segunda-feira, 28 de junho de 2021

Um “racional específico”?! Apontamento sobre a rápida transição das “Aprendizagens Essenciais de Matemática” para as “Novas Aprendizagens Essenciais de Matemática”

Comentário a uma mudança curricular tanto esperada como inesperada.

Imagem recolhida aqui.


“Cada documento (Aprendizagens Essenciais de…) 
traduz “o racional específico de cada disciplina (…)”. 
Despacho n.º 8476-A/2018, de 31 de Agosto. 

"O funcionamento racional e o 
funcionamento razoável estão ligados."
Fernando Savater, 2012. 


Pensemos, primeiro, em termos políticos, tendo em conta a orientação partidária mas indo além dela, e recuemos até 2013 para ponderarmos as mudanças curriculares apenas e só numa disciplina do Ensino Básico: a Matemática.
Em 17 de Junho de 2013 foi homologado o Programa e Metas Curriculares.  Estes documentos começaram a ser implementados, no início de cada ciclo de escolaridade, no ano lectivo de 2013/2014. 

Em 31 de Agosto de 2018, à luz da mais nova reorganização curricular, foram homologados novos documentos curriculares designados, agora, por Aprendizagens Essenciais (cf. Despacho n.º 8476-A/2018, de 31 de Agosto). 
Estes documentos para todas as disciplinas, apresentados individualmente, um por ano de escolaridade, começaram a ser implementados no início de cada ciclo de escolaridade, no ano lectivo de 2018/2019.

Em Dezembro de 2018, passados três meses após o início da implementação das Aprendizagens Essenciais, foi nomeado um Grupo de Trabalho de Matemática (cf. Despacho n.º 12 530/2018 de 12 de Dezembro alterado pelo Despacho n.º 7269/2019, de 16 de Agosto, cuja missão era, sobretudo, “a elaboração de um conjunto de recomendações sobre a disciplina de Matemática”).

Em 27 de Março de 2020, esse Grupo apresentou a versão final de um Relatório com o título Recomendações para a Melhoria das Aprendizagens dos Alunos em Matemática. Na página 293 consta: 
"Recomendação 1. Um novo currículo de Matemática global e alinhado.
É urgente a elaboração de um novo currículo de Matemática para todos os ciclos de escolaridade (do 1.º Ciclo do Ensino Básico até ao final do Ensino Secundário). Este currículo deverá substituir todos os Programas de Matemática em vigor, em particular o Programa e as Metas Curriculares, bem como as Orientações de Gestão Curricular e as Aprendizagens Essenciais que deles decorreram
.” 
Entre 2 e 25 de Junho de 2021 esteve em discussão pública a proposta do que será o “novo currículo” para o Ensino Básico, com revogação de todos os documentos curriculares anteriores. A sua designação é “Novas Aprendizagens Essenciais de Matemática”.
Do acima dito, noto que:
1) O Programa e as Metas Curriculares, de 2013, foram elaborados num governo cuja orientação partidária era distinta da orientação partidária do actual governo. Poder-se-ia alegar que a mudança curricular decorre de uma mudança política. Ainda que tal alegação, só por si, não pudesse ter compreensão sob o ponto de vista das finalidades pelas quais a educação escolar se deve pautar, seria claro que se tratava de uma decisão tomada por quem tem poder para tomar decisões a este nível; 
2) Contudo, sendo o governo de continuidade e mantendo-se a política partidária, passados dois anos e meio da implementação das “Aprendizagens Essenciais de Matemática” são apresentadas as “Novas Aprendizagens Essenciais de Matemática”. 

Pensemos, agora, em termos do ensino, ou seja do trabalho do professor, no caso de Matemática.

Deixo de lado a análise das opções relativas aos conteúdos deste último conjunto de documentos (que não tenho qualquer competência nem legitimidade para fazer pois não tenho conhecimento para tal) e à sua organização pedagógica (que, por ser longa, adio para texto posterior) e incido num aspecto que, em geral, passa despercebido quando se trata da mudança curricular: a destreza curricular que os professores precisam de alcançar para ensinar. 

Lee Shulman, investigador de referência internacional nas áreas do ensino e da formação de professores explicou, ainda nos anos de 1980, que o trabalho docente, no que respeita à relação com os alunos, implica: 
1) A apropriação profunda do conhecimento disciplinar, que vai muito além daquele que será objecto de tratamento com os alunos; 
2) A consciencialização dos objectivos (no sentido pedagógico que têm) orientadores do ensino desses conhecimentos; 
3) A escolha de modos de abordar o conhecimento para que os alunos os aprendam, sempre orientados pelos objectivos estabelecidos. 
Como se percebe, esta escolha implica que o professor domine: conhecimento escolar, com destaque para o disciplinar; conhecimento do currículo oficial; conhecimento do contexto em que ensina; conhecimento pedagógico-didáctico. E, evidentemente, a articulação de todas estas áreas de conhecimento, por forma a tomar decisões profissionais capazes de levar os alunos a aprender o mais e melhor possível e, assim, os beneficiem (ver, por exemplo, aqui). 

Trata-se, pois, de uma tarefa altamente complexa que implica, aquando do ingresso num novo cenário de ensino, enorme esforço cognitivo por parte do professor, mesmo quando se trata de alguém com larga experiência. 

Esse esforço diminuiu progressivamente, à medida que recolhe, interroga, interpreta e conjuga a multiplicidade de novas (e anteriores) informações. Neste exercício vai criando esquemas mentais e consolidando rotinas e heurísticas, ou seja, "modos de fazer" que funcionam em termos de ensino e de aprendizagem. Isto significa que são "modos de fazer" que lhe permitem, a partir de determinado momento, agilizar a interacção com os alunos, tornando-a o mais profícua possível nas condições que em ocorre. 

Sendo o que acabei de dizer reconhecido como verdadeiro no campo da investigação pedagógica, retomando a mudança curricular alucinante de que dei conta, deixo aqui uma pergunta dirigida, antes de mais, aos responsáveis por essa mudança, mas também aos professores, que são directamente visados na mudança:
Como podem os professores, que querem chegar a uma interacção como a que mencionei, porque sentem o dever ético de ensinar para que os alunos possam aprender, preparar-se para tal? 
Como podem criar esquemas mentais e modos de fazer que concretizem esse dever em períodos de tempo tão curtos (dificuldade que se junta a outras como a linguagem hermética e equívoca em que muitos documentos se apresentam)? 

Enfim, como podem encarar-se a si mesmos e aos seus alunos sem sentirem que não estão a cumprir, porque não podem, esse dever?
Sendo as Aprendizagens Essenciais apresentadas como um "racional" e remetendo "racional" para a faculdade a que chamamos razão, resta-me apelar ao seu uso e ao uso de outra que não pode estar dissociada dela: a razoabilidade.

Para se perceber o que quero dizer, convido o leitor a consultar um texto do filósofo acima citado (aqui), produto de um dos debates que tiveram lugar em Espanha por ocasião de uma mudança curricular.

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...