O título deste livro é um achado. O subtítulo esclarece "39 imagens fotográficas e 36 poemas animais". Com design cuidado, o livro é um objecto artístico que une arte e ciência, inserindo-se num movimento contemporâneo que visa a aproximação das duas culturas. As fotografias são de Paulo Gaspar Ferreira, o fotógrafo e alfarrabista ("In Libris", que já fez 20 anos e que vale a pena visitar tanto pelos conteúdos como pela estética), que organizou uma magnífica exposição sobre clarabóias do Porto no final de 2015 - Ano Internacional da Luz, e que já antes nos tinha brindado com outros livros artísticos,. A cuidada selecção de poemas é de Isaque Ferreira. A paisagem sonora é de Brendan Hemsworth: sim, este livro tem música em anexo, pois a imagem da contracapa remete directamente através de um telemóvel (QR code) para um acompanhamento musical na Internet. Finalmente,
last but not least, a curadoria do projecto que deu lugar ao livro é da cientista Catarina Ginja, investigadora do CIBIO, no Porto, especialista em arqueologia animal. A ideia original consistia em fotografar vestígios arqueológicos de animais domésticos e dos seus antepassados selvagens, das colecções do Museu Geológico em Lisboa (um extraordinário, embora esquecido, Museu, junto à Academia das Ciências em Lisboa) e do Museu de São Miguel Odrinhas (outro museu que vale a pena visitar). As fotografias a preto e branco denotam um original olhar artístico sobre peças arqueológicas. O design, com um fundo preto de todo o livro, valoriza o cinzento cor de osso das peças. Nestas se inclui o esqueleto de um cão doméstico (portanto, um descendente do lobo), com cerca de 8000 anos, que é o mais antigo encontrado em Portugal. (foi encontrado no Cabelo da Arruda, em Muge, em 1880), mas, esquecido nas colecções do Museu Geológico, só foi valorizado por um artigo científico publicado em 2010. As colecções de geologia e história natural constituem hoje, num mundo científico onde a genética ganhou proeminência, um repositório inestimável, para compreender melhor a evolução e a biodiversidade, as duas indissociavelmente associadas. Alguns dos melhores geólogos e arqueólogos nacionais, começando no final do século XIX, estão envolvidos na escavação e na identificação destas peças a animais, que estão devidamente identificadas no final. O leitor que não seja especialista aprende imenso sobre zooarqueologia na introdução, ficando com vontade de saber mais. A curadora destaca pela estética falanges de cavalo da Lapa da Bugalheira, Torres Novas, que teriam sido usados como objectos de culto. Em extratexto encontram-se duas fotografias autografadas pelo fotógrafo e decerto escolhidas por ele.
Os poemas são de grandes nomes da poesia portuguesa como Alexandre O'Neill, António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Herberto Hélder, Jorge Sousa Braga, Mário Cesariny, Nuno Júdice e Sofia de Mello Breyner Andersen (a poetisa homenageada com a exposição da baleia do Museu de História Natural da Universidade do Porto).
Destaco dois poemas de O'Neill cujo lado irónico me cativa:
A ESTOUVACA
Deitada atravessada
Na estrada
A malhada
Vai ser atropelada
Foi.
Alexandre O'Neill
CÃO
Cão passageiro, cão estrito
Cão rasteiro cor de luva amarela,
Apara lápis, fraldiqueiro,
Cão liquefeito, cão estafado
Cão de gravata pendente,
Cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
Cão ululante, cão coruscante,
Cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado:
cão aqui,
cão ali, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal de poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moido de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção,
cão pré fabricado,
cão espelho,
cão cinzeiro, cão botija,
cão de olhos que afligem,
cão problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!
Alexandre O'Neill
Em resumo, o projecto, publicado pela Ex-Libris, é muito bonito, e como é costume com as obras do Paulo
que conheço, tem uma extraordinária qualidade gráfica (até o título, "Esses Ossos", imita uma espinha). Acima de
tudo a ideia é muito bonita: juntar as fotos de arqueologia animal com a arte poética de temática zoológica
parece-me absolutamente inédito. Muitos poemas falam de ciência, mas estes, falando de
seres vivos que podem ser objecto de ciência, vão muito além da ciência, entrando pela vida
quotidiana. Falam dos "animais, nossos amigos", seres vivos que julgamos conhecer, mas
cuja antiguidade, tão bem documentada na arte
fotográfica, em geral ignoramos.
O livro tem a virtude de chamar a
atenção dos felizes leitores que encontrar para a modernidade da
investigação com velhos ossos. A arte é e continuará a ser uma boa
companheira da ciência!
Quem estiver interessada na obra de arte, pode adquiri-la
aqui.
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