segunda-feira, 10 de julho de 2017
Posfácio: O que Weyl não podia saber
Meu posfácio ao livro Simetria, de Hermann Weyl, que acaba de sair na colecção Ciência Aberta da Gradiva, inaugurando uma nova subcolecção, a dos Grandes Clássicos:
As afirmações matemáticas, uma vez demonstradas, são eternas. Já as ciências físico‑naturais, embora se exprimam matematicamente, progridem à medida que se descobre a natureza. Tendo Hermann Weyl escrito o seu livro Simetria em 1951, não podia saber o que a ciência dos 66 anos seguintes haveria de trazer. As descobertas nesse domínio foram muitas e extraordinárias. Se, em 1951, a simetria era já um tema central da ciência, porque se trata de um tema central da natureza — quer as simetrias mais evidentes, como as dos cristais ou dos seres vivos, quer as mais escondidas, como as que subjazem às leis fundamentais da física — , hoje em dia é‑o ainda mais. Resumo aqui o essencial do que se ficou a saber em física e química sobre aplicações da simetria nos tempos pós‑Weyl (o grande matemático suíço faleceu, de ataque cardíaco, em 1955, escassos três anos após a publicação deste livro e poucos meses depois da morte de Albert Einstein). Por falta de espaço e de competência, não falo dos avanços das aplicações da simetria nas ciências
naturais e na biomedicina.
Weyl escreveu, a propósito da tentativa naïf de Johannes Kepler de ver uma ordem geométrica no sistema solar: «Já não procuramos a harmonia em formas estáticas como os sólidos regulares, mas antes em leis dinâmicas.» De facto, tem sido cada vez mais assim. Em 1954 os físicos teóricos chinês Chen‑Ning Yang e americano Robert Mills propuseram uma classe de teorias quânticas de campos baseadas em simetrias locais (teorias ditas de gauge ou de «invariância de calibre»). Essa ideia veio a revelar‑se extremamente frutuosa. Hoje em dia, as teorias de três forças fundamentais
— electromagnética, força nuclear fraca e força nuclear forte — , são todas elas desse tipo, quer dizer, existe uma descrição unificada dessas forças no quadro do chamado «modelo‑padrão». A força electromagnética e a força nuclear fraca foram nos anos 60 e 70 unificadas na chamada «força electrofraca» graças aos trabalhos dos físicos teóricos americanos Sheldon Glashow e Steven Weinberg e do físico teórico paquistanês Abdul Salam, reconhecidos pelo Prémio Nobel da Física em
1979 após as suas previsões de existência de bosões W e Z, análogos aos fotões da força electromagnética, terem sido confirmaadas no CERN, o grande laboratório europeu de física de partículas nos arredores de Genebra, na Suíça. Por seu lado, a força nuclear forte é também
descrita por uma teoria congénere, a cromodinâmica quântica. As partículas (bosões) que correspondem à quantificação desses campos de forças são, portanto, manifestações de simetrias.
Além dessas simetrias ditas locais, uma vez que existe uma propriedade de invariância em cada ponto do espaço, existem também algumas importantes simetrias ditas globais. Em 1956, o mesmo Chen‑Ning Yang e o físico teórico sino‑americano Tsung Dao Lee propuseram que a simetria bilateral ou de reflexão do espelho abordada no início deste livro, dita simetria P (de paridade), fosse testada para a força nuclear fraca, uma vez que já tinha sido testada para todas as outras forças. Em 1957 a física experimental sino‑americana Chien‑Shiung Wu descobriu que a força nuclear fraca violava a simetria da paridade. Quando se pensava que a combinação da simetria de carga (C), a simetria de troca de carga que faz a matéria passar a antimatéria, e da simetria P, a chamada simetria CP, poderia funcionar, os físicos experimentais americanos James Cronin e Val Fitch descobriram, em 1964, analisando o decaimento de partículas neutras chamadas «caões», que a simetria CP também é, tal como a P, violada nas interacções fracas. Como se sabia que a simetria total CPT, com T a simetria de inversão no tempo (que troca futuro e passado), tem de ser respeitada por qualquer interacção, concluiu‑se que T é também violada nas interacções fracas. Não se trata da violação da simetria no tempo observada à escala macroscópica, que nos permite distinguir o futuro do passado. Trata‑se antes de uma violação a uma escala microscópica, que não pode deixar de nos surpreender. A violação CP, que valeu o Prémio Nobel da Física a Cronin e Van Fitch em 1980, deve estar relacionada com o desequilíbrio que se verifica no universo entre matéria e antimatéria.
Se as partículas que medeiam as forças (bosões) são descritas com base em simetrias, o mesmo se passa com as partículas de matéria (fermiões). Tentando solucionar o enigma da proliferação de partículas, obtidas em aceleradores de partículas, que não podiam ser todas elementares, os físicos teóricos americanos Murray Gell-Mann e George Zweig, este de origem russa, propuseram em 1961, com base na teoria de grupos, a teoria matemática que descreve as simetrias descritas sumariamente neste livro, a existência de três partículas elementares subjacentes às partículas compostas que se
relacionam entre si por forças nucleares fortes (como o protão e o neutrão, partículas do núcleo atómico). Essas partículas ficaram conhecidas por quarks, de uma palavra do romance Finnegans Wake, de James Joyce. Tal como aconteceu com a tabela periódica, de Mendeleev, a teoria de Gell‑Mann– Zweig tinha um carácter predictivo: permitiu identificar uma partícula nova feita de quarks, que era uma combinação teoricamente possível que faltava observar. Graças à sua intuição da existência dos quarks, Gell‑Mann ganhou sozinho o Nobel da Física de 1969. A acima referida violação da simetria CP em interacções fracas teve como consequência a previsão da existência de um quinto quark, encontrado em 1995 no Fermilab, em Chicago, nos Estados Unidos. Hoje são conhecidos seis quarks.
