domingo, 13 de abril de 2008

EM MEMÓRIA DE STEPHEN JAY GOULD


Parece que foi ontem, mas em breve (20 de Maio) vai fazer seis anos que morreu Stephen Jay Gould. Em sua memória, recupero a crónica que escrevi no “Primeiro de Janeiro” em 27/Maio/2002 sobre esse grande biólogo e escritor de divulgação científica:

A notícia chegou-me, brutal, pela rádio. Aturdido, corri a confirmá-la pela Internet. Mas lá estava o obituário no infalível “New York Times”: “Stephen Jay Gould, teórico da evolução, morre aos 60 anos”.

Não o conheci pessoalmente. Ou melhor, vi-o uma vez ao vivo quando há alguns anos veio à Fundação Gulbenkian fazer uma conferência sobre evolução (quando a Gulbenkian nos traz o melhor, a excursão de propósito a Lisboa é obrigatória). Era um homem grande, em todos os sentidos do termo. Pareceu-me na altura tão vivo que não pude deixar de considerar a sua morte improvável quando ouvi a notícia dela.

Conheci-o por via das interpostas pessoas dos livros, o que, é de resto, uma das melhores formas de conhecer alguém. Tinha lido, entre outros, “A Feira dos Dinosáurios”, na Europa-América (o prefácio é uma das melhores defesas da literatura de divulgação científica que algum dia foram scritas), e “Full-House”, na Gradiva (o título ficou assim em português, mas poderia ter sido traduzido para “Casa Cheia”, o título de um popular jogo televisivo). E, coincidência das coincidências, no dia em que a morte do biólogo me aparecia por via radiofónica chegava-me por correio da Amazon o seu extraordinário volume “The Structure of Evolutionary Theory”, Harvard University Press, Cambridge Mass., 2002), o penúltimo dos muitos que publicou (saiu depois um volume póstumo). Fiquei siderado com as mais de 1400 páginas, recheadas de erudição da primeira à última linha. Há quem diga que Gould, nesta “obra de vida”, não só não poupou a tinta como não poupou a exibição do seu ego, ao apresentar longamente a sua tão criticada “teoria do equilíbrio pontuado”, que em jovem tinha proposto com o seu colega e amigo Niles Eldredge.

E, saboreados alguns dos seus livros (confesso que só li umas poucas das 1400 páginas), o que tenho a dizer que o excelente obituário do “New York Times” não tenha dito? Pois muito bem, vou dar uma opinião que só me compromete a mim: Sagan e Feynman que me perdoem (ambos já falecidos, tal como Gould, de cancro), Hawking, Watson e Reeves (muito vivos os três) que não fiquem ofendidos, mas Stephen Jay Gould é, de todos eles, quem melhor prosa de divulgação escreveu. Possuía o talento supremo de começar com um assunto qualquer aparentemente banal mas suficientemente curioso para prender a atenção do leitor e, depois de várias voltas e contravoltas, que só uma grande bagagem cultural permitia, chegar a uma mensagem profunda, que parecia não estar lá de início, mas afinal estava.

Escreveu regularmente, com uma pontualidade espantosa, durante mais de 25 anos, uma coluna para a revista Natural History”, a matéria-prima para livros como a “Feira dos Dinosáurios” (“Full House” é dos poucos que não é uma colectânea). Apesar de nunca se repetir (os temas eram os mais espatafúrdios, por exemplo em “Feira dos Dinosáurios” os mamilos masculinos e o clítoris feminino, num capítulo, e as “performances” desportivas do lendário Joe di Maggio, um dos maridos de Marilyn Monroe, noutro capítulo) glosou, ao longo de toda a sua vida, um único grande tema: a evolução natural. Aos cinco anos, quando viu um esqueleto de Tiranossauro Rex, no Museu de História Natural de Nova Iorque, decidiu ser paleontólogo e, desde essa altura, descobriu e revelou-nos a prolífica e extravagante riqueza de formas e funções dos seres vivos que a evolução espalhou pela Terra. É um tema infindável para um ser humano como Gould capaz não só de se maravilhar mas de fazer maravilhar os outros. É um tema a cuja glosa só a morte, inoportuna, podia pôr fim.

É oportuno recordar um dos mais notáveis textos gouldianos, que se encontra no referido livro da Europa-América. Nele o autor conta-nos como escapou à morte aos 40 anos. Foi-lhe diagnosticado um mesotelioma no intestino, uma forma rara de cancro que tem a ver com exposição ao amianto. Rapidamente operado, logo que acordou da anestesia, colocou à médica uma questão própria de um cientista: “Qual é a melhor literatura técnica sobre o mesotelioma?”. A resposta, evasiva, da clínica foi que a literatura médica sobre o assunto não tinha nada que merecesse ser lido. Leia-se agora o naco de prosa em que Gould nos conta o que se seguiu:

“Claro que tentar manter um intelectual afastado da literatura resulta quase tão bem como recomendar castidade ao homo sapiens, o mais atraente dos primatas. Assim que pude andar, fui direito à biblioteca médica de Harvard e digitei mesotelioma no programa de pesquisa bibliográfica do computador. Uma hora depois, rodeado da mais recente literatura sobre o mesotelioma abdominal, compreendi, em choque, a razão de me ter dado aquele conselho tão humano. A literatura não podia ser mais clara de uma forma brutal: o mesotelioma é incurável, com uma média de mortalidade ao fim de oito meses depois da detecção. Fiquei atordoado durante 15 minutos, depois sorri e disse de mim para mim: por isso não me queriam dar nada para ler. Então, felizmente, a minha mente voltou à vida”.

