domingo, 6 de janeiro de 2019

"Os pilares da educação mudaram?". Entrevista de João Céu e Silva a José Gil

Vale a pena ler integralmente a entrevista a José Gil, filósofo, feita pelo jornalista João Céu e Silva e publicada há dois dias no Jornal de Notícias. Tomamos a liberdade de deixar aqui nota do que se nela se refere, directa ou indirectamente, à educação escolar no presente.
"O que pretendia dizer é que há um discurso de valores e uma certa moral de um humanismo cristão e laico que propõe sempre um arsenal tradicional de categorias de direitos, de cidadania, de tolerância e de justiça. Ora, deve-se entender isso como um falhanço porque, em primeiro lugar, não se efetivaram. Realmente, não chegou o facto de se tornarem universais para que a realidade e a história conflitual se alterassem, além de que não fomos capazes de nos transformar suficientemente de modo a que a nossa sociedade se modificasse. Em segundo lugar, possivelmente, há um falhanço teórico, mas esse levar-nos-ia a muitos pensadores que fizeram crítica desses valores ainda antes de Nietzsche (...)
A nossa inteligência manifesta-se na técnica e na ciência e na articulação tecnológica entre as duas. No entanto, é também uma das razões que se podem apontar entre as maiores calamidades que aconteceram ao homem. Há teorias de filósofos que dizem que a técnica foi uma das causas maiores do mal humano e podemos ver, mesmo de forma superficial, que é muito real. Não esquecer que a técnica está também por detrás do Holocausto e dos campos de concentração alemães. Até o que fez Hiroxima e Nagasaki. Vivemos uma utilização sem limites da técnica e é esse uso, mesmo que a causa não esteja nela, que levou ao expoente máximo da exploração capitalista da nossa Terra e que poderá levar à nossa extinção (...). não quero entrar no mito genésico que diz que é por querermos conhecer tudo que vem o mal, no entanto estamos num questionamento permanente sobre qualquer enigma. A técnica é neutra, mas tanto pode ser utilizada para o bem como para o mal. Outros dizem que não é neutra porque leva a uma análise cada vez mais profunda do que deveria ficar escondido e nesse sentido talvez a própria técnica não tenha limites mas uma vocação intrínseca de não parar (...)  
Há um facto muito simples, é que até agora em países muitos pequenos e específicos, como o nosso, o espaço público era dominado pelos media e pela televisão, mas as novas tecnologias tornaram possível a criação de um outro espaço público muito particular, diferente e que se torna o terreno propício para dar expressão a uma injustiça: «Eu, cidadão anónimo, desprezado pelo sistema e pela injustiça das políticas, posso manifestar-me aqui.» Mesmo que isto signifique que o ignaro mais incongruente possa manifestar a ignorância com agressividade nesse espaço público. E este é um fenómeno novo para as elites (...). 
Ou dizemos que as fake news existiram sempre porque a mentira e a máscara sempre aconteceram, ou dizemos que as fake news são uma coisa nova e um outro tipo de mentira. Se é para dizer que notícias supostamente verdadeiras se revelaram falsas, tal aconteceu a toda a gente. O que é uma fake new? É uma notícia que é produzida sem que haja critérios de verificabilidade da sua realidade porque eles foram abolidos. Mesmo que os haja, esses critérios deixaram de ter validade devido ao meio de fabricação das fake news, que provém de um meio populista onde não se pode analisar a falsidade sem se contextualizar numa relação de poder. Pode ter-se todas as provas que se quiser para demonstrar que é falso, mas o que Trump faz todos os dias, e sabe-se que não é verdade o que diz, vai ser absorvido pelo seu público sem os critérios de verificabilidade. É a potência carismática e a adesão ao líder que conta nas fake news. 
O passado mostrado pela arte e pela cultura tem vindo a ser suplantado pela preocupação com a situação financeira e económica. Os pilares da educação mudaram? Não é só a questão económica, o que se passa é, repito, uma erosão de tudo o que é a tradição. O passado está a ser engavetado, digitalizado e virtualizado, e cada vez menos lhe atribuímos uma realidade com peso. O passado é cada vez mais uma imagem que se transforma numa coleção de imagens enquanto objetos de consumo, apesar de não informarem nem sedimentarem a nossa pessoa e cada vez menos os comportamentos sociais. Um aluno sabe cada vez menos sobre o passado, nem lhe interessa saber, e isso é terrível, pois há uma erosão que vem da transformação do valor da realidade do passado e da transmissão pela tecnologia que traduz tudo em imagem. Tudo isso é metabolizado e instrumentalizado pelo capitalismo, que só conta cada vez mais com o que gera uma mais-valia (...). 
Não acho que haja mudança de paradigma, porque tal não existe para o nosso presente. Estamos a mudar de paradigma sem que tenhamos aquele para o qual queremos mudar. Isto em tudo, como é o caso da educação para a cidadania. Havia antes uma educação para a transmissão e acumulação na área das humanidades, agora é o da cidadania. O que é que os professores vão ensinar? E como vão formar turmas tumultuosas. Isto é uma coisa ridícula, porque quando não se dão meios nem se preparam os professores para a cidadania não há formação possível: ou seja, não há paradigma, tanto mais que a questão da cidadania leva a ponderar questões totais na sociedade (...)".
Maria Helena Damião e Isaltina Martins  

1 comentário:

Anónimo disse...

Li a entrevista de José Gil, o nosso filósofo pós-modernista e fiquei com a dúvida, se este filósofo, acredita na Verdade, na Ciência, na objectividade universal da Ciência. É que na sua matriz filosófica, existe um radicalismo epistemico relativista, que não joga bem com certas frases da entrevista... Também quando diz que os valores cristãos humanistas laicos falharam, não sei o que isso significa! Por fim a referência moral a Nietzche é problemática pois a sua proposta moral era a destruição dos fracos pelos fortes! Por fim fico com a ideia de que muito fica por dizer, nas entrelinhas do texto, porque cairia no descrédito quem o afirmasse de forma cristalina...
NM

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