DICIONÁRIO DOS ANTIS
APRESENTAÇÃO
Foi há sete
anos. José Eduardo Franco estava em Paris e apresentou-me o seu projeto de
fazer uma história dos antis, e da cultura em negativo que estes produziram. Dada
a diversidade de domínios que teria de abordar, concluiu que só a forma de
dicionário permitiria fazer justiça à amplitude desta questão. A ideia
seduziu-me imediatamente e, olhando para trás, perguntei a mim próprio como era
possível que tal projeto nunca tivesse sido realizado. Estava diante de um
daqueles conceitos simples e evidentes que mudam o ângulo de interpretação de
toda a evolução humana, mas de cuja eficácia ainda ninguém se tinha apercebido.
Existem, com efeito, numerosas mobilizações e organizações que foram criadas
unicamente para se oporem a uma opção política, a uma ideologia, a uma religião;
ou simplesmente a uma lei, a um decreto; ou então a um espetáculo ou a uma
moda. Existem mesmo gerações inteiras de movimentos de oposição que forjaram múltiplos
vocábulos para assinalar a radicalidade do seu desacordo.
Para um
historiador contemporâneo, surgem em primeiro lugar aqueles que se ergueram contra
os princípios que mudaram a sociedade em que viviam: a contrarreforma, a contrarrevolução,
que manifestam o desejo de bloquear movimentos de transformação que colocavam
em perigo, segundo os seus promotores, o equilíbrio do mundo. Ora, os que eram
contra esperavam uma erradicação completa desses processos destrutores.
No século xx, desenvolveram-se movimentos anti
fortemente implicados no terreno ideológico e partidário. É a grande época dos
anticomunistas, dos antifascistas, dos antimarxistas, dos antinazis, dos
antimaçónicos... De tal modo que estes termos entraram na linguagem corrente e
se tornaram tema de teses e de obras de investigação. Os antis têm como ponto
comum serem simétricos e pressuporem que os seus adversários se manterão ativos
durante muito tempo.
De algumas
décadas a esta parte, houve um sufixo entrou na linguagem corrente para
desqualificar um adversário: “fóbico”. Com os islamofóbicos, os homofóbicos e
outros judeofóbicos, deixou de haver uma oposição racional; o que há é uma
espécie de loucura, de doença mental, que obrigará à exclusão da sociedade dos “fanáticos”
que fazem tais discursos. Estamos perante um testemunho vivo daquela eufemismização
da violência pensada por Norbert Elias em Dans
la Dinamyque de l’Occident, onde o pensador alemão profetizou, já nos anos
de 1960, uma psicologização das relações sociais, que iria ao ponto de
transformar o debate publico numa polémica clínica...
A
originalidade do dicionário que o leitor tem entre mãos consiste em observar as
práticas sociais de hoje e as suas representações em comportamentos e
argumentações muito mais antigos. E porque não desde a aurora da humanidade? Vemos
assim que os antis não constituem apenas uma história reduzida às oposições
pontuais, mas uma história de cada século, de tal modo que cada geração escreve
a sua própria redefinição intelectual e alimenta a criação de novas
instituições para efeitos de contradição e afronta.
Em suma, José
Eduardo Franco e os seus colegas mostram-nos, através dos antis, como se tem
desdobrado uma dimensão negativa da cultura desde a Antiguidade. Prolongando o
seu propósito, compreendemos que a crítica acabou por se tornar uma forma de
arte: o confronto promove o saber-fazer, modela maneiras de pensar que
constituem uma afirmação. Um olhar sobre o panorama dos antis permite observar
as grandes questões da civilização ocidental e as tensões que subjazem aos seus
enredos. As entradas sobre ateísmo e antiateísmo ilustram bem este perceção e
lançam-nos na longa duração, demonstrando que a atitude de pôr em causa as crenças
está relacionada com os sistemas religiosos de cada época.
O leitor pode
usar este livro para tomar conhecimento dos verbetes saborosos que aguçam a sua
curiosidade e navegar aleatoriamente na história; ou regalar-se, por assim dizer,
lendo a entrada sobre anticarnivorismo (antiantropofagia); ou ficar admirado ao
ver o antidonjuanismo impor-se como doutrina literária. As ilustrações
pertinentes favorecem esta vagabundagem ao sabor do humor, entre retratos de
personagens importantes e cenas inesperadas.
Mas este
dicionário permite também uma leitura contínua, como quem lê um ensaio, repleto
de uma série de curtos capítulos ricos em aproximações entre os valores e os
acontecimentos.
Desta
leitura, podem retirar-se duas conclusões fundamentais. A primeira é que o Dicionário dos Antis constitui uma
verdadeira história pluridisciplinar de Portugal, através de cujas entradas se
revisitam as grandes rotações do país: a reconquista, a afirmação do poder da
monarquia, os movimentos eclesiásticos, nomeadamente os Jesuítas, seguidos das
tensões coloniais e partidárias... Também se pode observar de que modo
filósofos, historiadores, juristas e sociólogos contribuíram, ao lado dos
escritores e juntamente com os políticos, para este movimento. As mudanças, até
mesmo da língua portuguesa, encontram-se nas obras pioneiras que influenciaram
o futuro do estilo académico e político. Por esta via, distingue-se claramente
como se formaram as normas do bem crer, do bem pensar, do bem agir.
Em segundo
lugar, a obra ilustra de forma notável a grande utilidade dos estudos globais aos
quais se consagra a equipa responsável por este projeto. Ao longo das suas muitas
páginas, este dicionário manifesta a extraordinária conexão de Portugal com a
história do mundo: reencontramos os contactos aventurosos dos navegadores, bem
como o desenvolvimento de uma esfera lusófona onde circulam as palavras e os discursos
de oposição; viajantes e migrantes são os promotores de uma circulação
transnacional das ideias que aparecem depois com grande vitalidade em Portugal,
provindas de paradigmas imaginados noutros países. É o caso, por exemplo, do
anticomunismo, cujas raízes remontam, no mundo ocidental, à luta contrarrevolucionária,
que atingiu o seu cume após 1917; e do antifascismo, que, nascido em Itália em
1919, se transplantou em seguida, ao ritmo da radicalização europeia, para a península
Ibérica.
No fundo, os
antis não têm fronteiras. As bibliografias que concluem os artigos são a maior
prova da variedade de referências e da diversidade da sua proveniência. O
leitor constata de que modo os argumentos passam de um país a outro, ora
alumiando um debate, ora relançando uma polémica, ora inspirando certas ondas
intelectuais em movimento perpétuo.
Não há dúvida,
por outro lado, de que o Dicionário dos
Antis vai suscitar um vasto debate internacional. Não estamos em altura de
denunciar este ou aquele grupo, mas de entrar no laboratório do pensamento
dialético, que é uma maneira de estimular o espírito crítico quando o falso, o
virtual e o verdadeiro se misturam; que é pôr em causa os erros conspirativos e
as certezas abusivas deste mundo dividido entre manipulação e informação que se
tornou o nosso.
Fabrice
d’Almeida
Professor Catedrático da Universidade de Paris II,
Panthéon-Assas
Antigo Diretor do Instituto de História do Tempo Presente
de Paris
Paris, 14 de fevereiro de 2018
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