O meu post "A Filosofia e o Resto" suscitou muitas perguntas de vários leitores, a quem agradeço. Como me pediram respostas algo mais longas do que é possível nas caixas de comentários, aqui está uma tentativa.
Malaquias: “O Desidério afirma que o que distingue a filosofia da especulação pura é a argumentação. Presumo que se trate da argumentação lógica. Nesse caso, presumo que se trate da lógica booleana. Ora, a lógica booleana é matemática.” Presume mal. A lógica booleana é apenas um pequeno fragmento da lógica formal e eu referi-me explicitamente à lógica informal também, que é bastante mais vasta do que a formal. Por outro lado, mesmo a lógica formal clássica ultrapassa em muito a lógica boolena, pois esta é meramente proposicional e verofuncional (a lógica modal proposicional, por exemplo, não é verofuncional). E acresce que muitas lógicas formais não clássicas não aceitam alguns aspectos da lógica booleana. Além disso é enganador dizer que a lógica booleana é matemática — é mais o inverso: uma parte da matemática pode ser reduzida à lógica. As pessoas hoje em dia vêem a matemática como uma disciplina de extrema exactidão, e têm razão, mas não sabem que, historicamente, foi precisamente o facto de a matemática não ter rigor, sempre que saía do raciocínio puramente matemático, que levou lógicos como Peano, Russell e Frege a procurar sistematizar e formalizar o raciocínio lógico usado na matemática. O resultado foi o desenvolvimento da lógica formal a que hoje chamamos clássica, que alterou radicalmente a face da matemática, dando-lhe um rigor e precisão que anteriormente só a geometria tinha.
O que mantém a filosofia honesta?, pergunta o leitor Malaquias. Excelente pergunta. É a abertura à discussão cuidadosa. Um filósofo apresenta uma teoria. Os outros vão estudar cuidadosamente os seus argumentos, para ver se são cogentes; vão pensar e explorar teorias alternativas. A única diferença em relação à ciência é que as metodologias em filosofia não garantem resultados, como acontece na ciência quotidiana. Mas na ciência de ponta também não há garantia de resultados, e é argumentável que é precisamente nas fronteiras da ciência que está a verdadeira ciência, e não na ciência quotidiana. Era aliás por ter consciência desta diferença que Einstein defendia que ter uma formação filosófica era muito importante para um cientista de ponta.
E afinal o que é isso de argumentar? É apenas discutir ideias, mas fazê-lo com abertura crítica, rigor e cuidado, e tanto quanto possível sem falácias. Muitos filósofos recusam-se a discutir as suas ideias e pensam que descobriram a Verdade? Claro. Isso acontece com filósofos e cientistas e religiosos e peixeiros. É a ilusão mais humana e ao mesmo tempo a mais desumanizante. Mas o sistema em si mantém-se saudável desde que, institucionalmente, persista a liberdade e a possibilidade de discussão aberta, sem tabus. Ora, isso é precisamente o que se passa nas publicações académicas da especialidade, nos livros, nas conferências — pelo menos, nas que são sérias. Claro que nada disto é perfeito e há casos infelizes. Mas isso só significa que compete a cada profissional da filosofia preocupado com este estado de coisas defender precisamente a pluralidade da discussão e a sua importância, e ensinar os seus estudantes a fazer isso. Não há métodos automáticos e infalíveis.
Paulo Roberto pergunta se os juízos sintéticos a priori de Kant não são “uma tentativa de atribuir um status científico ao método especulativo da filosofia”. Kant sofria realmente do protopositivismo do seu tempo, que iria dar origem ao positivismo do séc. XIX. Podemos pensar que é uma visão algo limitada, mas a verdade é que o desenvolvimento impressionante das ciências a partir do séc. XVII provocou uma grande ansiedade nos filósofos: subitamente, sentiam que ou conseguiam pôr a filosofia a produzir o mesmo género de resultados que a ciência estava a produzir, ou teriam de admitir que a filosofia era banha da cobra. Pessoalmente, penso que esta é uma reacção injustificada. A ciência empírica produz resultados porque lida com um certo domínio de problemas, para os quais há geralmente (mas nem sempre) soluções empíricas e matemáticas; a filosofia lida com problemas para os quais não há tais soluções. Concluir que por isso tais problemas são falsos problemas é falacioso porque tal conclusão é em si filosófica. A filosofia é incómoda porque não faz micro-ondas nem aviões como a ciência, mas é inevitável porque qualquer argumento que procure recusar a filosofia será intrinsecamente filosófico. A filosofia é mesmo este espinho incómodo cravado nas garras de quem quer respostas prontas e acabadas ou métodos de investigação que garantem resultados à partida. Mas pessoalmente não me parece que a ciência fosse possível se não houvesse a filosofia, com a sua ousadia de fazer perguntas aparentemente idiotas sobre problemas aparentemente insusceptíveis de solução.
