quarta-feira, 6 de julho de 2022

O LONGO BRAÇO DO PASSADO

Recensão de Eugénio Lisboa:

O LONGO BRAÇO DO PASSADO (Guerra & Paz) é o segundo romance de Rui de Azevedo Teixeira, sequela da impressionante estreia que foi o ELOGIO DA DUREZA, publicado o ano passado. 

Ao contrário de tantos romances lusos, que são um conjunto de picardias narrativas, de que se extrai pouco sumo, Rui Teixeira enche de história vivida e sofrida, até rebentar as costuras, estes seus dois romances, a que se seguirá, suponho e desejo eu, um terceiro. De facto, ao mergulhar no duro e implacável universo narrativo deste antigo comando e professor universitário, lembro-me de um dito apropriado do conhecido jornalista americano, Gene Fowler, que observava, com ferino realismo: “Escrever é fácil, tudo o que há a fazer é olhar para uma folha de papel em branco e ficar à espera que as gotas de sangue comecem a cair da nossa testa.” Isto é o que acontece aos escritores que não se importam de começar, como ficcionistas, aos setenta anos: como a Nau Catrineta, têm muito que contar e não têm medo de o fazer. Há os outros que, mal saídos dos cueiros, querem inovar decisivamente o romance, mas não são como a Nau Catrineta e nada têm que contar. Estes últimos são muito apreciados – e deles recebem aplausos e prémios – pelos snobs provincianos, que fazem questão de apregoar que não gostam de uma ficção com história dentro. Se tivessem um pouco mais de cultura e conhecessem o panorama contemporâneo da grande ficção anglo-saxónica e mesmo latino-americana, não diriam tais dislates. Se não gostam que o romance conte uma história, que farão eles do D. QUIXOTE, das GRANDES ESPERANÇAS, do Dickens, d’A CARTUXA De PARMA de Stendhal, d’A PRIMA BETTE de Balzac, da ANA KARENINA, de Tolstoi ou de OS MAIAS de Eça? (Para citar apenas um punhado deles) De tolices destas, está o inferno cheio, mas há por aí muitos que as vendem e com apreciável proveito: porque, dizem, o que interessa são os personagens, ou as ideias ou as emoções e não a história. Ortega y Gasset, no seu genial ensaio sobre o romance, já esclareceu, de uma vez por todas, que a história, por débil que seja – e nas grandes ficções não o é – é como o fio no colar de pérolas: o importante, de facto, são as pérolas e não o fio, mas, sem o fio, não há colar. 

Nestes dois colares de pérolas, que são os dois romances de Rui Teixeira, acontece que o fio é tão importante como as pérolas. Sendo o primeiro – O ELOGIO DA DUREZA – o mundo da guerra, dado com uma invulgar verdade, para não dizer “brutalidade”, o segundo – O BRAÇO LONGO DO PASSADO - é o do não menos agónico mundo do pós guerra, com visitas implacavelmente autênticas do universo da cooperação, em Angola, e da universidade, em Portugal. Rui Teixeira não tem, como dizem os franceses, frio nos olhos, e dá-nos, com traços vigorosos, mas não panfletários nem contaminados de ideologia, o panorama grotesco-trágico da cooperação, numa democracia dita popular, com a sua dose bem aconchegada de oportunismo, velhacaria e corrupção; e o panorama pequenino, mesquinho e pouquíssimo sagrado do mundo universitário. Tudo bem fundamentado e documentado em experiência bem vivida e sofrida. Ainda por cima dois romances empolgantes. Dizia uma escritora pouco conhecida que “o problema com os livros é que eles acabam”. Não com todos os livros, mas certamente com este que hoje aqui se apresenta e com o publicado no ano passado. Ambos, enterrados eaté doer, na experiência vivida do autor, que nos deu dois grandes romances, em parte, e só em parte, autobiográficos, e com os disfarces da praxe. Ao fim e ao cabo, como dizia a escritora canadiana Margaret Atwood, “ no fim de contas, todos nós nos tornamos histórias” 

Eugénio Lisboa.

3 comentários:

Anónimo disse...

Li e quando acabei voltei ao princípio. Reli. Um romance forte numa escrita vibrátil que um gnóstico não desdenharia no desenho que desvela uma geometria oculta, ou de como tudo vive na dependência objectiva das condições iniciais. Uma tradução para o inglês e uma mão avisada que o faça chegar a Ridley Scott!...

Anónimo disse...

Eugénio Lisboa continua igual a si próprio: um português cristalino, clareza que não abdica da densidade de pensamento e uma gestão sedutora do assunto. E o anónimo das 15.02 comenta com excelência.

Anónimo disse...

A propósito dos escritores “mal saídos dos cueiros” não esquecidos na crítica do livro de Rui de Azevedo Teixeira, por Eugénio Lisboa.

Em, UMA PORTENTOSA MIXÓRDIA e também em IDEIAS QUE NEM SEQUER ESTÃO ERRADAS, Eugénio Lisboa procura o vigor da sua “autoridade” crítica no grande físico PAULI – foi o que fez com o livro UM DIA LUSÍADA de António Carlos Cortez.

Escreve, Eugénio Lisboa, “O grande físico Wolfgang Pauli cunhou uma expressão mortífera, que aplicava aos trabalhos que os aprendizes de cientista lhe apresentavam e que não tinham ponta por onde se lhes pegasse: ideias estapafúrdias, que não eram coisa nenhuma. Despachava-os com este veredicto: “Not even wrong” (“Nem sequer está errado”), isto é, o trabalho nem sequer tinha a dignidade mínima que permitisse dizer-se dele que estava errado.”

A pergunta que se impõe é, como é que critico Eugénio Lisboa pode concluir que o “Not even wrong” de Pauli significava que o trabalho nem sequer tinha dignidade?

A falta de dignidade é o sentimento que as obras de alguns escritores portugueses causam ao Eugénio Lisboa, não é necessariamente o sentimento, injustificado e deploravél que apresenta de Pauli.

Talvez, para Pauli, o trabalho fosse, apenas, confuso!

Alexander Dorozynsky, em “O homem que não quiseram deixar morrer” - dá um testemunho de Pauli, que nada tem ver com aquele sentimento generalizado, que Eugénio Lisboa atribui ao Pauli.

“Em Zurique continuou a inundar Pauli com discussões que deixavam os dois sem fôlego. «Agora, Dr. Pauli, tem de admitir que nem tudo o que eu disse é absurdo», protestou uma vez Dau (Landau) ao ver o cientista de Viena abanar desesperadamente a cabeça. E Pauli respondeu: «O que V. disse é de tal modo confuso que eu nem sequer poderia dizer se é ou não absurdo!»”[A. Dorozynsky]

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...