Texto de opinião saído no Público da autoria de Madalena Homem Cardoso – Médica, escritora e activista cívica:
A única surdez, aqui, é a do poder político perante o clamor do senso comum.
Nuno cRato, com “c” mudo e com um drive yuppie análogo ao de Zeinal
Bava, escolheu o seu target para promover o portuguesing. (Esta palavra é
pesquisável no YouTube, e o resultado é imperdível!) Assistimos
manietados à falência da PT, à falência de Portugal, à falência do
português.
O target de cRato tem latitude máxima, desde o primeiro ciclo do
ensino básico, em que as crianças desestabilizam a aprendizagem da
ortografia da sua língua materna (já prejudicada pelo “acordo
ortográfico”) através dos testes escritos do Inglês obrigatório, até ao
ensino superior, com as aulas leccionadas em Inglês obrigatório (por
professores portugueses e para alunos portugueses) dos cursos superiores
com denominações em Inglês, em universidades que contam agora com uma
saloia designação “international” também, para não destoar. Assim se
pretende preparar uma geração para ser “mentalmente colonizada”.
Consenti-lo-emos?
Uma nódoa “assertiva” e “pró-activa”, que “implementa” coisas, pode
ter barbas. Neste caso, tem barbas (em ambos os sentidos), e estará há
muito em estado demissionário-vegetativo, mas consegue manter um esgar
vagamente sorridente, invertebradamente autista.
Diante disto, resta a uma cidadã indignada atrever-se a abrir algumas
“caixas de Pandorra” (cRato dixit “twice”!). Se não resgatar o
património colectivo que mais valoriza (o Português-padrão
consuetudinário), pelo menos conservará intacto o seu mais precioso
património individual (uma consciência tranquila). Importa ver além da opacidade das paredes dos gabinetes das Avenidas 5
de Outubro e 24 de Julho…
Para as questões relacionadas com o ensino da
Língua Portuguesa, cRato socorre-se da opinião de duas linguistas, cada
uma delas gerindo “feudos próprios” há muito instalados no Ministério
da Educação. Uma delas é Inês Duarte, com uma grande quota de co-autoria
na TLEBS (Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e
Secundário), sigla para o monstro, ora ligeiramente atenuado (em versão
revista), que ainda persiste em pretender substituir a gramática
tradicional, para desgraça dos alunos. A outra é Maria Helena Mira
Mateus, à frente do ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e
Computacional), instituto universitário incumbido pelo Governo de
produzir um “acordês oficial” em constante reformulação.
Estes “feudos” envolvem poder, envolvem empregos, envolvem subsídios
e… envolvem fazer concessões. Inês Duarte pugna pela TLEBS, mas abomina o
“acordo ortográfico”. Maria Helena Mira Mateus produz o “acordês
oficial” deste reino sem rei nem roque, mas abomina a TLEBS. A solução
para as objecções de ambas foi simples: um pacto de não-agressão. Assim,
no lodo, florescem ambas as monstruosidades e “atola-se” a aprendizagem
e o ensino do Português. «Tu não te opões ao ‘acordo’, eu não me oponho
à TLEBS…», e vice-versa. cRato sabe bem disto, cuja lógica matemática é
linear. Não se trata de um matemático ultrapassado por duas linguistas,
não, é ele o ministro. Apenas se demite, demite-se do seu dever, mas
não sai de cena.
cRato sabe igualmente que o Ministério da Educação e a aprendizagem
do Português nas escolas estão reféns da multimilionária negociata dos
livros escolares, cujo monopólio pertence a dois grandes grupos
editoriais (apesar da multiplicidade de chancelas sob as quais os
manuais são dados à estampa): o Grupo Porto Editora e o Grupo Leya.
Trata-se de gastos avultados e inadmissíveis que as famílias são
coagidas a fazer. Se estas não puderem, há sempre o dinheiro dos
contribuintes, através da Acção Social Escolar. Os interesses instalados
é que não podem ser incomodados. cRato não perturba este saque anual,
não institui o livro único por concurso público, demite-se quanto a isto
também, mas não arreda pé.
Quem ouviu o actual Presidente da República fazer um discurso
inolvidável sobre produtos “láteos” patrocinado pela Nestlé, quem soube
da proposta da actual presidente da Assembleia da República de que este
órgão de soberania arranjasse patrocinadores para as comemorações
oficiais do 25 de Abril, em 2014, não poderá de forma alguma abismar-se
ao ver (como eu já vi) uma embalagem de Chocapic numa roda-dos-alimentos
afixada numa escola primária algures em Portugal.
Em 2014, cRato resolveu privatizar o Iave (Instituto de Avaliação
Educativa), ou seja, dar autonomia administrativa a este organismo, que,
por sua vez, diligenciou a obtenção de patrocínios para o “PET”
(Preliminary English Test), um exame obrigatório no 9.º ano de
escolaridade, após uns anos de estudo obrigatório de uma língua
estrangeira específica pelas crianças portuguesas (enquanto a língua
nacional é delapidada activamente). Onde pára a soberania?
