segunda-feira, 30 de março de 2020

Voltar ao local do crime do copianço

Julgo que nem por sombras passou pela cabeça de Alice Vieira pôr em causa os benefícios que os computadores podem trazer se utilizados de forma pedagógica e honesta, embora, por ter razões para duvidar  obedecer o seu uso escolar a estes dois princípios, tenha escrito, em contundente análise crítica ("Jornal de Notícias", 03/02/2008):
“Hoje em dia são os professores que ensinam os alunos a copiar. Hoje em dia a cópia está institucionalizada. Está a fazer-se  uma revolução silenciosa. Hoje em dia os alunos nem entendem que possa ser de outra maneira. Chamem-lhe o que quiserem ‘descarregar’, ‘fazer ‘download’’ o que quiserem, nunca deixará de ser uma cópia”. (…) “’Fac-similes’ grosseiros porque grosseiros são os erros que contêm. Pior do que isso reside na ignorância desses professores aceitarem essas cópias como se tratassem de trabalhos originais em que cada aluno pusesse neles uma parte de si e da sua forma de interpretar os textos que leu na Net.” Fazer download”, e assinar por baixo como sendo obra original é, sem rodeios, pura vigarice e um atentado à cultura dos professores que as sancionam”.
Talvez este “status quo” explique a facilidade da obtenção de certos doutoramentos que assumem a forma do jogo do gato e do rato, apesar dos actuais detectores de plágio, em que o doutorando foge à alçada do Código Penal e da vergonha pública em ser descoberto.

Não é o caso de Eça, Camões, Gabriel d’Annunzio, entre outros gigantes da Literatura, sobre quem recaiu o opróbrio de se terem inspirado noutros autores para escreverem as suas notabilíssimas obras. Não foram eles copiadores! Foram eles homens de génio que produziram textos com características bem pessoais e, por isso, isentos da infâmia do crime de plágio. A inspiração em obras de outros autores não pode ser tida como plágio: “O homem de génio tem o direito de se apropriar das imagens e das ideias alheias e lhes dar colorido, harmonia, sedução, vida, que as farão imortais” (Afrânio Peixoto).

Ou seja, “o plágio não é atributo negativo apenas da era dos computadores”, ou seja aquilo que Adolfo Toffler tem como “A Terceira Vaga”, que se seguiu à Revolução Industrial. Esta revolução, tão criticada por certos autores, trouxe os seus malefícios e os seus benefícios. Sopesando uns e outros será desonesto assumir o maniqueísmo em defesa de uns e exclusão de outros. A era da informática está recheada de promissoras novidades no âmbito da Cultura dos adultos e da formação dos jovens escolares. Seria lícito, por exemplo, eu ter transcrito o texto de Alice Vieira, sem aspas e sem indicar a sua autora? 

Pelo valor que reconheço à sua autora seria uma tentação alguém apresentá-lo como obra sua punível com uma pena até três nos de prisão com a atenuante possível de ter sido uma das vítimas de professores, citando e fazendo  fé em Alice Vieira, "que ensinam os alunos a copiar". 

É  isto que está em discussão. Fugir disto é fugir ao cerne da questão.

4 comentários:

Multiplicai-vos disse...

O Professor não copia, mas usa a caneta de Eça. Há sempre uma apropriação do outro, um canibalismo de conteúdos, formas, contornos ou sombras e um regurgitar de tudo isso que parece ser pessoal. E não pomos aspas só porque já se encontra digerido.
Claro que é desonesto copiar sem indicar o autor do original. Tal não está em questão. O que eu digo é que quase já não há originais. Os originais são um erro de cópia.
Já avancei para a além da particularidade do particular. O fractal está inscrito no ADN universal.
O que seria de nós se não copiássemos o vazio que fica entre as palavras?

Ildefonso Dias disse...

O copianço, esse sentimento da necessidade do copianço, é creio eu, a melhor evidência da justeza deste pensamento de TOLSTOI, quando escreveu, "... a actividade intelectual é uma actividade excepcional que só é dever e felicidade para quem tem a vocação dela. A vocação não pode ser conhecida e posta à prova senão por meio do sacrifício que o sábio ou o artista fazem dos seus lazeres e do seu bem-estar para seguir a sua vocação."

Rui Baptista disse...

Aceito o "canibalismo ". Todavia, em mim há como que uma apropriação, quase diria inscrita no meu ADN por influência materna, que me leva a (ab)usar, como algo que se cola à pele: “a caneta de Eça", mais do que de qualquer outro escritor.

Veneração acaciana minha? Concedo, de bom grado e grato por me ter obrigado, com gosto meu, a fazer introspecção em momentos de pandemia, tão dados , porque prisioneiros no domicílio, a que façamos um flashback da vida que vivemos e suas causas boas ou más conforme a perspectiva em que ela é encarada por quem observa as nossas idiossincrasias!

Rui Baptista disse...

Judiciosas palavras de Tolstoi por si citadas: "A actividade intelecual é uma actividade excepcional que só é dever e felicidade para quem tem a vocação dela". Não é esse o caso de Portugal actual em que se percorre o ensino básico sem esforço por directivas superiores em que "chumbar" é tão difícil, como sói dizer-se, como um camelo passar pelo buraco da agulha. E, mesmo assim, para evitar tentações de professores exigentes com a espinha vertical, correu-se o risco de ser institucionalizada a proibição de chumbar os alunos. Ou seja, a vocação e o esforço pessoal dos alunos foi substituido pela diplomocracia para que tdos possam ser "doutores" e se tiveram familiares do topo político ascendam a lugares elevados. É este o Portugal que temos e que se espera que a reflexão, obrigada pelo período de quarentena, sirva de lição.

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