domingo, 6 de abril de 2014

Sobre a educabilidade

Sobre os fins da educação escolar (formação técnico profissional e/ou Ser) um extracto de um artigo de grande interesse de Fernando Evangelista Bastos, publicado na área de Filosofia da Educação.

“Se noutros tempos se via no carácter de educabilidade da natureza humana a possibilidade de o homem se tornar homem pela acção da educação, como o entendia, por exemplo Kant – e por conseguinte a escola visava fundamentalmente o progresso moral –, hoje o termo é entendido como a capacidade de um indivíduo reagir positivamente às ofertas de informação e de formação para a sua qualificação técnico-profissional, como possibilidade do ser humano aprender e de se modificar. Ou seja, a educabilidade como hoje ela é pensada na nossa sociedade está mais próxima de uma componente da política de gestão da força de trabalho. 

Talvez por isso mesmo a escola tenha vindo a perder essa matriz de formação do carácter, preocupando-se em demasia com a dimensão de competências intelectuais e profissionais. Mais uma vez a escola assume, mesmo que implicitamente, o carácter reprodutor de uma realidade cada vez mais totalitária. A escola dos nossos dias já não reproduz valores: reproduz apenas informação. Informação que, sendo a maior parte dos casos não significativa, precisamente porque o aluno não compreende a sua utilidade para o seu presente ou para o seu futuro, acaba também ela por não se perpetuar no e para além do tempo lectivo (…). 

O homem que apenas adquire conhecimentos técnicos soçobra perante o mundo; pode compreendê-lo mecanicamente, mas perde o encanto da fruição ontológica (…). A democracia do nosso e do tempo futuro implica um sistema educacional que vá além do técnico; para além da memorização dos factos ou de uma aquisição de habilidades motoras (…). 

Se, por um lado, é reconhecida a manifesta vertigem da mudança, que caracteriza a sociedade do presente, por outro, a educação continua a ter como paradigma, a ideia de que está ao serviço da sociedade e da integração do individuo. Ainda assim, de forma a reproduzir o capital cultural legitimado, mesmo que esse capital varie de acordo com os interesses temporais das sociedades. Basta que, para isso, o legitimado possua a correspondente conotação o positivo. Esta fórmula permite transmutar a endoutrinação em formação; a manipulação em libertação; a passividade em autonomia.

A escola permanece deste modo refém de uma utopia pretérita, que, desactualizada e imutável, perdeu capacidade de sedução. Para uma parte significativa dos alunos, a escola já não é atractiva ao ponto de contribuir para a construção do seu futuro; também já é lugar explícito de formação para os valores, não só porque as escolas se transformaram em espaços técnicos de acesso a cursos técnicos (…), mas também porque, tendo-se constatado esta situação, logo se procurou formalizar disciplinarmente essa função, o que tem levado ao alheamento, por saturação dos alunos.

O sistema educativo deve saber ultrapassar o carácter instrumental de uma qualificação para a vida activa, não que esse objectivo não seja importante, mas porque aí reside o seu domínio mais básico, porque se circunscreve ao estritamente utilitário e praxeológico. Este domínio tem permitido transformar o mundo da técnica mas não o mundo do ser. Quando olhamos para registos da história e das suas paisagens e o comparamos com o presente, verificamos que o mundo se transformou, demonstrando deste modo a eficácia dessa aprendizagem instrumental, mas quando olhamos para o homem e consequentemente para a humanidade actual, confrontando-nos inevitavelmente com o passado não superado.”

Referência completa:
Bastos, F.E. (2006). A educabilidade como limiar de endoutrinação e da reprodução. Itinerários de Filosofia da Educação, n.º 3, 159-178.

6 comentários:

Anónimo disse...

Os modismos, o frenético da popularidade é a única coisa que realmente muda, mudou e irá mudar, é a essência do efémero e é algo de menor importância. Para quê alterar a educabilidade? A visão moral é tanto maior quanto maior o fluxo de modas. A Tecnologia é só mais uma moda fruto da sobrevalorizada crença da capacidade das ciências naturais resolverem todos e quaisquer problemas da humanidade, inclusive sobre o processo educativo. Já tivemos tempo para verificar a irrealidade desta crença, insistir nesta via apenas trará remorsos.

