terça-feira, 12 de novembro de 2019

Entrevista: “A Ciência tem Provas daquilo que afirma, a Pseudociência não”

Entrevista que Catarina Santos me fez, no âmbito da cadeira de Géneros Jornalísticos do curso de Comunicação e Jornalismo da Universidade Lusófona,  publicada na revista Reflexo.


“A Ciência tem Provas daquilo que afirma, a Pseudociência não”


David Marçal é doutorado em Bioquímica, destacando-se como comunicador de ciência, investigador e escritor, autor de vários livros como Darwin aos tirosPipocas com telemóveisA Ciência e os seus inimigos Pseudociência, tema desta entrevista pela polémica que tem gerado em debates recentes sobre as terapêuticas não convencionais e os movimentos anti-vacinação.

O que distingue a pseudociência da ciência?
As provas... A ciência tem provas daquilo que afirma, daquilo que diz, a pseudociência, não. E o que a pseudociência apresenta no lugar das provas são argumentos de autoridade, portanto, uma coisa é verdade porque há pessoas importantes que dizem que é verdade, ou porque está escrito em livros muito antigos e muito grossos, ou porque ela própria é muito antiga. O físico Richard Feynman comparava a pseudociência ao culto da carga, que é um culto praticado por uma série de povos das ilhas do Pacífico a seguir à segunda guerra mundial e que tinha como objetivo voltar a trazer os militares norte-americanos que tinham saído das bases desativadas. Então eles [os nativos] imitavam os procedimentos dos militares - construiram uma cabana que era a torre de controlo, construiram pistas de aterragem que eram as estradas de terra batida, havia um indivíduo que punha duas metades de coco na cabeça a imitar auscultadores - mas havia uma coisa que faltava, porque os aviões não aterravam. E o que falta, no caso da pseudociência, são as provas. A pseudociência imita em tudo da ciência, copia a estética da ciência, mas falta o que é fundamental que são as provas.


Como se esclarece alguém sobre a pseudociência?
É relativamente fácil esclarecer alguém sobre a pseudociência. A dificuldade é se essa pessoa quer ser esclarecida. Nós não temos apenas uma dimensão racional, também temos uma dimensão emocional, acreditamos em muitas coisas para as quais não temos justificação. A crença faz parte do nosso sistema cognitivo, portanto há coisas que nós acreditamos sem termos uma razão fundamentada para isso... Podemos por exemplo acreditar numa coisa porque isso nos dá um bilhete de entrada num grupo especial, por exemplo se eu acreditar que a terra é plana, isso faz-me ser aceite por um grupo de pessoas que acredita que a terra é plana.

É também o caso do movimento anti-vacinação?
Sim, eu diria que se pensarmos no plano das últimas décadas, o movimento anti-vacinação parece-me, claramente, que ganhou terreno... Ganhou terreno, porque as pessoas já não se lembram das doenças infeciosas que as vacinas previnem. As vacinas acabam por ser vítimas do seu próprio sucesso. Tem acontecido sempre que há políticas públicas de vacinação. Se pensarmos num horizonte temporal mais curto, não sei se estão a ganhar terreno, porque neste momento também há uma grande reação aos movimentos anti- vacinação.

Há cada vez mais anúncios sobre medicamentos homeopáticos, como o Oscillococcinum [produto homeopático altamente diluído que não contém qualquer substância ativa1]. O que acha que o Estado podia fazer para diminuir a tendência para as pessoas procurarem medicamentos homeopáticos e começarem a confiar mais na ciência?
O Estado podia fazer muito, aliás o Estado podia não fazer nada, que já seria melhor do que faz. O Estado podia deixar de ter os remédios homeopáticos aprovados pelo Infarmed, o que acaba por ser um argumento de autoridade, porque as pessoas pensam “bom, isto é um remédio aprovado pelo Infarmed, isto deve funcionar”, só que não é verdade, porque eles são aprovados através de uma coisa chamada regime simplificado e nesse regime apenas é necessário provar que o remédio é inócuo [«apresentem um grau de diluição que garanta a inocuidade do medicamento»2]. E neste caso é muito fácil porque os remédios homeopáticos são apenas água e açúcar portanto são essencialmente inócuos. Não têm que passar por toda a bateria de testes de eficácia e segurança. Isto induz em erro o público e o estado devia proibir efetivamente a publicidade enganosa. E o Estado podia fazer mais designadamente não ser cúmplice de uma fraude através da emissão de cédulas profissionais para homeopatas.


