que lhe aumenta a gravidade: as desculpas e a promessa de regeneração costumam surtir efeito no comum dos mortais. No caso, tende-se a pensar algo do género: os governantes devem ter preocupações que nem sonhamos; para quem fuma, uma longa viagem em abstinência é dura. Assim, perante tarefas árduas, se não se sentirem confortáveis, os governantes ficam ansiosos e, se ficarem ansiosos, não se concentram, e se não se concentram, podem não tomar as decisões certas, e se não tomarem as decisões certas, é mau para todos… Portanto, há que ceder um pouco no cumprimento da norma em favor da eficácia governamental. E, que diabo, fumar um cigarrito, ainda por cima, atrás de uma cortina, não traz grande mal ao mundo!
Uma última nota, mais pessoal, em três passos:
1. considero irrelevante o tal primeiro-ministro, na sequência da divulgação do caso, admitir publicamente ter fumado, lamentar tê-lo feito e pedir desculpa “caso se verifique que infringiu a lei”. Trata-se, lá está, de uma justificação que joga habilmente com a nossa tendência para a compreensão;
2. não sendo fumadora, acho que, num certo sentido, faz pior à saúde saber que membros do governo fumam atrás de uma cortina, do que entrar num “antro” de fumo;
3. sendo da área da Pedagogia, não posso deixar de conjecturar que de pouco valerá o actual encarniçamento da “educação para a saúde” e da “educação para a cidadania”, se as nossas crianças e jovens tiverem exemplos – de incongruência, sublinho – por parte de quem deveria dar o exemplo, de quem, como, a mulher de César, deveria estar acima de qualquer suspeita.
Para ilustrar este texto escolhi uma fotografia de Sir Winston Churchill, também primeiro-ministro, que fumou e bebeu o que entendeu, autenticamente, sem antes ter estabelecido leis ou moralismos que o impedissem.
Documentos consultados:
- http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1328751&idCanal=12
- http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1328604&idCanal=12
Imagem retirada de:
- http://www.picturapixel.com/blog/wp-content/uploads/2008/02/churchill.jpg
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
O corpo e a mente
Por A. Galopim de Carvalho Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...
-
Perguntaram-me da revista Visão Júnior: "Porque é que o lume é azul? Gostava mesmo de saber porque, quando a minha mãe está a cozinh...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Cap. 43 do livro "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos , que vou apr...
7 comentários:
Se isto é uma posta de uma pedagoga, o nosso ensino vai bem pior do que eu pensava e ainda bem que eu vou para o velhote e a minha descendência já é adulta.
Eu não quero defender o Sócrates, que nem votei nele, e acho que ele e os outros não deviam ter fumado e, muito menos, dizer que não fumava mais. Mas quem manda no avião é o comandante e quem viaja com frequência sabe que ainda antes da descolagem ele dá uma série de indicações (em inglês, na língua de bandeira da companhia aérea e, muitas vezes, na língua do país de partida), entre as quais se o voo é "verde". O comandante disse que o voo não era comercial e, portanto, não se lhe aplicava a legislação comercial. Só quem não tem mais nada com que se ocupar é que discorre sobre o assunto na comunicação social "oficial" e faz disso manchete de jornais e telejornais e "discorrências" de comentadores ou assessores e de muitas outras outras coisas terminadas em "ores".
O comportamento de José Sócrates é da mesma famylia que o comportamento dos deputados e membros do governo que, sendo responsáveys, pelas regras de trânsito que vigoram em Portugal, são frequentemente apanhados (mas nunca penalizados) a mais de 120 nas autoestradas. Outro exemplo seria o facto dos deputados, muitos deles pouquíssimo assíduos, fazerem leis acerca das faltas dos outros - como por exemplo o vergonhoso estatuto do aluno, que equipara faltas justifiacadas e injustificadas.
Carlos Pires
O facto de ter pedido desculpa transmite a ideia de que o cidadão está autorizado a transgredir a lei desde que depois peça desculpa. Então a lei morreu.
A este propósito não resisto à tentação de dar dois exemplos paradigmáticos:
1 -Na Antiga Roma, o arruaceiro e estroina Verácio não resistia ao gosto de dar uma bofetada pela taxa legal de 25 asses, que o seu escravo logo pagava à vítima" (Artur Montenegro, A conquista do direito na sociedade de Roma", ed. Imprensa da Universidade, Coimbra, 1934)
2 - "Nos Estados Unidos o juiz John Duffie multou-se a si próprio em 25 dólares depois de ter voltado da caça por, conscientemente,o ter feito fora da estação, isto é, na época do defeso" (Cruzeiro, 1960)
O terceiro exemplo lusitano como termo de comparação:
3- Em Portugal, dois ministros transgrediram a lei do anti-fumo, conscientemente, pelo que se apressaram a pedir desculpas.
Independentemente da justeza da lei, os ministros, ao pedirem desculpa pela transgressão, relembram o que Alphonse de Lamartine opinava no seu tempo:
"A noção de direito é tão forte que os homens, mesmo quando o violam, simulam respeitá-lo"
Não quero fazer de advogada de defesa ou de acusação, dizer que este ou aquele tem razão... só queria fazer 2 perguntinhas:
- Se eu alugar uma auto caravana, e for passar quinze dias de férias(ou apenas umas horas) dentro dela, posso fumar lá dentro ou não?
- Não haverá coisas mais graves, realmente graves, que nos implicam e envolvem, que este senhor tenha feito nos últimos anos em que por cá andou, e que valha a pena comentar?
1 - Como é que é aprovada uma lei que declara que é proibido fumar em aeronaves tout court? Quem tem um avião particular não pode fumar dentro dele? Sendo assim, também pode proibir de fumar dentro de casa... sobretudo se for arrendada... ou decidir que intimidades posso ter com a minha mulher...
2 - É interessante notar as reacções despropositadas a este episódio.
O avião em que o PM viajava era um "lugar público" ou não?
A "ratio legis" da lei (celerada) anti-fumadores é ou não a protecção (nem que seja à força) da saúde ? E, se sim, estava ou não o PM e o seu assecla a pôr em risco a saúde dos restantes passageiros?
Mais: o avião em causa não era um espaço privado;foi fretado por entidades públicas e o frete foi pago pelo erário público, i.e. por todos nós.
Dito isto acho toda a polémica ridícula, hipóctita e videirinha.
A isto chama-se assunto de merda!
O que refere não é verdade, não se trata de um voo da companhia aérea do seu país, trata-se de um voo privado e muito sinceramente desconheço se se pode ou não fumar lá dentro! Isto é prática comum nestes voos e alguns jornalistas tb fumam. Se alguém estava incomodado devia ter avisado os fumadores. E já são linhas a mais para este assunto!
Enviar um comentário