A violação de simetria é tão importante como a simetria. Os físicos cedo se inquiriram sobre a razão por que os bosões da força nuclear fraca tinham massa (sendo a massa dos W diferente da do Z). O campo de Higgs foi proposto cerca de 40 anos antes, em 1964, pelo físico teórico britânico Peter Higgs, quase ao mesmo tempo que o seu colega belga François Englert e outros, precisamente para descrever a violação espontânea de simetria em teorias de Yang‑Mills. Hoje o bosão de Higgs, ou simplesmente Higgs, é famoso, após ter sido descoberto no CERN em 2012. A descoberta no CERN valeu o prémio Nobel da Física a Higgs e Englert em 2013.
A simetria continua a ser actualmente um dos temas centrais da física de partículas. Uma ideia muito apreciada pelos físicos dessa comunidade é a de supersimetria, que permite trocar as partículas de matéria (fermiões) e as partículas de campo (bosões). Propõe o aparecimento de novas partículas, que as buscas do CERN ainda não revelaram, apesar dos esforços intensos nos últimos anos, e que as observações astronómicas também ainda não mostraram, apesar de haver indicações da existência de matéria negra, uma matéria com massa mas que não emite luz, que ninguém sabe bem o que é. A moderna teoria das cordas persegue o sonho de Einstein de unificar as forças fundamentais numa só, que terá reinado no início do Big Bang. Einstein tentou, sem sucesso, unificar a força electromagnética com a gravidade. Depois da unificação da força electromagnética com a força fraca e com a força forte, falta ainda, para a almejada unificação final, a descrição da gravidade por uma teoria de gauge. Ora a teoria das cordas, da qual existem várias versões, é uma teoria supersimétrica que responde a esse desiderato. A sua confirmação experimental parece, porém, extremamente difícil.
No domínio muito mais terreno da matéria sólida, uma das maiores descobertas dos últimos tempos é a dos quase‑cristais. Foi seu autor o físico experimental israelita Dan Shechtman, que recebeu por essa descoberta o Prémio Nobel da Química em 2011. Weyl afirma neste livro que, «apesar de a simetria pentagonal ser frequente no mundo orgânico, o mesmo não acontece no mundo inorgânico e nas suas criações simetricamente perfeitas, os cristais». Contudo, um preenchimento de uma forma não periódica do plano por certos polígonos com esse tipo de simetria foi entretanto investigado pelos matemáticos e encontrado na natureza por Shechtman. O químico americano Linus Pauling, prémio Nobel da Química e da Paz, afirmou uma vez que «não há essa coisa dos quase–cristais, há apenas quase‑cientistas». Afinal estava enganado...
Outra descoberta importante foi a que fez o físico irlandês Dennis Weaire e um seu aluno em 1993 mostrando que havia uma solução melhor para o enchimento do espaço por sólidos do que aquela conjecturada por Lorde Kelvin de que fala este livro.
Por último, na matemática, a teoria de grupos continua em franco desenvolvimento. Um desses desenvolvimentos foi a descoberta em 1980 do «grupo monstro», o maior dos 26 «grupos simples esporádicos», um grupo a 196 883 dimensões (daí o nome!), encontrado num esforço de classificação exaustiva dos «grupos simples». Como a física é íntima da matemática, não admira que algumas versões de teoria das cordas já tenham encontrado pontes para esse grupo... Um outro desenvolvimento matemático notável, iniciado nos anos 80, foi a proposta da geometria fractal pelo matemático franco‑americano de origem polaca Benoît Mandelbrot: os objectos fractais, muito comuns na natureza, exibem simetria de auto‑semelhança, isto é, partes cada vez mais pequenas do objecto são semelhantes ao todo.
O físico teórico americano Philip Anderson, Prémio Nobel da Física em 1977, especialista em simetrias de materiais, escreveu de forma lapidar que «é apenas um pequeno exagero afirmar que a física é o estudo da simetria». A simetria está mesmo por todo o lado no mundo!
Para saber mais
Na colecção «Ciência Aberta», da Gradiva, há vários livros que tratam temas relacionados com simetrias: Heinz Pagels, O Código Cósmico (n.º 10); Manfred Eigen e Ruthild Winkler, O Jogo (n.º 28), Heinz Pagels, Simetria Perfeita (n.º 39); Paul Davies, Superforça (n.º 24); Abdus Salam, Paul Dirac e Werner Heisenberg, Em Busca da Unificação (n.º 50); Steven Weinberg, Sonhos de Uma Teoria Final (n.º 81); João Varela, O Século dos Quanta (n.º 83); Murray Gell‑Mann, O Quark e o Jaguar (n.º 86); Stephen Hawking, A Teoria de Tudo (n.º 186); Stephen Hawking e Leonard Mlodinow, O Grande Desígnio (n.º 188); Richard Feynman, QED (n.º 213). Na colecção «O Prazer da Matemática», da mesma editora, ver David W. Farmer, Grupos e Simetria (n.º 24).
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