Kant, efectivamente, queria pôr a metafísica no caminho seguro da ciência, tal como Newton o fez com a física. Mas o resultado conseguido foi tipicamente filosófico e como tal não consensual — produziu apenas mais uma teoria filosófica que merece ser cuidadosamente discutida, entre muitas outras. Os juízos sintéticos a priori não desempenham tanto o papel de pôr a metafísica no caminho seguro da ciência, mas antes de mostrar como pode a ciência produzir leis necessárias mas informativas: são necessárias porque são a priori, mas são informativas porque são sintéticas. Poucos filósofos depois de Kant aceitaram esta teoria.
Carlos Fernando levanta um conjunto de questões interessantes. A primeira é “como se define o rigor?” E sugere que há várias maneiras de o fazer. Concordo. Diferentes áreas da filosofia, ou das ciências, ou das artes, são susceptíveis de diferentes graus e tipos de rigor. O rigor da sintaxe musical erudita é de um género diferente do rigor da química, que por sua vez é de um género diferente do rigor da matemática. O rigor geralmente possível em filosofia moral, por exemplo, é diferente do rigor possível em metafísica ou teoria do conhecimento. Contudo, o importante é a ideia de que há rigor — a ideia de que não vale tudo, a ideia de que não se pode cair na pura subjectividade em que cada qual pode dar largas aos seus sentires, cabendo aos outros apenas a sua aceitação bovina ou rejeição igualmente pessoal e subjectiva. Uma pessoa pode ter uma iluminação filosófica no alto da montanha e desce, qual Zaratustra de Nietzsche, para anunciar a Verdade; se a comunidade de filósofos que encontrar for genuinamente filosófica, a malta não se deixa levar só porque o tipo tem umas tiradas de aspecto profundo, tem uma barba comprida, veste-se de preto e cheira a alho. O trabalho genuinamente filosófico é a discussão cuidadosa e pormenorizada das ideias desse Zaratustra. Serão tais ideias plausíveis? Porquê? Quais são os melhores argumentos contra elas? Porquê? E quais são os seus pontos fracos? Porquê? A filosofia é isto, e é muito irritante para quem quer respostas tipo “fast-food” para depois ir à vida que a morte é certa.
De seguida, Carlos Fernando pergunta: “A acentuação da importância da lógica informal conjuntamente com a lógica formal não seria uma maneira de tirar essa relevância da história da filosofia?” Não, de modo nenhum. A história da filosofia é importante porque não vale a pena reinventar as mesmas teorias e argumentos. Seria desavisado ignorar o que já foi feito porque seria voltar a partir do zero — na verdade, é em geral o que fazem os cientistas quando se põem a filosofar porque não se dão ao trabalho de estudar primeiro a bibliografia básica (penso que são vítimas da seguinte ilusão: se os filósofos, ao contrário dos cientistas, não produziram resultados, então não há realmente bibliografia que valha a pena ler, porque não há manuais de filosofia como há manuais de física, que apresentem os resultados entretanto alcançados; logo, qualquer ignoramus da bibliografia básica tem tanto direito epistémico de apresentar teorias filosóficas como um filósofo profissional, mas o mesmo não acontece na física, na qual só quem domina o conhecimento acumulado tem o direito epistémico de apresentar teorias físicas).
