O livro andava havia tempos pelas livrarias sem eu o topar.
Foi o Alex, um amigo de Biologia, que, na versão impressa
das anedotas que regularmente me envia do seu laboratório1,
insistiu numa nota garatujada: You must read it!
As recomendações do Alex nunca falharam e, por isso, fui
arranjar um exemplar. Li‑o
em ritmo acelerado. No fim, ainda
embalado, registei brevissimamente a minha impressão global
nos termos que agora traduzo: «Que tipo! Do género ‘Sim, eu sei que sou grande, mas isso não é nada de especial. Sou
um ser humano e não vejo razão nenhuma para me armar
em Deus ou sequer no seu sacerdote! Humano, demasiado
Humano (Nietzsche)’.»
Ao relê‑lo
agora, antes de escrever esta nota introdutória,
sinto o mesmo a propósito do livro e da personalidade de
Richard Feynman, que ressalta desta série de histórias por ele
contadas a um amigo, que as passou ao papel. Admito, porém,
que o meu entusiasmo possa estar aqui reforçado pelo contacto
com essa jóia da literatura científica que é The Character of
Physical Law (Traduzido em português: O Que É Uma Lei Física, Gradiva, 1989) , em que Feynman se revela um grande escritor,
senhor de um estilo elegante, que consegue transmitir com
simplicidade e transparência, de forma cristalina, conceitos
científicos profundos. Depois tenho essa imagem de Richard
Feynman ele próprio filmado ao vivo (em vídeo) a dar as
lições que constituem o livro: uma inteligência fulgurante a
dimanar‑lhe
do corpo inteiro, superiormente descontraído e
sem pose e com um sentido de humor sorridente a iluminar‑lhe
as palavras. Tudo menos o cliché do prémio Nobel. Mas
creio ser mesmo essa imagem que nos dá este livro.
Aliás, ele dispensa quaisquer introduções, sobretudo esta.
Mas não resisto a chamar a atenção para alguns pormenores
culturais que vejo como virtudes e em Portugal serão por não
poucos considerados defeitos. Na verdade, Richard Feynman
surge‑nos
como a quinta‑essência
prototípica e paradigmática
do cientista contemporâneo. Um profissional (superprofissional)
que se assume apenas como cientista e somente na área
da sua especialidade. Não se evade às suas responsabilidades
de cidadão. Leva a sério, mais que ninguém, a missão que lhe é entregue de, por exemplo, avaliar a qualidade de livros
didácticos e demite‑se
quando vê que afinal esse ofício não
era para levar assim tão a sério. Mas Feynman não transfere
para outras áreas a convicção de competência. No resto, é
um cidadão como os outros, com plena consciência de não se
dever meter em coisas que não sabe. É capaz de desenvolver
hobbies, e tornar‑se
até perito neles, como acontece com a
sua diabólica habilidade de decifrar códigos e a sua perícia
em tocar tambor na bateria de uma escola de samba. Mas
não tem qualquer rebuço em dizer que não sabe quando não
sabe ou admitir candidamente o que muitos considerariam
uma fraqueza, como confessar que foi hipnotizado apesar
de ter procurado resistir. Recordo‑me
de, nos anos 1960, ter
lido algures um texto de Jorge de Sena em que, numa nota,
esboçava um pouco caricatamente o professor universitário
norte‑americano
como alguém que trabalhava intensamente
das nove da manhã às cinco da tarde, mas depois deixava de
ser universitário e ia para casa cortar a relva do jardim. Esses
traços, a que ainda hoje ouço referências em Portugal, eram
exagerados. Reflectiam o olhar do intelectual europeu (e em que
elevado grau representava Jorge de Sena esse modo de ser!),
sobretudo das letras e humanidades, que, exceptuando esse
grupo de umas quantas personalidades invulgares, como era
Jorge de Sena, chama «cultura» a uma série de conhecimentos
diletantes e superficiais sobre tudo ou quase tudo e aponta
displicentemente o especialista norte‑americano
como uma deformação
aberrante. Mas trata‑se
apenas de estilos, maneiras
de ser, preferências, porque o universitário norte‑americano,
por hábito cultural, coíbe‑se
de falar fora da sua área. Deixa
isso a outros, o que não significa que não leia sobre temas
alheios aos seus interesses profissionais. É bom que, do outro lado do Atlântico, determinado tipo de preconceituosos se
apercebam disto. O especialista norte‑americano
desconfia do
erudito verboso, pronto a discorrer sobre o universo inteiro
com convencimento e presunção, como se fosse possuidor de
acesso privilegiado ao mistério das coisas. Naturalmente que os
exageros de caracterização habitam os dois lados, mas o ponto
a vincar aqui é essas diferenças constituírem paradigmas tradicionalmente
estabelecidos e cultivados com apreço. Revelam
concepções diferentes da sociedade, do indivíduo, e acima de
tudo do papel do cientista, do universitário, ou do scholar, já
que a palavra «intelectual» para englobar todo esse grupo não
é geralmente usada nos Estados Unidos. Numa sociedade em
que há especialistas em tudo, os amadores assumem‑se
como
amadores nas áreas em que o são. Respeitam o seu interlocutor
e não o maçam com banalidades sobre coisas que toda
a gente sabe. Até porque ele(a) não sabe se esse(a) interlocutor(
a) não será especialista no próprio assunto sobre o qual
ele(a) se atreve a dizer umas balelas. Mas se esses especialistas
em cultura geral, sabedores de tudo e leitores de tudo (do
género de sabença de ouvido ou de leitura em diagonal dos
semanários ao fim‑de‑semana),
ainda por cima se dão ares de
importância, então é que Feynman vai às nuvens: «Fico doido
com palermas pomposos!»
