segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

A charlatanice da acupuntura legitimada em tribunal


Artigo de opinião do David Marçal e meu que saiu há uma semana no Público: 

Imagine alguém que vende torradeiras que não funcionam. E imagine ainda que essa pessoa vai frequentemente à televisão, onde os apresentadores se desfazem em sorrisos cúmplices. Que são postas a circular histórias de clientes satisfeitos. O vendedor dizia que a torradeira tinha um circuito eléctrico e que, portanto, havia um fundamento científico. Há muito que se sabia que essas torradeiras não funcionavam, uma vez que, dada a sua popularidade, se tinham feitos milhares de ensaios. Nestes, colocavam-se algumas fatias de pão nas tais torradeiras e um número igual de outras fatias iguais dentro de uma torradeira que funcionava. No final, comensais que não sabiam como tinham sido preparadas as fatias diziam se elas estavam torradas ou não. E  as  torradas nunca vinham das torradeiras que não funcionam.

Houve vozes dissonantes sobre as torradeiras que não funcionam. O vendedor, que tinha uma perna na política, teve então a brilhante ideia de convencer os seus aliados na política a aprovar legislação que regulamentava as torradeiras que não funcionam: apenas certas pessoas, a quem era passada uma certidão profissional é que as podiam vender. Estas tinham de ser licenciadas em torradeiras que não funcionam, cursos cujos conteúdos programáticos eram também definidos pelos políticos. Obviamente que assim seria mais difícil duvidar da eficácia do referido electrodoméstico.

Mas várias pessoas continuavam a insistir na falta de provas de que as torradeiras funcionavam. Uma deles em particular, na Internet, meio onde a cortesia não abunda, a dada altura presenteou o tal vendedor com epítetos como «charlatão» e «vigarista». O vendedor, escudado pela legislação aprovada, avançou para a justiça com queixa por difamação. Disse que sofreu danos, alegando mesmo ter perdido o apetite. E o tribunal, apesar de todas as provas de que aquelas torradeiras não funcionam, resolveu dar razão ao queixoso, condenando o tal individuo a pagar-lhe uma avultada indemnização.

A história, torradeiras à parte, é infelizmente verdadeira e aconteceu com o médico João Cerqueira, condenado a pagar uma indemnização de 15 mil euros ao praticante de acupunctura Pedro Choy.

A acupunctura é, de facto, uma torradeira avariada. Foram já feitos milhares de ensaios clínicos e centenas de revisões sistemáticas da literatura médica para avaliar tratamentos de acupunctura e as conclusões são uma de duas possibilidades: ou a acupunctura não mostrou eficácia terapêutica no tratamento de determinada doença; ou, nalguns casos, há indicações muito ligeiras da eficácia da acupunctura no tratamento de certa doença, mas os métodos são inadequados e as amostras demasiado pequenas. Isto inclui o tratamento da dor e o seu uso como método de anestesia (que não é possível, ao contrário do que Choy alegou no programa  Prós e Contras de 1 de Abril de 2019). Aliás, se a acupunctura conseguisse apresentar provas das suas eficácia e segurança não necessitaria do favor da legislação especial: os seus tratamentos seriam aprovados como quaisquer outros. Mas o facto é que para nenhum tratamento de nenhuma terapia alternativa é exigida qualquer prova de eficácia para estar no mercado. E tudo isto tem consequências. Sabemos, por exemplo, que os doentes com cancros curáveis que também recorrem as terapias alternativas têm uma taxa de letalidade ao fim de sete anos muito superior aqueles que apenas recorrem a tratamentos convencionais.

O que é que podemos chamar a um «charlatão» quando não lhe podemos chamar «charlatão»? «Praticante de charlatanice»? «Adepto da charlatanice»? Segundo o Dicionário da Academia «charlatão» é um «indivíduo que vende drogas e mezinhas, atribuindo-lhes qualidades curativas que elas não possuem (...) Pessoa que proclama méritos ou qualidades que realmente não possui». «Charlatanice» é, segundo o mesmo dicionário, a «arte de explorar a credulidade das pessoas através de falsas doutrinas, teorias, promessas vãs...». O que é que se pode e deve chamar a um indivíduo que defende a teoria da terra plana, a homeopatia ou a acupunctura para «curar» a homossexualidade (sim, foi também isso que Choi fez)?

Porque, apesar de tudo, queremos acreditar na justiça, esperamos que este caso seja revisto na instância seguinte. Seria muito mau para a imagem da nossa justiça se a sentença proferida transitasse em julgado.

PS) Fomos testemunhas de defesa do médico João Cerqueira na única vez que, até hoje, cada um de nós foi chamado a um tribunal.

 

3 comentários:

Anónimo disse...

Que vergonha de artigo Mister Fiolhais, que pobreza de metáfora esta das torradeiras, um verdadeiro caos literário.

Manuelgutelebeneiche disse...

Caros David Marçal e Carlos Fiolhais, não invejo o vosso papel na defesa da Ciência, sobretudo com a crescente e avassaladora onda de "anónimos" deste mundo. Sei que, no entanto, não tem qualquer peso na vossa luta. Cumprimento-vos, contudo, com o meu testemunho, sabendo de antemão que a maior parte da gente "educada" e culta, compartilha convosco os mesmos valores. Bem hajam. Luiz Carvalho

Fernando Dias disse...

O encontro entre culturas e seus saberes pode criar um espaço de acréscimo mútuo, em que os ganhos não comprometam as identidades. A hibridização entre o saber médico chinês e a medicina ocidental, é um desses exemplos, mais significativo na China com o partido comunista desde Mao, mas também cada vez mais na Europa com a importação da acupunctura. É a partir de 1949 que a medicina clássica chinesa sofre uma grande desvalorização com a adoção em grande escala da medicina baseada na ciência do paradigma ocidental, imbatível quer no diagnóstico, quer no tratamento. Mas o crescimento exponencial da medicina ocidental na China deveu-se à imposição por parte do poder político. E a sua tácita imposição como um dado adquirido de forma artificial gerou um grande mal-estar nos médicos chineses formados na tradição de uma civilização milenar contínua, sem interrupções durante cinco milénios, fundamentada num arcaboiço epistemológico alheio à ciência que floresceu no Ocidente com o dealbar da modernidade. Incentivada e financiada por países ocidentais, a biomedicina estabeleceu-se na China conjugando-se com a medicina chinesa de forma híbrida.
Ora, como de facto a acupunctura só funciona em contexto, numa sociedade impregnada numa civilização cujo paradigma epistemológico não tem nada a ver com o paradigma epistemológico da sociedade ocidental, obviamente quando praticada incompetentemente e descontextualizada, só pode dar asneira. Mas, por outro lado, os estudos científicos realizados de forma inapropriada com a aplicação de agulhas em pontos específicos no corpo sem a compreensão dos mecanismos de ação da acupunctura, não poderiam ser fiáveis nas suas conclusões. Esse quadro tem levado ao questionamento sobre se os métodos adotados para comprovar a eficácia da acupuntura são os mais indicados, especialmente por partir de um paradigma com fundamentação epistemológica deslocada. Essa forma de proceder subverte o modo clássico singularizado de um método que não se pode acomodar a um escrutínio baseado numa epistemologia diferente. Contudo, vale assinalar que há trabalhos científicos com resultados diferentes, uma vez que o desenho dos ensaios clínicos levou em linha de conta as especificidades da acupunctura que caem fora do paradigma analítico da ciência ocidental.

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