Mas seria igualmente desavisado presumir que o que foi feito é apenas para ser catalogado, compreendido, arrumado — mas não discutido. As ideias dos filósofos, do passado e do presente, são importantes num sentido diferente em que as ideias dos cientistas do passado são importantes. No caso da ciência, cada investigador contribuiu um pouco para a construção do que temos hoje: a ciência apresenta resultados em grande parte cumulativos. Mas a filosofia não apresenta resultados cumulativos — não sabemos hoje se há livre-arbítrio, por exemplo, como sabemos hoje qual é a composição da atmosfera de Marte, pelo que as investigações dos filósofos antigos sobre o livre-arbítrio não são pequenas contribuições para o resultado final que teríamos hoje. Mas são importantes porque exploram possibilidades que em qualquer caso têm de ser exploradas e porque ninguém sabe se alguma dessas teorias terá aspectos verdadeiros. Isto significa que as investigações de um filósofo do passado podem ter um interesse actual, e não meramente histórico: isto é, podemos querer discutir essas investigações como possibilidades vivas, teorias em aberto, e não como meras contribuições acabadas (definitivamente verdadeiras ou falsas) para a compreensão actual das coisas.
O que não se pode é confundir o trabalho da história da filosofia, que é muito importante, com o trabalho da filosofia. O historiador da filosofia não tem por missão discutir se a teoria de um determinado filósofo é plausível ou não. A sua missão é explicar cuidadosamente a sua teoria, como se articula, como se relaciona com as outras teorias desse filósofo, e que tipo de influências tal teoria sofreu de outras ideias comuns no seu tempo, ou das leituras que esse filósofo fez, e que influência tal teoria teve mais tarde nos filósofos posteriores. Este trabalho é fascinante, e pessoalmente gosto imenso de ler boa história da filosofia. Só que um filósofo faz outra coisa: discute essa teoria para saber se é plausível ou não e porquê, se deve ser rejeitada ou modificada e porquê, que argumentos a sustentam e que argumentos não podem sustentá-la. (Na prática, a história da filosofia e a filosofia misturam-se, neste sentido: alguns dos melhores filósofos contemporâneos são também historiadores da filosofia, ou fizeram também importantes trabalhos em história da filosofia.)
Finalmente, o leitor Rui Pereira manifesta a sua desilusão: “o resultado é um constante discutir de teorias e ideias, sem que se chegue a nada definido. Já estive nessa situação, que não é nada agradável.” Bem-vindo à filosofia. Nem toda a gente tem estômago para isto, mas é isto mesmo que é viver nas fronteiras da ciência, onde não há resultados nem receitas que garantam resultados. A filosofia é investigação de ponta permanente, da mais de ponta que existe: a que não se sabe sequer se poderá algum dia produzir resultados, por melhores que sejam os métodos usados, por mais inteligentes que sejam os investigadores. Alguns investigadores desesperam e McGinn escreveu um interessante livro defendendo que os problemas da filosofia pertencem a uma categoria tal que a sua solução não nos é cognitivamente acessível. Ironicamente, claro, esta própria posição é filosófica e está longe de ser consensual entre os filósofos. A filosofia é esta insistência em pensar e discutir cuidadosa e abertamente, sem nos fecharmos no subjectivismo cego, nas perspectivas pessoais e incomensuráveis. E esta insistência faz-nos mais humanos, eu acho, e aproxima-nos do verdadeiro espírito da ciência.
A ironia é que a tentação de argumentar do seguinte modo é um argumento eminentemente filosófico e ainda por cima falacioso: “até hoje, 2500 anos depois, os filósofos não conseguiram descobrir a solução de nenhum dos grandes problemas da filosofia; logo, mais vale desistir porque nunca vão conseguir.” O argumento é falacioso porque obviamente que se poderia usar o mesmo argumento na véspera de cada descoberta científica — antes de Galileu ou Newton, por exemplo. E também é falacioso porque oculta dados importantes: na realidade, parte importante dos problemas encarados como filosóficos foram realmente resolvidos — depois de transitarem para a ciência, quando se descobriram métodos para os resolver. Contudo, se tivéssemos começado por desistir de tentar, se tivéssemos começado por rejeitar tais problemas por não termos métodos científicos para os resolver, nunca teríamos descoberto tais métodos. Descobrimos métodos científicos para resolver problemas porque primeiro estudámos esses problemas antes de serem científicos; não descobrimos os problemas só depois de termos métodos científicos de investigação (isso é o que se faz na ciência quotidiana, mas não na grande ciência de ponta, como argumenta Einstein).
Espero que estas notas sejam esclarecedoras, mas receio ter escrito demais para um blog.
sábado, 19 de maio de 2007
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29 comentários:
Como ainda ninguém disse nada, aproveito mais uma vez para saudar Desidério Murcho, porque acho que não perdi de modo nenhum o meu tempo a ler este post, antes pelo contrário. Assim, vale a pena ler…
A propósito de boas e más companhias, aqui, temos boa companhia! Estou seguro disso.
