sexta-feira, 25 de junho de 2021

ROBERT MACFARLANE E O MUNDO SUBTERRÂNEO


Meu texto mais recente no jornal I:

Nos meus tempos mais juvenis fui espeleólogo. Aos fins-de-semana –e também durante os dias de semana nas férias – gostava de descer ao interior da Terra, para descobrir paisagens inusitadas, com labirintos de galerias e câmaras, com tectos e chãos pejados de estalactites e estalagmites, e com morcegos e insectos adaptados à vida na obscuridade. Não conheço melhor sensação do que a de voltar à superfície depois de horas a fio com a visão limitada às lanternas eléctricas ou aos candeeiros de acetileno e reencontrar a luz solar, de dia, ou a luz das outras estrelas, de noite. Ninguém conhece bem a luz se não tiver experimentado as trevas. A espeleologia é um misto de desporto de aventura – exploram-se sítios onde nunca ninguém foi – e de actividade científica – há que cartografar, investigar e descrever as novas paisagens visitadas. Ao contrário do montanhismo, as vertigens não são um problema: desce-se num escuro de breu. Mas a modalidade não é recomendável para quem sofra de claustrofobia: dentro da Terra estamos no “útero da Terra”, como que num regresso à nossa pré-história pessoal.

Vivi aventuras cuja lembrança me toca. Desde remover pedras que escondiam espaços perfeitamente ignotos na serra de Sicó até ser resgatado depois de muitas horas de aflição numa passagem esconsa das grutas de Mira de Aire, mais abaixo que o percurso turístico. Desde explorar a gruta do nascente do Almonda, em Torres Novas, até navegar com um colega físico num rio subterrâneo esloveno, onde de vez em quando se abriam vistas para o céu, na região chamada “karst” que deu origem à palavra portuguesa “carso”, que designa paisagens calcárias como as das serras de Sicó ou de Santo António. Nessas regiões abre-se, pela força química das águas, todo um mundo maravilhoso debaixo dos nossos pés.

Foram lembranças desses tempos que me vieram à memória quando agora li o livro Mundo Subterrâneo. Uma Viagem pelas Profundezas do Tempo, com a chancela da Elsinore e da autoria do escritor e montanhista inglês Robert Macfarlane, nascido em 1976. John Banville, escritor irlandês que muito aprecio, não tem papas na língua a falar do seu compatriota: “Mais ninguém escreve sobre o mundo natural com esta exactidão lírica”. Macfarlane consegue combinar a precisão científica, resultado do seu conhecimento do terreno, com uma atmosfera literária. O seu primeiro livro, sobre as montanhas, Mountains of the Mind. (Granta e Pantheion, 2003) foi um enorme êxito, dando-lhe vários prémios. Seguiram-se, entre outros, The Wild Places (Granta e Penguin, 2007), The Old Ways (Penguin, 2012) e, para os mais jovens, The Lost Words (Hamish Hamilton, 2017). Não há edições portuguesas dessas obras.

As capas têm a estética de um artista amigo do autor, Stanley Donwood, capista dos icónicos discos da banda rock Radiohead. A capa do presente livro mostra um brilho ofuscante que irradia de um orifício circular à volta do qual crescem árvores. Podemos pensar num poço de uma caverna visto de baixo para cima. Mas, de facto, a gravura original “Nether” (Inferior), pretende representar um vale com uma explosão nuclear ao fundo. Numa situação de catástrofe nuclear, é debaixo da Terra que se estará melhor.

Adorei ler este livro, feito a partir de viagens aos quatro cantos do mundo subterrâneo, entremeado de nomes de cientistas - o autor cita Paul Crutzen, o Nobel da Química falecido em Janeiro passado, que cunhou o termo “Antropoceno”; Stephen Jay Gould, o prolixo naturalista; e Lynn Margulis, a bioquímica que casou com Carl Sagan) - e de nomes de grandes escritores – entre vários outros, Walter Benjamin (As Passagens de Paris), Italo Calvino (As Cidades Invisíveis), Lewis Carrol (Alice no País das Maravilhas), Don DeLillo (Submundo), Edgar Allan Poe (A Queda da Casa de Usher), Rainer Maria Rilke (Sonetos a Orfeu), W. G. Sebald (Anéis de Saturno) e Júlio Verne (Viagem ao Centro da Terra). E há inevitáveis clássicos como Platão (República, com o mito da caverna, séc. IV a.C.) e Sigmund Freud (A Interpretação dos Sonhos, 1900). Faltam, porém, outros nomes: por exemplo, Dante Alighieri (A Divina Comédia, séc. XIV, com a descrição do Inferno) e Gaston Bachelard (A Terra e os Sonhos do Repouso, 1946).

Contribuiu sobremaneira para a minha boa leitura a tradução de Eugénia Antunes, tradutora, entre outros autores, de Virgínia Woolf. Não será sua, mas do editor, a responsabilidade pela omissão de uma fotografia do autor na Gronelândia referida nos agradecimentos. Mas talvez já seja a de não indicar as edições portuguesas de muitas das obras referidas: será esquisito para um português ler Verne em inglês e é sempre bom saber o que existe na nossa língua.

