sábado, 30 de novembro de 2019

APRESENTAÇÃO DE "DIÁLOGOS COM CIÊNCIA" DE ANTÓNIO PIEDADE


Com a devida vénia e agradecimento, transcrevo a seguir o texto da apresentação que a professora Carla Fernandes fez do meu livro "Diálogos com Ciência", aquando do seu lançamento no passado dia 28 de Novembro de 2019, na livraria Bertrand, no Alma Shopping, em Coimbra.

“Diálogos com Ciência”, a obra da autoria de António Piedade, bioquímico, investigador e comunicador de ciência, não é uma novidade, mas antes uma retoma a que a editora “Trinta por uma Linha” deu uma nova e feliz roupagem.
De entre os escritos publicados pelo autor, estes revelam, com particular acuidade, a intenção de conferir uma missão especial aos que se dedicam à investigação: tornar a Ciência acessível a todos, em particular aos mais jovens.
Podemos interrogar-nos para que serve a ciência se não for aplicada em contexto e/ou se não contribuir para a evolução dos saberes do vulgar ser humano. Do ponto de vista epistemológico, este é um aspeto que se discute há muito. De facto, a ciência e a tecnologia são frutos da cultura moderna e pós-moderna que decorrem da investigação praticada nos centros de produção do saber, normalmente situada sob a chancela do meio universitário. Contudo, a forma como as descobertas científicas são divulgadas é uma questão premente, considerando que a maioria dos artigos científicos são publicados em revistas especializadas e o eco do seu impacto para a evolução do conhecimento comum é  tardio ou muitas vezes até inexistente. Essa contradição entre a velocidade a que se produz o conhecimento, freneticamente acelerado hoje em dia, e a lenta perceção dos avanços realizados deve preocupar-nos... Se recuarmos ao século XX, já Habermass (2007) se interrogava sobre qual seria o papel da ciência e a função  que a atividade científica deveria desempenhar na sociedade. Na realidade, concluía o mesmo pensador, que esta força libertadora da tecnologia trouxe com ela a instrumentalização, transformando-se muitas vezes, paradoxalmente, num entrave à própria liberdade humana. A bem do exercício do pensamento crítico e da capacidade de análise do mundo pelos cidadãos, que se querem ativos e interventivos, a transmissão do conhecimento científico e a comunicação em ciência são vetores de investimento inalienáveis para um progresso sustentável.
Neste pressuposto, a atividade do cientista ganharia muito em transformar-se com a comunicação de ciência, por forma a favorecer o acesso, a difusão, a reflexão e, por inerência, a interdisciplinaridade, pois o diálogo entre as ciências é algo primacial para uma construção equilibrada do saber universal. Por outro lado, a comunicação com o mundo do qual partem todas as questões é uma tarefa de básica honestidade. É como se eticamente lhe fosse devida uma resposta às interrogações, não a verdade (que é sempre efémera), mas uma descodificação de conclusões que, afinal, são um investimento de todos os cidadãos.
Invocando o professor Rómulo de Carvalho, lembramos que, em boa hora, expôs o truque da sua pedagogia: “Estimular é saber tirar proveito das coisas, saber encantar, digamos, pôr as coisas em relevo, mesmo as coisas insignificantes(…) Tornar pensáveis as coisas habituais que não se pensam”. “Diálogos com Ciência” segue este esteio de tornar atraente e pensável o que poderia ser aparentemente inócuo e o seu autor é o exemplo desta tentativa salutar.
O livro, dirigindo-se fundamentalmente a um público infantil e juvenil, consegue captar também a atenção de leitores adultos, movidos de natural curiosidade ou pelo interesse intrínseco  por matérias científicas. Isto faz dele um veículo de conhecimento transversal que começa no próprio objeto (pela diversidade de conteúdos científicos que explora) e se estende ao seu recetor, dotado de pluralidade.
A característica dialógica, marcada desde logo no título, põe em relevo um modo de representação do discurso que é efetivamente uma marca do estilo do autor neste género, que oscila entre  a veia literária e o foco das diferentes temáticas científicas abordadas. Na verdade, estas narrativas breves são, muitas vezes,  construídas com recurso a conversas de improviso que expõem, de modo simples, as questões em torno de um determinado problema científico, que se vai desmistificando ao longo da interação entre as personagens. Veja-se, a título de exemplo, a composição química da lágrima, com reminiscências de Gedeão, explicada num tom paciente pelo tio António em “O que tem a tua lágrima?”. As crianças, naturalmente curiosas, questionam, os adultos respondem-lhes, com linguagem clara, e dão exemplos. E assim o leitor vai sendo conduzido para a decifração dos diferentes cambiantes da ciência, explorados em cada história.
Efetivamente, no seu conjunto, estas mini-histórias, nas palavras do autor do prefácio, o Professor Carlos Fiolhais, fazem transparecer a ciência de uma forma natural e simples. Afinal, para compreender melhor o que se aprende nas ciências está ao alcance de um piscar de olhos. Basta ler histórias. Convocamos para esta nossa reflexão a conhecida afirmação de Einstein (ícone intemporal da ciência), que, segundo Maria Emília Traça (1992: 23), sugere à mãe de uma criança que lhe leia contos de fadas.
E citamos: “Era uma vez um famoso físico chamado Albert Einstein, que um dia encontrou uma senhora extremamente desejosa de ver o seu filho triunfar numa carreira científica. A senhora pediu ao sábio que lhe desse conselhos sobre a educação do seu filho, em particular sobre o tipo de livros que lhe deveria ler.
– ‘Contos de fadas’, respondeu Einstein, sem hesitar.
– ‘Está bem, mas que deverei ler-lhe em seguida?’, perguntou a ansiosa mãe.
– ‘Mais Contos de fadas’, replicou o grande cientista acenando com o seu cachimbo como um feiticeiro que prenuncia um final feliz para uma longa aventura.”