Muito obrigado.
É preciso ler e mastigar, mas de um conjunto de respostas a comentários nasceu um belíssimo post, por direito próprio.
O post é obviamente bom e interessante. Mas a filosofia é mesmo tramada. Veja-se, por exemplo, que até a simples afirmação que: "...são necessárias porque são a priori" está longe de ser tão óbvia e aceitável quanto o Desidério deixa a entender. Aliás, o conceito de Filosofia que é aqui aflorado está longe de ser pacífico e aceitável.
É claro que subjacente a este discurso do Desiderio está a premissa de que Deus não existe, ou se existe não se revelou à humanidade. Mas isso é uma premissa não demonstrada. É o ponto de partida do Desidério, mas apenas isso. Não pode reclamar qualquer autoridade fora da cabeça do Desidério. É uma entre oito biliões de opiniões possíveis, tantas quantas o número de habitantes do planeta.
jlc, obrigado pela correcção. O que se passa é que Kant pensava que tudo o que era a priori era necessário (e vice-versa). Essa era aliás uma crença muito comum, até aparecer Kripke e ter estragado a festa. Eu não acredito que tudo o que é a priori é necessário, até porque são duas categorias distintas: a primeira é epistemológica, e a segunda é metafísica. Devia ter sido mais explícito no post, dizendo que estava a falar da crença de Kant e não da minha.
A premissa de que Deus não existe ou que não se revelou à humanidade não está presente no post. Essas hipóteses são aliás continuamente analisadas e discutidas cuidadosamente pela filosofia. Mas o que não se pode fazer em filosofia é partir do pressuposto oposto: que Deus existe ou que ele se revelou à humanidade.
É por isso que a Bíblia, na única vez que menciona a palavra filosofia, adverte contra o beco sem saída a que conduz a sabedoria humana.
O problema é que se não há qualquer razão para aceitar o que está escrito na Bíblia, é tão arbitrário aceitá-lo como aceitar o que eu escrevi ontem na casa de banho.
Mas se há razões para o aceitar, então essas razões, por serem razões, são susceptíveis de ser discutidas -- e só se forem discutidas é que saberemos se são boas razões.
A fé cega tem a cegueira de presumir que ultrapassou os limites do humano, mas é apenas uma manifestação humana, assente em premissas humanas e num ou noutro livro escrito por seres humanos que fazem a mais velha reinvindicação humana: que falaram directamente com Deus. Falaram? Tendo Deus a tendência para falar tão baixinho, mesmo que tenham falado, podem ter-se enganado ao transcrever a mensagem.
"Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vâs subtilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e não segundo Cristo, porque nele habita corporalmente a plenitude da divindade".
Carta de Paulo aos Colossenses 2:8-9
"Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de religiões e vâs subtilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e não segundo a inteligência clara, porque nela habita corporalmente a plenitude da divindade".
Carta de Bonifácio aos Calões Intelectuais 2:8-9
Não duvido da sinceridade com que alguém acredita seja no que for. Posso duvidar, isso sim, de que aquilo em que afirma crer não corresponda à sua crença interior. Sabe-se que até papas houve que foram ateus.
Mas o problema que aqui tem surgido por vezes é o da velha tradição da inércia da exegese bíblica católica, que tendia a ver em cada palavra das Escrituras a própria palavra de Deus. Vários dos livros considerados canónicos estiveram em risco de não o ser, porque de facto nada acrescentam à Revelação. (Sei que este termo nada tem que ver com um blog científico e filosófico, mas faz falta para explicar a ideia.) A Bíblia deve ser entendida como a voz e a história de um povo que foi encarregado de manter a fé no único Deus. Povo bem escolhido para isso porque, embora tão cheio de defeitos quanto todos os outros, tinha uma virtude enorme: a teimosia. O que lhe permitiu acreditar sozinho que Deus era um somente, resistindo até a todas as perseguições que bem conhecemos. Deste modo é que a Bíblia transporta a mensagem de Deus: através daqueles que acreditaram, mas que no entanto, fizeram teologia segndo as possibilidades do seu tempo. Para os cristãos, com Cristo é que chega a verdadeira Revelação, ou se completa a sua totalidade.
