segunda-feira, 27 de abril de 2015

A INTERDISCIPLINARIDADE DA CULINÁRIA


Novo texto de Galopim de Carvalho:

Quem, como eu, desde sempre curioso dos saberes da cozinha, entre muitos outros do dia-a-dia do cidadão comum, acabou por fazer vida entre a comunidade científica, tem matéria para divagar em torno dos muitos pontos de ligação existentes entre os sabores da cozinha e os saberes, tidos por eruditos, cultivados por esta comunidade. Sabores e saberes andam assim de mãos dadas e até porque saber é conhecer mas também é ter sabor. 

No domínio das ciências humanas, como a história, a geografia, a etnografia, a sociologia, a pedologia a gricultura e silvicultura, são particularmente evidentes as profundas ligações entre os respectivos saberes e os sabores próprios dos hábitos alimentares das populações ao longo dos tempos e nas várias latitudes e longitudes. 

Uma rápida passagem sobre a multitude dos “cheiros” e “temperos”, das hortaliças, dos cereais e de tudo o mais que consumimos entre os produtos vegetais, basta para evidenciar a grande e imediata ligação entre os saberes da botânica e os sabores dos nossos cozinhados. Poderia começar por evocar Garcia de Orta, contemporâneo das Descobertas e de Luís de Camões, e falar da sua contribuição na introdução das ervas aromáticas do oriente na cozinha regional do Alentejo. Grande botânico, este alentejano de Castelo de Vide é igualmente conhecido entre os mineralogistas pelas referências às pedras preciosas (gemas) que nos deixou no seu livro “Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia”, publicado em Goa, em 1563. Dentro desta ciência poderiam os seus cultores dissertar sobre a fisiologia e a bioquímica do mundo vegetal e das implicações de toda essa fenomenologia nas sensações que nos atingem o cérebro através da pituitária e das papila
s gustativas. O raminho de hortelã escaldado nas “sopas da panela” e o aroma que, de imediato, se espalha no ar tem por base essências elaboradas pela respectiva planta e que são diferentes das dos orégãos, dos poejos, da hortelã da ribeira, do louro, dos cominhos e do alho de todos os dias. E a couve do caldo verde, o feijão da feijoada, a alface, o pepino e os pimentos das saladas, a cebola e o tomate das ceboladas e tomatadas, não são todos eles produtos do “Reino Vegetal”? E o azeite, o vinho, o pão de milho, de trigo ou de centeio, não são eles parte desse grande reino?

 No que se refere à zoologia, outro grande domínio do mundo biológico, são igualmente imediatas as associações que se podem fazer entre a gastronomia e o saber que aqui se cultiva. Nesta ciência o difícil é seleccionar os exemplos, tantas são as fantasias alimentares dos habitantes dos quatro cantos do mundo. Das tradicionais “tripas” à moda do Porto, à expectativa de risco para a saúde face ao espectro da tão falada encefalopatia espongiforme bovina ou “doença das vacas loucas”, das perfumadas e gostosas sardinhas na brasa e dos benefícios da respectiva gordura na regulação do colesterol, à caldeirada comida ali, na fragata, a meio do Tejo e a saber a maresia, muitos são os pontos de conexão entre o “Reino Animal” e muito daquilo que comemos. 

Aos químicos, também eles com “muito pano para mangas” numa dissertação deste teor, não faltam temas. O sal, cujo valor na culinária ficou glorificado no conto da princesa que, à pergunta que o rei lhe fizera e às irmãs, respondeu “Eu quero tanto ao meu pai, como a comida quer o sal...”, é cloreto de sódio, um apenas entre os ácidos, as bases e os sais da ciência, mas também os da poesia de António Gedeão (ou Rómulo de Carvalho). Os ácidos oleico e acético têm total cabimento no portuguesíssimo bacalhau cozido ou nas saladas bem temperadas. Carbo-hidratos, lípidos e prótidos, álcoois e aldeídos, e suas propriedades organolépticas, isto é, os seus odores e sabores, a sacarose, bem docinha, em excesso no pacotinho de açúcar e a cafeína que faz a delícia da “bica”, dois perigos para a saúde, mas também dois prazeres, têm aqui o seu espaço. Todos estes produtos e muitos mais, e as reacções que possibilitam, fermentação, hidrólise, oxidação, redução, etc., são a ponta do iceberg da participação dos saberes da Química na arte de cozinhar. 

Os físicos têm, aparentemente, menos por onde se movimentar e tal acontece apenas porque as ligações dos seus saberes aos sabores não são tão evidentes. Podem explicar o aquecer e o arrefecer, condução e convecção térmicas, gelo e degelo, a fervura e as diferenças entre cozer e assar. Podem discorrer acerca do verde da alface e das couves, do vermelho do tomate e das beterrabas, do laranja da cenoura ou do amarelo do limão, outros tantos “sabores” para os olhos, cores estas que sabem explicar pelo conhecimento que têm da natureza policromática da luz branca e do modo como os corpos lhe absorvem algumas das suas radiações. Podem, ainda, a partir da sempre apetitosa “tarte de maçã”, fazer a ponte para a gravitação universal que Isaac Newton tão bem explicou no séc. XVII, ou ainda aventar que esta era a sobremesa preferida de Albert Einstein e criar assim pretexto para falar da obra de uma das figuras mais ilustres da humanidade, não só como físico, mas também como homem. 

No domínio do conhecimento em que profissionalmente me envolvi, tirando as águas minerais ou de mesa, não são muitos os temas de índole geológica que permitam a continuação do exercício que tenho vindo a fazer. O sal do nosso saleiro, cujo uso não é demais acautelar, produzido nas salinas à beira-mar, praticamente não difere do sal-gema que se explora em Loulé e Matacães. Intercalado nas séries sedimentares da base do Jurássico, este mineral testemunha um tempo, há cerca de 200 milhões de anos, em que a Eurásia ainda estava unida às Américas e se começou a esboçar o que é hoje a parte norte do Oceano Atlântico. O perfumado cozido que se faz nas caldeiras das Furnas, em S. Miguel, num ambiente marcado pelos odores do gás sulfídrico das fumarolas locais, só é possível graças à actividade vulcânica ainda existente nas ilhas açorianas e à energia geotérmica com ela relacionada, dois temas indesligáveis da dinâmica interna do globo terrestre, hoje bem explanada na Teoria da Tectónica de Placas. Saberes acerca de rochas e sabores com elas relacionáveis, só se forem os possíveis de abordar a propósito dos tão apreciados “nacos na pedra”, posto que há rochas boas para o efeito, como é o caso do basalto, que suporta bem a elevada temperatura a que tem de ser aquecido, outras más, como são o mármore e o calcário, que se decompõem facilmente pelo calor, e outras assim-assim, com é o vulgaríssimo granito. Mas se se optasse por dissertar em torno do gás natural, que consumimos no fogão, ou das matérias-primas com que se fabricam os barros, faianças e porcelanas,  os vidros, os tachos e panelas de ferro, de cobre ou de alumínio, os talheres, desde os vulgaríssimos “inox” aos christofle ou aos de prata, os estanhos, os cristais e todos objectos das cozinhas e das mesas de pobres a ricos, ter-se-iam de referir os combustíveis fósseis, a 
calcopirite, a cassiterite, o quartzo, o caulino e outras argilas, o bauxito e um nunca mais acabar de minerais e rochas.

Galopim de Carvalho

2 comentários:

Anónimo disse...

Enfim...

Cisfranco disse...

Muito bom o texto do autor, como são todos os de sua autoria.É uma delícia lê-lo como era também ouvi-lo. Que muitos escreva Prof. Galopim de Carvalho !

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