Ressuscitado mentalmente desse cancro, Gould sobreviveu-lhe também fisicamente. O texto de onde a citação foi retirada intitula-se no original “The median isn’t the message”, isto é, “A mediana não é a mensagem” numa paródia à frase “O meio é a mensagem” (em português saiu “A virtude não está no meio”...). Gould usa a estatística para nos contar como se consciencializou que podia escapar. Numa distribuição de probabilidade assimétrica, com uma cauda longa do lado direito, a mediana (linha que divide metade da probabilidade da outra metade) aparece antes da média. Quando assim é para um risco oncológico, a distribuição da probabilidade de morte estende-se até uma idade muito avançada. Gould leu que a média de mortalidade era de oito meses, mas concluiu sabiamente que muitos pacientes viviam até bastante tarde, bem acima da média. “Maravilhoso!”, escreveu ele com premonição, pois conseguiu sobreviver 20 anos ao mesotelioma. Passados 10 anos escrevia numa nota de rodapé, numa nova edição do livro: “So far so good!”. Tal como acontece em geral na evolução das espécies, a variação em torno da média é muito importante para a vida individual.

Retomando a sua crónica, a pena de Gould enfrentou directamente o tema da sua própria morte, uma tema que todos nós gostamos de evitar: ”Claro que concordo com o pregador do Eclesíastes em como existe um tempo para amar e um tempo para morrer – e, quando se me acabar a confusão, espero enfrentar o fim calmamente à minha maneira”.

O irónico é que Stephen Jay Gould morreu não do mesotelioma, entretanto vencido, mas de uma outra forma de cancro não relacionada com a primeira. Estúpido cancro que não gosta nada de perder! Gould faleceu não no hospital mas na sua casa de Manhattan, rodeado de livros e de fósseis, como sempre viveu. Tinha combatido tenazmente o inimigo, mas a luta com a morte, como ensina toda a história natural, é muito desigual.

Adeus, Stephen. Nós, que continuamos vivos, agradecemos tudo aquilo que nos ensinaste. Havemos de saber mais sobre evolução...

8 comentários:

Henrique Dória disse...

A natureza é injusta para quem merece viver-porque proporciona aos outros tanta sensibilidade e saber.Mas fica-nos o seu saber e o seu amor ao Homem em livros que ficarão para sempre.

LA disse...

Obrigadinho Fiolhais, não conheço este biólogo mas depois deste texto dá vontade de correr para a livraria, amanhã já terei qualquer coisa na mão.
Muito bom post!

Anónimo disse...

Professor,

Era o que eu estava a pensar, tal como o Ia, vou ver se encontro o autor.
Também gostei do post, Professor Fiolhais. Por um lado apresenta-nos um autor, por outro, os seus posts têm sempre uma face humanística, uma sensibilidade para com o outro, uma preocupação genuína com a condição humana.
E eu admiro-o por isso, e já não é de agora.

Era um optimista, portanto, era daquelas pessoas que, eu diria, têm fé, mesmo que tenha estudado as estatísticas para a fortalecer.

Eu tenho muita inveja das pessoas assim. Tenho mesmo.

Anónimo disse...

O S.Jay Gould era Paleontólogo!

" A Vida Maravilhosa" é uma obra maravilhosa. Leiam-na!

Anónimo disse...

Stephen Jay Gould era grande escritor e grande divulgador de História da biologia, paleontologia e geologia, e activista de causas nobres, mas a sua interpretação da evolução por selecção natural era muito esquisita e está já ultrapassada...

Aqualung disse...

Quando o Professor Stephen Jay Gould deu a conferência Fundação Gulbenkian fiquei a saber que existiam pessoas que defendiam algo absolutamente absurdo (entre elas o Ronald Reagan).

Estou a falar como é obvio do Criacionismo.

Do Professor apenas conhecia o Polegar do Panda (que ele me autografou!!!).

Quando vi o episódio da série Beleza e Consolação em que ele participava, pude novamente assistir a um grande momento de divulgação de Ciência.

"Sem morte estaria sem emprego" foi o que ele disse quando lhe perguntaram como reagia à morte, no caso era relacionado com a morte de um familiar.

Também me lembro de o ver nos Simpsons.

Talvez as ideias em que ele trabalhou possam ou não estar ultrapassadas mas que eu saiba a Ciência faz de tentativas e erros, não da leitura das "verdades" do "good book".

Anónimo disse...

Em boa hora veio o post. Nestes dias de ignorância, nada como relembrar a longa luta de Gould contra a escuridão. Conheci os textos de Stephen Jay Gould em 2000, quando comecei o mestrado, por sorte a biblioteca da UFV tinha uma coleção completa da Natural History. Por meio dele realmente entendi o que era o método científico, o alcance filosófico do mesmo e que a divulgação científica poderia alcançar status de literatura de primeira qualidade. Grande falta nos faz.

Fernando Martins disse...

Caro Doutor Fiolhais:

Excelente post, que os meus Blogues na data do aniversário irão publicar, indicando o autor e origem (se me autorizar...).

Devia fazer um post também com os livros publicados em Portugal bem como sugerir mais divulgação dos mesmos à Gradiva (que tem os direitos de quase todos).

E cá o esperamos este fim-de-semana prolongado em Leiria, como espeleólogo retirado (que espero que ainda não seja...).

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...