O espaço razoável para estes comentários não é sufuciente para mais pormenores. (Note-se, no entanto, que aqui também deixo o meu cunho pessoal de exegese.)
Gostei do "post" e dos comentários.
Peço desculpa: carreguei na tecla errada, e em vez da maiúscula para completar o meu nome enviei o comentário para o blog. Sem revisão sequer. Mas compreende-se o essencial, suponho eu.
Daniel de Sá
Acho que também já é tempo de um post sobre a diferença entre opinião (doxa) e saber (sofia). Ou seja, que Filosofia não é Filodoxia, não é opinião. É procura incessante de Saber.
Também seria, proventura, útil um post sobre a diferença entre o conceito de Deus na filosofia e a noção de Deus na religião.
Por fim, caro Desidério, julgo que concordará comigo se disser que a filosofia tem tanto de belo como de angustiante. Kant pensou que, ao menos, as proposições a priori teriam uma certeza apodítica. E, como tal, a partir delas se poderiam constituir, formalmente, os genuínos princípios metafísicos de qualquer, conhecimento, de qualquer ciência. Ao menos o que era conhecido puramente a priori, era conhecimento seguro. Mas aparece sempre alguém para nos estragar as certezas, e fazer tudo recomeçar tudo de novo (enfim, passe o exagero).
------A filosofia é esta insistência em pensar e discutir cuidadosa e abertamente, sem nos fecharmos no subjectivismo cego, nas perspectivas pessoais e incomensuráveis. E esta insistência faz-nos mais humanos, eu acho, e aproxima-nos do verdadeiro espírito da ciência.----
O que eu não entendo é por que razão a filosofia se deve aproximar da ciência e se deve reger pelos seus cânones, como deixa entender esta passagem. A filosofia deveria "fiscalizar" a ciência, e não pedir-lhe autorização para usar o seu método, que, aliás, a ciência deve à filosofia.
não entendo esta subserviência dos filósofos contemporãneos que se vergam (e este é o termo correcto) ao poder e resultados da ciência. claro que a ciência é respeitável e deve ser respeitada. mas a cência é uma actividade humana localizada. a filosofia, vista sem ser à luz de uma conceptualização excessiva, não é uma actividade localizada. o Desidério sugere que a filosofia é não formal e tem tópicos determinados. eu acho que isto é extremamente redutor. filosofar é um estado antes de ser uma prática. a filosofia é admiração e pensamento sobre tudo, e não só sobre os tópicos académicos que os filósofos profissionais elegem ou herdam. penso, portanto, que a perspectiva da filosofia oferecida pelo Desidério é redutora e até castradora do alcance da filosofia. sinais dos tempos, talvez. eu não me conformo com isto...
Para mim que sou completamente ignorante, continuo a dizer a torto e a direito, na esperança de me acharem, se não inteligente, pelo menos "cultivada", que.. "não há melhor metafísica que comer chocolate"
Mas hoje, quando, por acaso, e nada me parece ser por acaso... vi de relance uma pessoa conhecida, à qual não falei porque não me lembrei de imediato do nome, que mais tarde pesquisei no Google, por me ter lembrado, e de link em link cheguei a este blog, fiquei fascinada. Obrigada por haver portugueses que pensam,e escrevem o que pensam, mesmo sem pensar e sobretudo, se não concordo com eles.
De mestre!
Caro Fred
Não acho que a ciência deva ser respeitada. Deve ser criticada. Como a filosofia. Como qualquer ideia filosófica, e em especial aquelas que querem, precisamente, proteger-se da crítica -- como a ideia de que a filosofia é sempre outra coisa, que não se sabe bem o que é, que está para além, ou para aquém, ou se situa na vivência, ou na casa-de-banho, ou na varanda... tretas para fugir ao incómodo da objecção, do contra-exemplo, da crítica aberta, do pensamento sem peias.
Também não disse que a filosofia se deve aproximar da ciência, mas antes que o verdadeiro espírito da filosofia é o verdadeiro espírito da ciência. E no próprio post distingui claramente a ciência dos seus resultados. De modo que não me vergo aos resultados da ciência, como pensava que a leitura do post deixaria claro -- mas obrigado por esta oportunidade para esclarecer melhor as coisas.