O livro está dividido em três “câmaras”. A primeira trata o “ver” (passa-se na Grã-Bretanha, incluindo sítios arqueológicos no Somerset, uma profunda mina de sal no Yorkshire onde físicos procuram matéria escura, e uma floresta nos arredores de Londres com uma “wood wide web” no subsolo). A segunda trata o “esconder” (passa-se na Europa, incluindo os subterrâneos de Paris e carsos na Itália e na Eslovénia). E a terceira trata o “assombro” (passa-se no gélido Norte, incluindo arte pré-histórica na Noruega, glaciares da Gronelândia e um depósito de resíduos radioactivos na Finlândia).

O convite à “descida” vem do poeta modernista norte-americano William Carlos Williams: “A descida chama-nos/ tal como a subida nos chamava.” E esse convite é irresistível para conhecer as várias funções do mundo subterrâneo: serve, segundo Macfarlane, para “abrigar (memórias, substâncias preciosas, mensagens, vidas frágeis)”; para “dar (informação, riqueza, metáfora, minerais, visões)”; e para “descartar (resíduos, traumas, venenos, segredos)”.

Gosto de deixar excertos dos livros, para que os leitores decidam se vale a pena mergulhar na leitura. Escreve o autor de Mundo Subterrâneo, no seu sedutor estilo poético: “Se olharmos para baixo, os nossos olhos não passam do húmus, do alcatrão ou da ponta dos pés. Raras vezes me senti mais afastado do reino humano como quando me vi a meros dez metros abaixo dele, nas mandíbulas cintilantes de um plano calcário de estratificação que se formou no leito de um mar antigo.”

Mais à frente: “A escuridão pode ser um meio de visão e a descida pode ser um movimento em direcção à revelação, mais do que à privação e à perda. O verbo inglês ‘to understand”’ (entender, compreender) possui em si um sentido antigo de passar por baixo (under) de qualquer coisa para a compreender totalmente. (…) Mundo Subterrâneo é uma crónica de viagens à escuridão, e de descidas encetadas em busca de conhecimento. O seu itinerário vai desde a matéria negra formada aquando do nascimento do Universo até ao futuro nuclear de um Antropoceno vindouro.” E, continuando à volta das palavras: “A palavra humanitas em latim tem origem, em primeiro lugar e acertadamente, em humando, que significa ‘inumar, inumação’, que por sua vez vem de humus, ‘terra’ ou ‘solo’. (…) Ao ser sepultado, o corpo humano torna-se um componente da terra, é devolvido ao pó de que nasceu: inumado, é restituído à humildade.”

Quando o autor sai da mina onde físicos tentam detectar matéria escura, sente o forte poder da luz: “Saio pela porta para o dia abrasador e branco, para o céu azul com algumas nuvens, para o sol reflectido em pára-brisas e correntes de metal, no alcatrão e nas folhas de erva; a matéria negra não está e está à minha volta, para todo o lado, e vir ao de cimo nesta luz ofuscante é como o penetrar na ignorância.” Não sabemos o que é a matéria escura, mas é curioso que a procuremos no escuro.

E há a morte, que é também uma entrada no escuro. Emocionou-me recordar a história de um dos mais famosos acidentes da espeleologia: a queda mortal do francês Marcel Loubens na Pierre de Saint Martin nos Pirenéus, uma das grutas mais fundas do mundo (atinge 1410 metros abaixo da superfície). Não foi na altura possível trazer o corpo para a superfície, mas, passados dois anos, organizou-se uma expedição para dar a Loubens uma sepultura normal, bem mais acima. Um jovem padre belga desceu ao abismo e, com uma caixa de primeiros socorros a fazer de altar, rezou uma missa por alma do espeleólogo. Foi a missa mais profunda celebrada até hoje. As páginas que ele escreveu sobre essa sua experiência ligam teologia e geologia: “Jamais voltarei a celebrar uma missa num lugar tão intimamente ligado ao Divino Sacramento (…) Nesta vasta caverna teremos parecido mais insectos do que seres humanos. Porém, as nossas almas incandesciam.” Macfarlane recorda também a reclusão de um grupo de rapazes tailandeses numa gruta inundada. O primeiro mergulhador que os encontrou prometeu: “Virá muita gente”. E veio, salvando-os. Mas morreu um dos salvadores.

Mundo Subterrâneo acaba com o regresso à superfície. O autor reencontra então o filho: “Corro para o alcançar, chamo por ele, e ele vira-se para mim na orla do bosque. Ajoelho-me no chão ao mesmo tempo que ele levanta a mão no ar, com os dedos bem afastados uns dos outros. Imito-lhe o gesto e encosto a mão à dele, palma contra palma, dedo contra dedo, e a sua pele, na minha, parece-me estranha como se fosse pedra.” Esta cena remete para a primeira figura do livro: uma impressão palmar na gruta de El Castillo, na Cantábria, Espanha, um dos maiores complexos de arte rupestre, remontando a 40 000 anos. Na palma da mão está a marca da humanidade, ontem do artista para a pedra e hoje do pai para o filho.

 

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