sexta-feira, 15 de julho de 2022

OS PODERES DA LITERATURA

Eugénio Lisboa

Há livros escritos para evitar 
espaços vazios nas estante.
Carlos Drummond de Andrade

A literatura tem grandes poderes e grandes fastios. Não vou enumerar aqui todos os seus poderes nem todos os seus fastios. Estaríamos aqui até chegarem aí os chineses. Um dos seus mais admiráveis, estimáveis e quase nunca alardeados poderes é o de, mais do que tornar o leitor um admirador do escritor, ser capaz de fazer dele um amigo.

Há escritores de quem ficamos gratos amigos, depois de os lermos, mesmo sem os termos pessoalmente conhecido, mesmo não tendo vivido no mesmo século que eles. Para dar só alguns exemplos, repito: só alguns exemplos, Camões, o Padre António Vieira, Garrett, Camilo, Eça, Pessoa, Régio (há meninos que, para efeito curricular académico, gostam de definir a presença, suprimindo Régio e dando como suas balizas Nemésio e Torga, o que, além de ser estúpida afronta, é, eruditamente falando, um ciclópico disparate, porque Nemésio e Torga pouco tiveram que ver com a presença.

Mas, ocultar Régio afaga o ego de certos docentes que, fazendo também versos, desconhecem a mais elementar arte poética, e os candidatos a docentes sabem bem para que lado o vento sopra), Domingos Monteiro, Rodrigues Miguéis, Jorge de Sena, Sophia (a sua poesia, não ela), Montaigne, Voltaire, Vauvenargues, Stendhal, Baudelaire, Gide, Roger Martin du Gard, Edgar Poe, Mark Twain, Dickens, Charlotte Brontë, Tolstoi, Tcheckov, Turguenev e outros.

Repito que falo de amizades e não de admirações: há escritores que admiramos mas que não consideramos necessariamente nossos amigos. Seja como for, quer haja só admiração, quer haja também amizade, a literatura ajuda-nos a viver, protege-nos e torna-nos a vida viável, mais rica e aprazível. Dizia o ficcionista americano Charles Bukowski que, sem a literatura, a vida seria um inferno.

Isto é bem verdade, mas a literatura que impede que a nossa vida se torne num inferno é só uma certa literatura. Há, julgo eu, mais duas espécies de literatura: aquela que nos deixa completamente indiferentes e que, quando a lemos, não altera nada dentro de nós, e aquela que torna a nossa vida num inferno. A primeira, a que nos deixa exactamente como éramos antes de a lermos, é aquela que Carlos Drummond de Andrade dizia só servir “para evitar espaços vazios na estante”. É uma literatura constituída por livros que não nos incomodam, mas também nos não exaltam, que não nos arreliam mas também não nos modificam. Digamos que são livros neutros, assexuados, desnecessários, mas não necessariamente malignos. 

Porém, há outra categoria de literatura, a dos livros que fazem da nossa vida um inferno, que nos fazem mau sangue e nos produzem enxaquecas intratáveis. Livros que interferem com o normal funcionamento do nosso organismo e com a nossa saúde mental. Infelizmente, a nossa literatura portuguesa contemporânea, com a bênção de tantas das nossas vestais universitárias & outras, abunda nesta espécie de literatura infernal. Ainda há pouco, tive ocasião de identificar uma dessas espécies – para o caso, um romance – cujo contacto me abalou a saúde para sempre. Para estes malfeitores devia congeminar-se legislação adequada. 

Que diabo, um crime é um crime!

A única vantagem destes livros sulfurosos é esta: se duas pessoas que se encontram pela primeira vez verificam que ambos acham infernal um mesmo livro, há grande probabilidade de essas duas pessoas se tornarem grandes amigas para o resto dos seus dias. Inversamente, como observava o maravilhoso P. G. Wodehouse, “não há base mais segura para uma bonita amizade do que um gosto mútuo na literatura.” Por outras palavras, o inferno une mas o céu também.

Seja como for, a literatura tem admiráveis poderes: abre-nos mundos novos, é, como dizia Kafka, “uma expedição em direcção à verdade”, consola-nos, desafia-nos, provoca-nos, ensina-nos, obriga-nos a desaprendermos conceitos falsos mas muito enraizados, ilumina as dificuldades com que, na vida, deparamos, e enriquece-nos das maneiras mais diversas. 