Com todo o acesso à informação como é que algumas pessoas ainda confiam na homeopatia?As pessoas são complexas em todas as decisões da sua vida, não utilizam a racionalidade, e muitas decisões são emocionais e intuitivas, procurando coisas com as quais se identifiquem do ponto de vista ideológico e filosófico. A homeopatia, neste momento tem uma aura de ser natural e as pessoas que procuram um estilo de vida natural, livre de químicos acabam por se sentir atraídas por estas alternativas. Não é por acaso que o medicamento homeopático mais vendido é um medicamento para a gripe que é uma doença que passa sozinha.

No fundo a pseudociência e as terapêuticas não convencionais têm um argumento [de autoridade] que quase nunca falha . Como explica esse fator? O argumento de autoridade é precisamente isso, as pessoas acreditarem que uma coisa é verdade, porque alguém muito importante diz que é verdade. De uma certa forma há uma confusão quanto a isso, porque há muitas pessoas que pensam que a ciência se baseia na autoridade dos cientistas e não se baseia nisso. Baseia-se nas provas que são apresentadas pelos cientistas, provas essas que são sujeitas a um processo extremamente duro e eficaz a destruir ideias – é muito difícil uma ideia sobreviver ao escrutínio da ciência.


Acha que ainda é válido o conceito “o que é natural é bom”?
Acho que nunca foi válido, a natureza não é só paz e amor, a natureza é um sítio em que os seres vivos têm como objetivo importante matarem-se uns aos outros. Os venenos mais poderosos que existem são produzidos na natureza. Portanto não é válido e nunca foi válido. Há coisas que só existem na natureza e que são extremamente perigosas e há coisas que não existem na natureza que são de facto feitas pelo Homem que nos podem ajudar muito. Por exemplo o amianto é um produto natural, a cocaína, a nicotina, a penicilina, mas não são os produtos naturais que os defensores dos produtos naturais normalmente estão a pensar quando defendem a sua superioridade.

Mensagens finais sobre este tema?
A mensagem é sempre a mesma, que não há nenhuma receita mágica contra a pseudociência. O único antídoto é a cultura científica e também não há nenhuma maneira fácil de aumentar a cultura científica da maioria da população rapidamente. É um trabalho interminável que depende de uma série de “atores” como escolas, universidades, instituições de divulgação de ciência, centros de ciência, museus e também dos jornalistas e do poder político.


[1] O Inacreditável Mundo da Homeopatia (COMCEPT)
https://comcept.org/wp-content/uploads/2015/06/O-Inacredit%C3%A1vel-Mundo-da- Homeopatia.pdf
[2] Medicamentos homeopáticos (Infarmed)
http://www.infarmed.pt/web/infarmed/entidades/medicamentos-uso-humano/autorizacao- de-introducao-no-mercado/medicamentos-homeopaticos

2 comentários:

Pancinhas disse...

Continuamos a fazer tudo à moda da "(Pouco) Santa Inquisição", com um cheirinho a fogueira, que estamos num Inverno frio ...
Vejamos, quando a Ciência se engana, infelizmente é geralmente "em grande", e dado a sobranceria .... não há nada mais divertido do que ver um emproado cair (como o Cinema Mudo demonstra ...).
Mas se querem "fogueiras" sejam coerentes, tratando os que ao mesmo nível os da pseudo-ciência, com os cientistas vendilhões que diziam que o chumbo da gasolina, o flúor, etc não faziam mal.

Anónimo disse...

Equiparar tretas comprovadas como a homeopatia ao flúor não é apenas má-fé, é enganar descaradamente as pessoas.

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