Desconfio que, na óptica destes patrocinadores e da “tutela” que
subsidiam, “pets” (animais de companhia) são as crianças deste país de
gente passiva, são os futuros eleitores, já potencialmente amestráveis a
existir num vácuo cultural de negação de si mesmos sob os auspícios de
qualquer idioma franco que esteja “em alta” nos mercados globais.
Os patrocinadores do “PET” são a Universidade de Cambridge, o banco
BPI, duas empresas de software (a Connexall e a NovaBase – “like life”
–, portuguesíssima da Silva) e, claro, a Porto Editora. Esta está em
todas, faz mesmo questão.
A globalização iniciada por Vasco da Gama foi a do encontro de
culturas, não foi esta com que nos deparamos, a da massificação, a da
fast-food. Em Agosto passado, tivemos a Porto Editora em megapromoção
nos individuais de papel dos tabuleiros, nos McDonald’s: poupe dinheiro,
faça já a encomenda dos livros escolares dos seus filhos através da
Wook (empresa do grupo Porto Editora) e tenha grandes descontos! Eis o
local escolhido pela empresa que mais lucra com a educação dos nossos
filhos, nesta cultura do descartável, do consumismo, do facilitismo…
Nenhum local poderia ser mais adequado, de facto.
Nós, pais, sabemos que todas as tabelas dos manuais escolares
adoptados para cada ano de escolaridade, em cada ano lectivo, afixadas
em cada escola, têm em comum um importante “pormaior”: o asterisco que
remete para a recomendação de adquirir o manual apenas após confirmação
da necessidade deste pelo professor da disciplina. Com promoções destas,
a Porto Editora pretende retirar aos professores uma liberdade que
ainda têm: a de não adoptar nenhum manual, a de utilizarem os seus
próprios materiais para cumprir os programas que lhes são impostos.
Não nos espantaremos quando tivermos governantes fazendo conferências
de imprensa em cenários revestidos com logótipos, como sucede no
futebol. Falta pouco. Parece que não há “dignidade do Estado” (?) capaz
de se sobrepor à força do dinheiro.
O Iave, em comunicado recente, veio insurgir-se contra quem afirmou
poder o uso do português costumeiro pelos alunos implicar um desconto de
quatro valores (em 20) nos próximos exames nacionais de 12.º ano,
dizendo que se trata de uma improbabilidade. Ora, se se tratasse de uma
impossibilidade, o Iave afirmá-lo-ia. Não o fazendo, paradoxalmente, vem
confirmar as alegações que pretendia contestar, mas já se sabe da
incompetência científica que por lá grassa. A colecção de erros crassos
da PACC (Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades) de Física,
por exemplo, veio demonstrá-la à exaustão, se dúvidas ainda houvesse.
Entretanto, saúda-se a novíssima Associação Nacional de Professores
de Português (Anproport). Finalmente há, assim, uma alternativa credível
à famigerada APP (Associação de Professores de Português) da inefável
Dona Edviges das “ações de formatação em acordês”, segundo a qual os
professores não serão pagos para pensar, mas sim para acatar
acriticamente as ordens da tutela, tutela essa que subsidia as “ações de
formatação” e convoca a Dona Edviges para a “informar” sobre o que os
professores de Português… não pensam.
A APP não divulga o número de associados, o que não se estranha,
poderia alguém aferir da sua (não) representatividade. Com a
recém-criada associação, certamente essa representatividade agora
existirá, ouvir-se-ão vozes legítimas e extra-sindicais na defesa do
ensino e da aprendizagem da Língua Portuguesa. Há luz ao fundo do túnel,
os professores não se demitem.
Fora de brincadeiras tragicómicas muito sérias e sentidas, como as do
título deste artigo, e a despeito do que dizem por aí, não há nem nunca
houve “consoantes mudas”, porque as consoantes pertencem à escrita, não
à fala. Todas as consoantes se lêem, mas nem todas se dizem ou, se se
dizem, dizem-se de tal forma que não se ouvem ou mal se ouvem. No
máximo, seriam portanto “consoantes surdas” cujo lugar visual numa
língua de matriz europeia, antiga, logo supostamente civilizada, não
pode estar em causa.
A única surdez, aqui, é a do poder político perante o clamor do senso
comum. A única mudez, aqui, é a que resulta da inexistência de
verdadeira representação popular nesta pseudo democracia partidocrática
perante a qual a própria consciência individual dos actores políticos,
seja no Governo, seja na Assembleia da República, de pouco ou nada
parece valer-nos.
Aquando da carta aberta que lhe dirigi, fez agora três anos, tive
ocasião de falar com cRato em privado. Não digo o que me disse, nem o
que lhe respondi. Venho pública e repetidamente chamar-lhe cRato e, para
melhor compreensão, três anos volvidos, acrescento no inglês mais
português e imperativo de que sou capaz: “Prove me wrong!”
Madalena Homem Cardoso
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