domingo, 23 de janeiro de 2022

Divagações sobre o Tempo I

Vamos falar do tempo. 

Mas de que tempo?

Não da definição filosófica, procurada desde sempre, não da origem cosmológica do tempo, que, de acordo com Platão, nasceu quando os deuses estruturaram o Caos primitivo e deram uma ordem a todas as coisas.

Vamos falar do tempo comum, do tempo de todos os dias, da duração do tempo, do nosso tempo...

Pois não é do tempo que as pessoas falam, quando se encontram? “Está frio”, “Está calor”, “Já estamos no fim do mês”, “O tempo foge”...

O tempo... Essa “entidade” que nos consome, que passa a correr, que nós, por vezes, não sabemos aproveitar, que nos parece sempre curto...

O tempo da infância, o tempo da adolescência, o tempo da juventude, o tempo da vida activa, o tempo da reforma, o tempo do trabalho, o tempo do descanso!

E de infantes passamos a seniores, termo que agora entrou em moda, ainda que, quase sempre, mal pronunciado.

Dividindo o tempo da vida humana, inventou-se uma ordem, as três idades da vida, ainda que só ouçamos nomear assim a 3.ª.

Os romanos, os nossos mestres em quase tudo, tinham uma diferente divisão. Para eles o SENIOR era o mais velho, designação dada ao homem entre os 46 e os 60 anos. Porque, dos 60 aos 80 era o SENEX, o idoso, o ancião e, a partir dos 80 era já um homem de “provecta idade” aetate provectus (quer dizer avançado na idade).

Para a mulher a designação era diferente, estava relacionada com a sua missão na família.

O tempo!

Mas "Tempo perdido não se recupera" — diz o provérbio.

Que tempo este! Que tempos! Ouvimos dizer muitas vezes, lamentando as mudanças constantes, clamando que se perderam valores, que tudo está diferente, que tudo muda para pior.

"Novos tempos, novos costumes" — afirma o ditado, e já Camões se lamentava, também:


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança:

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.

 

Continuamente vemos novidades,

Diferentes em tudo da esperança:

Do mal ficam as mágoas na lembrança,

E do bem (se algum houve) as saudades.

 

O tempo cobre o chão de verde manto,

Que já coberto foi de neve fria,

E em mim converte em choro o doce canto.

 

E afora este mudar-se cada dia,

Outra mudança faz de mor espanto,

Que não se muda já como soía.

É a natureza que se renova, o Inverno dá lugar à Primavera, onde antes havia neve, surgem as flores e a verdura. Mas, para este poeta desanimado, a vida muda em sentido inverso, a mudança do tempo não traz aquilo que se espera, a alegria converte-se em tristeza, as mudanças já não se fazem do mesmo modo. É a passagem do tempo, é a passagem da vida.

Fernando Pessoa  — Ricardo Reis, imitando o poeta latino Horácio, fala, numa atitude epicurista, de um tempo presente que deve ser vivido sem pensar em mais nada. Aquele que põe os olhos no futuro nada vê, pois o futuro não existe ainda.  E se, neste fluir do tempo, caminhamos inexoravelmente para o fim, então aproveitemos o presente, o momento, a hora fugitiva:

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

 

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos.  No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

                                                                        Ricardo Reis

Colhe o dia — carpe diem...

É numa Ode de Horácio que esse conceito aparece:

                                                  Dum loquimur, fugerit invida

aetas:  carpe diem, quam minimum credula postero.

 

                        Enquanto falamos, já invejoso terá fugido o tempo;

colhe o dia, confiando o menos possível no amanhã.

Horácio, Odes, I, 11

Carpe diem!

Mas, será que sabemos fruir o tempo, o tempo que temos, o tempo que passamos uns com os outros, o tempo em que descansamos, o tempo em que passeamos?...

O mesmo Fernando Pessoa dizia, através de Alberto Caeiro, o poeta da natureza:

O tempo passa,

Não nos diz nada.

Envelhecemos. 

Saibamos, quase maliciosos,

Sentir-nos ir,

Tendo as crianças

Por nossas mestras

E os olhos cheios

De natureza...

 

Aproveitar o presente, o momento que passa, com a inocência da criança, fruindo  as coisas simples, sabendo que envelhecemos, mas tendo a sabedoria de nos sentirmos sempre crianças, apreciando a natureza, deixando o tempo passar...

É o mesmo Caeiro que rejeita a ideia de tempo pois quer viver VENDO, ele para quem o sentido da Visão era o mais importante; ver apenas as coisas e vivê-las, assim, sem tempo...

Vive, dizes, no presente;

Vive só no presente.

 

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;

Quero as coisas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?

É uma coisa relativa ao passado e ao futuro.

É uma coisa que existe em virtude de outras coisas existirem.

Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.

 

Não quero incluir o tempo no meu esquema.

Não quero pensar nas coisas como presentes; quero pensar nelas como coisas.

Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

 

Eu nem por reais as devia tratar.

Eu não as devia tratar por nada.

 

Eu devia vê-las, apenas vê-las;

Vê-las até não poder pensar nelas,

Vê-las sem tempo, nem espaço,

Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.

É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

 

Como é difícil, por vezes, viver a poesia do tempo!

Saibamos, nestes tempos difíceis que atravessamos, viver o tempo presente, usufruir de cada dia sem azedume, procurando sempre o lado mais positivo da vida.

Isaltina Martins

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

É muito bom ler textos como o que a Isaltina Martins nos proporcionou.
O tempo é um tema fascinante, que nunca cansa, nem passados milhões de anos, qualquer que seja o instrumento de medida que se adopte, admitindo, no entanto, que o tempo do relógio é o menos relevante na perspectiva do poeta e da abelha e da mosca e do covid-19 e dos dinossauros... Mas o tempo dos relógios e da velocidade, da clepsidra e da tartaruga são outras formas de movimento... Estamos imbuídos de sentidos do tempo e do espaço, como as águias e as pombas, os golfinhos e as sardinhas, mas as estrelas e as galáxias, de que fazemos parte, não têm tempo. O tempo, nesta acepção física de realidade, não existe. O tempo é biológico. O que existe é o movimento. Nada do que existe, incluindo o tempo (parece contraditório com o que disse), não existiria sem movimento. E eu pergunto-me se é sequer concebível, imaginável, que deixe alguma vez de ser tudo movimento.

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