Pois bem, é certo que a narratividade favorece a compreensão leitora e talvez a ciência possa tornar-se mais sedutora para todos se for comunicada de mãos dadas com o universo ficcional, sem perder o rigor dos seus fundamentos.
As personagens deste livro são inseridas numa ação povoada de água, peixes, plantas, códigos de ADN, grupos sanguíneos, números e datas, comboios e lágrimas. Na verdade, de tudo isto é composto o mundo humano. As entidades fictícias que povoam estas micro-narrativas, com nomes comuns ou com nomes próprios de ordem comum (a Maria, a Leonor, o Rui…), dotam de inegável universalidade as situações criadas e implicam-nas diretamente com o real. Tal facto confere objetividade à ação, colocando o leitor num universo de verosimilhança que o conduz à descodificação de realidades tangíveis e cientificamente comprovadas. Veja-se, a título de exemplo, o episódio narrado em “Primavera marciana!”, em que o predomínio do discurso direto entre as personagens vai descodificando as noções científicas.
Não obstante, o pragmatismo que se requer numa explicação científica não oculta a beleza que as palavras podem ter. A escrita, enquanto processo de criação conduz muitas vezes a mão do autor para outras incursões ao nível do uso da linguagem. O recurso à metáfora, a que a produção de Piedade não é estranha, no esteio de outros homens de ciência que deram azo ao fio do artístico, como Adolfo Rocha / Miguel Torga ou já citado Rómulo de Carvalho/António Gedeão, do qual se assinalou o aniversário no passado dia 24 de novembro, data  escolhida para assinalar Dia Nacional da Cultura Científica pelo antigo Ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, em homenagem ao professor, divulgador de ciência e poeta, sempre preocupado com os aspetos pedagógicos associados à transmissão do conhecimento.
De facto, é notória na produção destas histórias breves sobre ciência a cadência das emoções, de que “Música a cores” é exemplo.

“O coração de Leonor batia numa cadência agitada. Parecia que o coração queria saltar-lhe do peito e ir dançar com ela e com as folhas que chovem das árvores no Outono. Mas não era só por causa do sobressalto que se adicionava ao tambor cardíaco. Leonor estava ansiosa. Procurava sons da Natureza ao longo do caminho desde a escola até à sua casa. mas o barulho da cidade era tão intenso que não conseguia descortinar sons que associasse a outras coisas que não fossem carros, aviões, comboios, equipamentos de climatização, entre tantos outros elementos da orquestra citadina.” (p. 29)

Tudo isto para introduzir um episódio sobre o cruzamento entre a comemoração do Dia Mundial da Música e a biodiversidade. Afinal, a música está por aí, basta escutá-la...

“Concentrou-se nestas sensações e sentiu que as melodias a inundavam com uma paleta de cores que variava e, consoante a tonalidade do trinado, era mais aguda ou mais grave”. (p. 31)

Há, efetivamente, temáticas, que apelam ao mergulho interior. Piedade não resiste à criação do belo e à linguagem simbólica e estilizada quando nos narra a história de um nascimento em “Silêncio Prodigioso”, onde se cruzam “olhares uterinos”:

- “Já eu existia, ou pelo menos um frágil princípio de mim, e já comunicava sem tu saberes… mas o teu corpo entendia a minha primeira palavra - diz Leonor aninhando o seu olhar numa recordação amniótica, numa lágrima singular a brilhar na face de sua Mãe.
- Vi então a cor do teu silêncio, que afinal ressoava no meu ventre, pronto para muitas e novas mensagens futuras.
De mãos dadas, sentadas na margem do lago, Leonor e sua Mãe estão contemplativas, num silêncio prodigioso.” (p. 23)

Mas, sosseguemos agora a força das palavras e vamos ao objeto livro.
Esta edição renovada, trazida à luz pela editora “Trinta por uma Linha”, oferece-nos algo mais para além do trabalho dos processos de composição textual do autor, aplicados ao conteúdo científico.
As ilustrações de Maria Pimentel, que acompanham o(s) texto(s), tornam a leitura mais leve, mais divertida, por aquilo que acrescentam ao código escrito, traduzindo pictoricamente as ideias, mas conferindo também, em paralelo, a sua assinatura como objeto artístico per si. A apresentação gráfica a preto e branco adequa-se em pleno à natureza discreta da publicação, deixando ao leitor outras pistas de reflexão sobre os diferentes temas que sobressaem destes diálogos interdisciplinares com a ciência. Se atentarmos na capa, note-se como se torna apelativa para os mais jovens, desde o lettering escolhido para o título até à ilustração, que evidencia uma jovem sorridente em interação com alguém, numa observação expressiva do mundo e das suas coisas (o planeta, a natureza, os seres vivos, o tempo... - todos os elementos que se constituem como assunto de conversa neste livro).
Neste livro, texto e imagem em uníssono - cada qual na sua forma, no seu
código e legítimo universo semiótico - presenteiam-nos com a ciência, num
claro diálogo entre o saber e a arte.

Carla Fernandes

Bibliografia
-  HABERMAS, Jurgem (2007). Ciência e Técnica como Ideologia. Lisboa: Ed. 70.
- TRAÇA, Maria Emília (1992). O Fio da Memória. Do Conto Popular ao Conto para Crianças. Porto: Porto Editora.

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