A ideia de fiscalização parece-me, essa sim demmasiado redutora e em conformidade com o pensamento globalizante, em que tudo, para que possa científico (sic), tem se ser, aferido, medido, controlado,"swot8izado)"
Gosto de ler a fluidez das ideias.
A discussão aberta é o oposto da fiscalização.
A fluidez confunde-se com pura arbitrariedade e subjectividade incomensurável se não estiver aberta ao debate com as outras pessoas.
o relativismo pode ser um dos perigos da Filosofia considerada no seu todo como disciplina de investigação.DE facto há argumentos bons e maus em teses opostas e parece não haver qualquer evolução em relação à discussão desses argumentos,porquê então aceitar esta ou aquela tese?
Feras, não me parece que seja verdade que não há evolução em relação à discussão dos argumentos da filosofia. Pelo contrário, parece-me haver uma enorme evolução, sobretudo nos últimos 50 anos. Basta ler a bibliografia mais recente para o verificar.
Por outro lado, a filosofia não é uma questão de aceitar esta ou aquela tese, mas sim de as discutir cuidadosamente.
Caros Desidério e anónimo
Espero que tenham reparado que usei "fiscalizar", aliás entre comas, no sentido de "inspecionar". Como é óbvio, não queria dizer que a filosofia deveria ser a Sta-Inquisição da ciência. isso seria uma parvoice a todos os níveis. ficalizar deve ter o sentido que o Desidério dá: crítica, discussão, abertura, etc. quem "fiscaliza" vê se algo está correcto usando um determinado conjunto de preceitos ou regras. no caso da fiscalização da ciência por parte da filosofia essas "regras" devem ser as que o Desidério sugere.
(espero que tenham compreendido melhor a metáfora agora)
E, Desidério, não contesto que
«o verdadeiro espírito da filosofia é o verdadeiro espírito da ciência»
Contesto é subserviência dos filósofos ao poder e resultados da ciência. Acho a filosofia e a ciência partilharem muita coisa não é razão suficiente para a filosofia se submeter aos preceitos e resultados da ciência.
por exemplo, a maioria dos cientistas só conhece filosofia da ciência. mas a maioria dos bons filósofos conhece (pelo menos em traços gerais) quase todas as grandes teorias científicas. o problema é que a maioria dos cientistas, que tal como a ciência devem ser respeitados (respeito não implica submissão), não têm o minimo de respeito pela filosofia, que encaram quase sempre como um gadget disciplinar dado à curiosidade mas obsoleto. isto tem de mudar, pois apesar de os filósofos não criarem satélites ou curas para certas doenças, ou de contribuirem directamente para descodificar o genoma dos marcianos, ainda assim não deixam de ter um papel na formação do conhecimento humano que não pode ser ignorado.
Agradeço muito ao Desidério os esclarecimentos. Infelizmente, a minha fraca preparação nesta área veio ao de cima e receio ter tido alguma dificuldade em digerir algums das respostas. Mas vou tentar depois uma leitura mais cuidada, acompanhada de uma boa enciclopédia.
Já agora, tenho um texto crítico sobre a postura deste blog. não o ponho aqui porque é um bocado extenso. quem quiser pode vê-lo em
http://filosofodiletante.blogspot.com/
passo a publicidade.
grato
fred
Caro Desidério,
Antes de mais nada, muito obrigado pelas respostas pormenorizadas.
Fiquei curioso por saber quem são os filósofos contemporâneos a quem você se refere que são também excelentes historiadores da filosofia. E, desculpe a pergunta pessoal, mas você não acha que faltaria um pouco mais de história da filosofia para você quando falas em Derrida, Heidegger, Hegel, por exemplo? Não acha que isso poderia dar uma maior riqueza às suas críticas sobre a maneira de filosofar desses autores? Seria interessante ver aqui no blog ou em outro local comparações com outras maneiras de se fazer filosofia.