Talvez possamos resumir os poderes benévolos da literatura, por estas palavras singelas e sábias do filósofo, linguista e ensaísta literário búlgaro, radicado em Paris, Tzvetan Todorov:
“Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a resposta que me vem espontaneamente à cabeça é porque ela me ajuda a viver”.
Eugénio Lisboa

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A literatura, para além de outras virtudes, e não estou a pensar em defeitos (que até podem ser vistos como suas principais virtudes) é um exercício intelectual, uma actividade exigente de leitura e interpretação que cada um fará ao jeito e até onde se lhe proporcionar o gosto, a imaginação e a criatividade, sem esquecer a experiência e os conhecimentos necessários para a descodificar/produzir.
Os autores, para mim, são indissociáveis das obras. E, acima de tudo, a literatura é o paradigma da liberdade, tanto na perspectiva do autor, quanto na perspectiva do leitor.
Mas, para isso, para ser paradigma da liberdade, não pode ser uma literatura ao serviço de uma propaganda. Quero dizer com isto que literaturas há muitas e que não me interessa por aí além uma literatura militante, prefeita, ou preformatada, por mais habilidoso, criativo ou genial que seja o escritor a manusear conteúdos e formas e formatos.
Divulgadores de cartilhas ideológicas, militantes de qualquer espécie, doutrindores e pregadores talentosos capazes de nos fazerem chorar contra nossa vontade e de até nos fazerem termos vergonha disso, como se tivessemos sido hipnotizados, não há muitos, se é que os há, mas não me seduzem.
Isso de tocar violino num serrote, pode fazer-me arrepiar e até aguar dos olhos, como me acontece nos funerais, mas não é a arte da minha vida.
Há autores de quem gosto e, independentemente das histórias e dos enredos que contam, que pouco me interessam, me transmitem visão, inteligência, humanidade dos bichos e desumanidade dos deuses, irrelevância dos anjos, bravura dos touros, integridade dos burros, coragem dos ignorantes, força dos destemidos, paixão dos simples e ingénuos, espírito guerreiro dos ofendidos, insubmissão dos maltratados, revolta dos empobrecidos, inconformismo dos caluniados, capacidade de abnegação, pela verdade, pela autenticidade, pela justiça e pelo direito, contra tudo e contra todos, sem cedências a partidos, religiões, conluios, arranjinhos e trapaças palacianas ou de alcova, que não perdoam a ninguém que seja um verme, quer ele esteja nas instâncias superiores dos intocáveis, ou não. Se fossem feras eram puras, respeitáveis como leões, ou águias, ou serpentes, que não fazem mal a uma pomba, mas são implacáveis e inclementes com eles próprios, segundo os seus critérios, ainda que só em ficção.
Quem não sonha passar num crivo destes?
Autores que ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes, todos os tipos de poderes, seja o poder do sexo, ou do dinheiro, ou das armas, da democracia, ou da ciência, ou da religião, mesmo sem esperança de os vencerem?
Que, inclusivamente, ousaram, ou ousam, enfrentar os poderes da literatura?
Autores que foram vencidos por ela, e ainda bem?
Não só pelos poderes da literatura, mas pelos seus valores, que não cabem na frincha de nenhum mealheiro?

João Boavida disse...

O "esquecimento" de José Régio é mais um sinal de que há quem procure sempre andar na onda de tudo quanto lhes cheire a moderno, e ao sabor dos ecos, que reproduzem e multiplicam. Paralelo, penso eu, a uma certa desvalorização da "Presença", revista que pela sua continuidade, números publicados, e quantidade e qualidade da sua produção poética e teórica é um caso impar na nossa literatura. Talvez que a sua desvalorização se explique também por um certo provincianismo centralista e modernismo bacoco que teme sobretudo ficar fora do barco que, em cada época, vai surfando a onda.

Ildefonso Dias disse...

[Os Avisos do Destino e O Príncipe com Orelhas de Burro] de José Régio são obras em que abundam simbolismos reaccioários, primários e rancorosos.

Ildefonso Dias disse...

Li, nos Cadernos de Lanzarote,

"O que extingue a vida e os seus sinais, não é a morte, mas o esquecimento. A diferença entre morte e vida é essa."

José Régio é um dos maiores poetas portugueses.

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