A tolerância, o respeito pela área em que os outros são
especialistas, o gosto pela frontalidade no diálogo, como troca
livre de pontos de vista, o estilo nonsense, uma grande dose de
reconhecimento das limitações do conhecimento humano, são
características que ressaltam destas páginas, personificadas num
modelo ou modo de estar que é emulado pelo profissional das
ciências e da universidade liberal da melhor tradição norte‑americana.
Feynman não seguiu as pisadas de tantos Nobel sobre quem o prémio tem efeitos sacramentais: como que eleva
o premiado a um estatuto quase religioso, meio profético meio
metafísico, e impele‑o
a fazer declarações grandiosas sobre o
mundo, a história, o universo. To go off the deep end, como
é conhecida a atitude.
Einstein comparou‑se
uma vez com uma criança que entrara
numa biblioteca enorme com livros escritos em variadíssimas
línguas, de onde apenas tirara um volume e conseguira traduzir
algumas páginas. Newton falou de si em termos semelhantes:
sentia‑se
como um garoto a brincar na orla de um vasto oceano
de verdade, entretendo‑se
a apanhar um seixo ou uma concha.
Apetece aqui citar o parágrafo final do já referido livro de
Richard Feynman, The Charater of Physical Law. Após umas
considerações em epílogo sobre o período fascinante que a
ciência vive hoje e os padrões em que se processam as descobertas
científicas, fecha a última lição nestes termos: «Mas o
que há na Natureza que permite prever o comportamento do
todo a partir de uma só parte? Não é uma questão científica.
Como não sei a resposta, vou responder de uma forma não
científica. Penso que é porque a natureza tem uma grande
simplicidade e, portanto, uma grande beleza.»
Quando, há cerca de um ano, uma comissão nacional investigava
as razões do malogro do vaivém espacial Challenger, à
frente dela estava nem mais nem menos que Richard Feynman.
Lembro‑me
de o ver na televisão, com um à‑vontade
impressionante,
a explicar aos políticos no Senado, em Washington,
e através da televisão ao país inteiro, o que apurara o grupo
de cientistas sobre as causas da fractura do anel de borracha à volta da Challenger. Como sempre, fê‑lo com a simplicidade arrasadora de quem sabe profundamente das coisas e consegue falar delas agarrando o essencial, graças a um poder de comunicação invulgar, a que quase nunca é alheio um finíssimo humor. Feynman pediu um copo com água e gelo e um elástico de segurar maços ou rolos de papéis. Esticou o elástico diante dos circunstantes. Tudo normal. Depois mergulhou‑o no copo e deixou‑o ali algum tempo. A seguir retirou‑o e dobrou‑o. O elástico partiu‑se. Feynman concluiu para os presentes mais ou menos nestes termos e com o ar que Cristóvão Colombo deveria ter tido na história provavelmente apócrifa de pôr o ovo em pé: «Foi o que aconteceu com o anel do Challenger. Estava demasiado frio no cabo Canaveral aquando do lançamento da nave espacial. Com a trepidação, o anel de borracha da base, sem elasticidade, partiu‑se.» Tomas, meu ex‑professor de Filosofia, e agora reformado, companheiro de cavaqueio frequente, comentou assim essa história, que ele seguira igualmente pela televisão: «A câmara não mostrou os rostos estupefactos daqueles sisudos senadores a ouvir atentamente o relatório de Feynman. Esperando, com certeza, uma lição complexíssima com terminologia científica impenetrável misturada de fórmulas, ao depararem‑se com uma explanação tão lucidamente simples, imagino uns quantos a exclamarem de si para si: ‘Deve estar a brincar, Sr. Feynman!’»
Onésimo Teotónio Almeida
Providence, Rhode Island
Junho de 1987
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