Quando me referi ao seu projeto de por meio da lógica formal em conjunto com a lógica informal encontrar um método universal para se fazer filosofia e com isso tirar o peso da tradição e da história da filosofia, quis dizer que me pareceu que você estava ou está ignorando esse peso da história para a filosofia, pois seria preciso, segundo penso, sempre recorrer à história da filosofia para se buscar algum método de fazer filosófico, ou algum conceito de filosofia a partir do qual se 'filosofaria'. Claro, além disso é possível criticar todos os conceitos e métodos e se inventar o próprio. Mas, segundo estou tentando entender, cocê está falando, então, de outra coisa, de um meta-método de se filosofar? Para além de qualquer método: dialético platônico, dialético hegeliano, descontrucionista, fenomenológico, marxista, etc? E também um meta-conceito de filosofia para além de qualquer conceito particular das mais variadas filosofias? Se for isso mesmo, poderia dizer, por fim, qual a relevância de tal busca?
Carlos Fernando
Olá, Carlos
Basta folher as revistas académicas da especialidade e ver como se faz aí filosofia. E o que se verifica é discussão intensa de ideias. É disso que estou a falar e não da adopção de um método particular, como a fenomenologia, a hermenêutica, etc. Lendo essas revistas verifica-se também que não há qualquer desprezo pela história da filosofia, mas é claro que para a história da filosofia há revistas académicas próprias, pois é uma área especializada.
Como exemplo de historiadores da filosofia que são também filósofos refiro Anthony Kenny, assim como Richard Sorabji, Thomas Baldwin e Scott Soames. Mas há muitíssimos mais.
Desiderio disse:
"Não acho que a ciência deva ser respeitada. Deve ser criticada. Como a filosofia. Como qualquer ideia filosófica, e em especial aquelas que querem, precisamente, proteger-se da crítica -- como a ideia de que a filosofia é sempre outra coisa, que não se sabe bem o que é, que está para além, ou para aquém, ou se situa na vivência, ou na casa-de-banho, ou na varanda... tretas para fugir ao incómodo da objecção, do contra-exemplo, da crítica aberta, do pensamento sem peias."
Sendo que a filosofia foi criticada neste ponto:
Anónimo said...
"Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vâs subtilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e não segundo Cristo, porque nele habita corporalmente a plenitude da divindade".
Carta de Paulo aos Colossenses 2:8-9
Ao que esta responde:
Desidério Murcho said...
"Tende cuidado para que ninguém vos faça presa sua, por meio de religiões e vâs subtilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo e não segundo a inteligência clara, porque nela habita corporalmente a plenitude da divindade".
Carta de Bonifácio aos Calões Intelectuais 2:8-9
Ou seja, tudo vai de encontro ao pensamento pós-moderno que diz: "Ninguém me diz o que devo fazer (ou acreditar)!" e que está presente no quando diz:
"a filosofia não é uma questão de aceitar esta ou aquela tese, mas sim de as discutir cuidadosamente."
Um exemplo pode ser este: podemos estar todos a cheios de fome (física ou espiritual), mas vem o filósofo e pergunta-se se realmente teremos fome. E se é fome que temos, deve ter certas características que indiciam fome. E deve mostar falta de certos nutrientes e deve perguntar a outras pessoas se realmente é fome que temos, mas depois quando está mesmo prestes a a desmaiar com a fome, aí todas estas exortações deixam de fazer sentido, e o que se quer é comer. Simplesmente comer. É o mesmo que para acreditar em Deus. O que se pede é que se acredite. Porque andar com divagações sobre a sua existência, só vai fazer aproximar-nos da fome, para o qual mesmo no limiar desta, qualquer divagação deixa de ter sentido. Uma pessoa com fome, simplesmente come. É claro que as coisas podem não chegar a este ponto pois também poderá não ajudar a suprimir as necessidades essenciais, mas andar constantemente a discutir tudo o mais, é realmente procurar ter fome voluntariamente. Para bem da intelectualidade. Será mesmo?
Muitos filósofos contemporâneos seriam os primeiros a reconhecer que a crença do Desidério na filosofia é hilariante!
A questão é que há explicação para a crença na filosofia como Desidério a defende, bem como há explicação para a crença em Deus que a filosofia tanto questiona. Mas a filosofia prefere passar fome a querer saber qual é a explicação. Entretanto, a fome faz os seus estragos e para minimizá-los, vivemos constantente a remediar com toda uma série de explicações ou teorias, até realmente o dia em que a fome dá cabo do nosso ser. Felizmente, Deus, na pessoa de Jesus Cristo perdoa todas as nossas fraquezas, seja em que estado estiverem e restaura-nos novos, e isso é algo que muito dificilmente se encontra em qualquer explicação ou teoria. Preferimos remediar, ou prevenir?
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