quinta-feira, 16 de abril de 2015

O chocolate não engorda? Os mal-dispostos vivem mais tempo? Cuidado com a pseudociência

Artigo da jornalista Matilde Torres Pereira, com declarações de Carlos Fiolhais e minhas, publicado no sítio da Rádio Renascença.

Eles estão por todo o lado. Há "estudos recentes" que nos dizem que tomar café faz bem e outros que garantem que faz mal; que comer chocolate afinal não engorda; que sorrir muito prolonga a esperança média de vida; que os noctívagos são mais inteligentes do que os outros; que as pessoas com mau feitio vivem mais tempo. 

Todos os dias lemos notícias como estas: a ciência está, aparentemente, em todo o lado. A internet e as redes sociais dão uma ajuda. 

"Há muitos estudos que se tornam populares porque as suas conclusões vão ao encontro daquilo que já pensamos. E sentimo-nos muito inteligentes", diz David Marçal, autor do ensaio "Pseudociência" (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014). 

Para o cientista, estes estudos enquadram-se na "ditadura do engraçadismo", em que se procura "simplesmente fazer notícias engraçadas vagamente relacionadas com ciência". 

O problema, para Marçal, é que muitas vezes essas notícias limitam-se a fazer eco de um estudo, apresentando uma única fonte, sem qualquer tipo de espírito crítico, contraditório ou contextualização. "Imaginemos que falávamos sobre a economia em Portugal e dávamos como adquirido aquilo que diz a ministra das Finanças – não púnhamos isso num contexto, mas dizíamos que era assim. Não faria sentido, assim como não faz sentido ter uma notícia de ciência apenas com uma única fonte, um único artigo científico." 

"Olhar para um único artigo científico é mais ou menos como escolher o destino de férias ao olhar para um único postal ilustrado", aponta Marçal. "Se eu decidir ir para Albufeira de férias porque vi um postal da praia de Albufeira deserta ao pôr-do-sol, possivelmente, se for para lá em Agosto, apanho uma desilusão. Tenho de reunir mais dados, ver a paisagem toda, não posso apenas centrar-me no postal ilustrado." 

Carlos Fiolhais, físico e professor universitário, também é crítico. "Na internet encontra-se uma coisa e encontra-se o seu contrário", avisa. "O resultado de um artigo científico não é absolutamente seguro, tem de haver outros que confirmem aquilo que foi dito. E muitas vezes aquilo que vale para uma certa população já não vale em certos domínios, por exemplo, na alimentação ou na saúde". 

Um estudo que recentemente foi notícia garantia que os "pais que lavam a loiça criam filhas profissionalmente mais ambiciosas". Carlos Fiolhais vê nisto um "disparate": "A igualdade de género é uma coisa que se pratica em casa, se não se praticar em casa não se transmite aos filhos. Mas isso é algo que é trivial, não é preciso um estudo científico. A partir de um inquérito dizer que os pais que lavam a loiça criam filhas mais ambiciosas já entra no domínio do disparate." 

"Eurekas" e mais "eurekas" 
Um campo onde abundam notícias sobre suposta ciência é o da alimentação. 

"A nutrição é um campo delirante", confirma David Marçal. "Há uma série de pessoas que estão fortemente empenhadas em dividir todas as substâncias do mundo em dois grupos: ou que causam cancro ou que curam o cancro. E, às vezes, as substâncias saltam de um para o outro semanalmente." 

E essas informações podem não ser inócuas. "Os riscos dos produtos naturais são reais. Têm efeitos", adverte o cientista. "Basta pensar que a cocaína é um produto natural, que a cicuta é um produto natural, não é por isso que são inofensivas. Se entrarmos na Amazónia e nos pusermos a ingerir plantas ao 'calhas' podemos correr riscos sérios. Mais: existem riscos de interacção de produtos naturais com outros medicamentos."

Não faltam notícias de estudos que apontam para conclusões bombásticas ("trabalhar demais engorda", "fazer jogging em demasia faz mal", "emoções positivas" – ou o já citado mau feitio – "prolongam a esperança média de vida"…). 

Nestas notícias, diz Marçal, a "ciência é tratada como um conjunto de curiosidades avulsas em que tudo é possível. É uma representação retorcida da ciência; é a ciência como uma caixa negra de onde saem conclusões mirabolantes." 

"Retratam a ciência como um conjunto de 'eurekas' mais ou menos aleatórios que vão surgindo inesperadamente aqui e ali. Essa imagem da ciência é um campo fértil para semear ideias pseudocientíficas", aponta David Marçal, que sublinha também o fenómeno das notícias sobre "ciência" em que as fontes são os próprios jornais e que se propagam a citarem-se uns aos outros. 

Um exemplo é do famoso dia mais deprimente do ano, uma notícia que aparece todos os anos na comunicação social. 

"Segundo a versão original, terá sido a conclusão a que chegou um psicólogo escocês através de uma fórmula e claro que essa fórmula é inventada – ele até já disse que a inventou por encomenda de uma empresa de agências de viagens para estimular as viagens no Inverno, quando as pessoas estão deprimidas", diz o ensaísta. "Essa notícia já existe há dez anos e a fonte é sempre: uma notícia do 'Guardian'…" 

Um bocadinho de cepticismo, s.f.f. 
"Este bombardeamento numa sociedade mediatizada é inevitável. O que não é inevitável é nós acreditarmos em tudo", considera Carlos Fiolhais, um dos mais conhecidos divulgadores de ciência em Portugal. 

"Gostaria muito que em Portugal as pessoas fossem menos crédulas. Por exemplo: 'Cientista da NASA diz que as pulseiras Power Balance mantêm o equilíbrio'. Isso é pura pseudociência. Faz-se passar ciência, mas não é – tem todo o aparato, porque aparece um cientista, uma bata branca, fala-se de teoria quântica e coisas modernas. E muitas pessoas compram essas pulseiras e coisas do mesmo género. É a chamada banha da cobra", afirma. 

"O único antídoto para a pseudociência e para as pessoas não se deixarem enganar por logros é de facto a cultura científica", diz Marçal. 

"Temos de usar o nosso espírito crítico", conclui Fiolhais. "A única maneira de nós nos protegermos é ter cuidado, verificar a fonte, quem diz o quê e porque é que diz o que diz."

1 comentário:

Anónimo disse...

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