sexta-feira, 15 de março de 2019

ALBERTO DE LACERDA


Do académico e ensaísta Eugénio Lisboa, meu amigo de longa e frutuosa data, personalidade que tem honrado o DRN com o envio de diversos ensaios, recebi mais este texto que ora se publica com o prazer de sempre: 
“Sou parte da luz que contemplo”. 
"Em boa hora Luís Amorim de Sousa, infatigável obreiro da imagem póstuma de Alberto de Lacerda, organizou, para Pedro Mexia, da Tinta da China, a bela e substancial antologia de poemas daquele poeta, a que deu o sugestivo e adequado título de Labareda. 
Notabilíssimo poeta, nascido em Moçambique mas tendo vivido a maior parte da sua vida em Londres – com períodos “americanos” em Austin (Texas) e Boston – Alberto de Lacerda tem andado, como poeta, bastante esquecido. 
Tentei, nos anos oitenta do século passado, reacender o interesse pela obra deste grande poeta, pondo-o, do meu gabinete da embaixada, em Londres, em contacto telefónico directo com Braz Teixeira, da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em Lisboa. De aí resultou abundante fruto: a publicação de dois grossos volumes de poesia – Oferenda - I e Oferenda - II – que reúnem, cada um deles, vários livros anteriormente publicados, além da publicação de vários outros títulos de menor dimensão. 
O poeta não esteve, portanto, inteiramente fora dos focos da ribalta. Mas a atenção crítica que lhe tem sido dedicada tem sido francamente diminuta e outros poetas de bem menor gabarito têm merecido os favores de uma atenção que a ele se tem furtado. Espera-se que esta antologia de Luís Amorim de Sousa, que compreende 163 poemas, dos quais, 29 inéditos, possa levar ao canto singular deste bardo a curiosidade de um abastado punhado de leitores atentos. 
Apesar de um já vasto acervo de poemas publicados, Luís Amorim de Sousa informa-nos de que existe ainda cerca de um milhar de poemas inéditos, o que nos torna humildes quanto ao valor de uma avaliação que possamos fazer, face ao canon até agora conhecido. Haverá que se publicar – como? quando? – todo esse enorme espólio, antes de nos podermos, com alguma confiança e abrangência, pronunciar sobre a poesia deste fecundo e altíssimo poeta. 
Dizia Jean Cocteau que os poetas raramente são seres poéticos. Mas Luis Amorim de Sousa observa que Alberto de Lacerda “correspondia em pleno à ideia que se tem de um poeta.” E era bem verdade. E porquê? Amorim de Sousa aduz alguns argumentos, embora em forma interrogativa: “O facto de viver em quartos alugados? Essa maneira de se sentar a um canto de um café e escrevinhar em blocos de papel? O seu olhar ao mesmo tempo perscrutador e longínquo? As suas deambulações pela cidade? A sua «falta de jeito para o negócio»?” Tudo isto, talvez, e também a sua paixão insaciada pela liberdade. E o seu gosto pelo cultivo, inteligente, agudo e sensível da língua portuguesa. 
Dirá, num poema (p. 241 desta antologia): “A língua em que nasci / Pátria fundamental.” “Acima de tudo”, observa Amorim de Sousa, “Alberto mantinha-se disponível para o poema, e a poesia nunca o abandonou. Visitava-o nos momentos mais banais do dia-a-dia, na intensidade de tudo o que o arrebatava. Tudo tinha expressão poética no mundo íntimo de Alberto de Lacerda”. 
Privei com Alberto de Lacerda em Lourenço Marques (éramos ambos estudantes do liceu), em Lisboa (era eu estudante de engenharia e o Alberto vagamente estudante do Instituto Britânico e da Alliance Française) e, depois, em Londres, onde eu era conselheiro cultural na embaixada e o Alberto se encontrava, nos intervalos dos seus cursos “americanos”. Foi sobretudo em Londres que o nosso convívio foi mais apertado e assíduo. O Alberto era, de facto, um ser singular, pelo modo como vivia e pelo modo como falava. Cultivava a língua com uma precisão acutilante, iluminando-a de forma especial e brandindo-a com galhardia e originalidade. 
Falava ele próprio dessa língua, que visitava com amor, chamando-lhe nomes: “Esta maravilha / Assassinadíssima!”; “Este requebro / Esta ânfora / Cantante”; “Esta máscula espada / Graciosíssima”; “Minha núpcia ininterrupta / Meu amor para sempre / Minha libertinagem / Minha eterna virgindade”. 
Perscrutador de assombros e de “maravilhas”, Lacerda era o poeta de agonias sombrias mas também da sedução da luz: “Sou parte da luz que contemplo” (p. 218), ou ainda: “Meu canto vai beber / À tua luz altíssima (P. 235). “Altíssima” era realmente a luz que ele absorvia e nos ofertava, no seu convívio estimulante pelas ruas de uma Londres que conhecia como os seus dedos. 
Nunca esquecerei uma tarde de sábado em que o Alberto se fez, com entusiasmo e alegria minuciosa, meu (e da Maria Antonieta) cicerone cultural. O ar facilmente fluente como nos ia mostrando lugares e sítios… Ao passarmos, por exemplo, por um determinado prédio, apontou-nos, comovidamente, um apartamento: fora dali que T. S. Eliot saíra, uma manhã, para se ir casar com a segunda mulher, Valerie… Londres era toda uma colecção de lugares prenhes de significação. E o Alberto conhecia-os como ninguém. E gostava de os partilhar com os amigos. Uma coisa que sempre me impressionou em Alberto de Lacerda foi o seu culto do excessivo, do “gesto atingindo a exaltação suprema”, de que fala um verso seu (p.238). Era um dos prazeres que fruíamos na sua conversa, este seu gosto pelo excesso, pelo ardor da afirmação excessivamente exagerada, que se prestava a um cómico irresistível. 
Lacerda não era um morno e, como Deus no Apocalipse, vomitava os mornos. Como para um grande poeta inglês, nada, para ele, era tão bom como o excesso, como o ardor: “De pouco ardor hei-de morrer”, diz um verso seu (p.24). Dissemos já algures, falando da sua poesia: “É esta dimensão infinita, este excesso, este exagero de afirmação que dão a quase toda a sua poesia uma força única e um fulgor inigualado.” Para Alberto de Lacerda, a paixão é “cega” e a beleza é “estupenda” (p. 91). E o mundo está cheio de assombros e maravilhas. E também da “câmara dos horrores da memória (p. 35). Tudo busca e ilumina com o seu canto límpido e excessivo: “ Eu sinto, eu creio, eu canto, e a luz é tanta” (p. 22). 
Como amava excessivamente Mozart, era sempre na sua companhia, diz-nos Amorim de Sousa, que celebrava a passagem de um ano para outro ano, erguendo uma taça e ouvindo o Divertimento n.º 15. Nesses momentos, olhava provavelmente de frente o que diz um verso seu: “Talvez a luz a resposta” (p. 54)".
Eugénio Lisboa 

1 comentário:

Graça Sampaio disse...

Mais um dos nossos excelentes poetas/escritores ignorado, desprezado... Uma pena!

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