Anónimo disse...

Errata:
"A visão moral é tanto maior quanto maior o fluxo de modas."
deve ler-se:
A visão moral é tanto mais necessária quanto maior o fluxo de modas.

Ettyca disse...

Gostaria de saber que legitimidade tem a escola para formar o caráter seja de quem for, quero dizer, que personalidades pululam por lá aptas para a mestria da formação do Ser?
A escola deve ser altamente técnica e utilitária. Os professores não têm nada que transmitir aos alunos o seu sentido de moralidade, amoralidade ou imoralidade e muito menos cumprir a moralidade curricular/governamental principalmente se for contra tudo aquilo em que acreditam.
Os pais que resolvam o problema da ética humana já que nunca ninguém o conseguiu resolver por decreto ou religião.

Anónimo disse...

Pois Ettyca, isso que propõe está mal colocado e é perigoso, além disso está a ser aplicado na prática, infelizmente nada de utilitarista funciona sem ter uma moralidade, uma espiritualidade, uma base, uma crença subjacente, chame-lhe o que quiser. Nem todas as crenças são igualmente benéficas para os indivíduos, creio que deve ter consciência disso. A moralidade pratica-se, transmite-se e defende-se, essa é a experiência das civilizações.

Quem é o Estado? Nós não somos certamente, trata-se de um truque de magia (um engano, uma ilusão) para que agendas ocultas se metam entre a criança e os pais. Os credores dos Estados através do controlo da moeda estão interessados em destruir a unidade familiar tradicional do ocidente, por isso, a sua proposta é verdadeiramente má, porque entrega o ouro ao bandido.

Mural disse...

“A moralidade pratica-se, transmite-se e defende-se, essa é a experiência das civilizações.”

A experiência da civilização, isto é, da humanização do animal, do progresso (ou do que lhe queiram chamar) tem sido a corrupção e a degradação, sendo que o bandido há muito que tem o ouro e não vejo que as civilizações atuais se encontrem mais moralmente sadias do que no tempo em que comiam com as mãos, não se lavavam, cuspiam para o chão e praticavam todo o tipo de naturezas humanas. E já estiveram bons líderes no poder, cheios de boas intenções em constante exercício dos tais valores morais em nome dos quais se puniam culpados e inocentes que é o que acontece com a quimioterapia.
Depois, a biblioteca inteira não cabe num só livro, a igualdade é impossível e a moralidade não passa de um animal baralhado, pastoreado por vários estrábicos para um sítio que não se sabe bem onde fica. A ditadura é asfixiante e pobre, a democracia é decadente e medíocre, a anarquia é um palhaço confuso, a monarquia um pavão com uma coroa acima da testa e uma bandeira espetada no cume de um deus aristocrático, a oligarquia sei lá o que é e a liberdade é um pássaro que não tem por onde voar no meio de tantos pássaros, todos debaixo de um céu cinzento de asas.
A ética deve ser espiritualmente racional, asséptica. Causa e consequência - justiça. Laica. Funcional. Onde todos caibam dentro do mesmo lema “Respeita-te respeitando os outros” – verdadeira espiritualidade de aceitação da diversidade, sendo que, como todos sabemos, a diversidade não é aceitável porque ocupa sempre o espaço do outro, físico e mental. O respeito é das coisas mais difíceis e é por isso que não há respeito. E sem respeito não há o Outro e sem o Outro não há Nós e sem Nós não há Eu e sem Eu não há nada. É também por isso que não há nada. Que o que há é realmente nada.

Carlos Ricardo Soares disse...

A aprendizagem dos valores, paradoxalmente, é (pode ser) um factor de agitação, indisciplina, descontentamento, decepção, revolta... A civilização não é pacificadora, justamente porque o mundo está nas mãos de quem não faz o que deve e não olha a meios para fazer o que quer, podendo.
A aprendizagem dos valores é o que há de mais subversivo, não porque favoreça uma vida de acordo com os mesmos, mas porque põe a nu o problema de as pessoas serem ou não capazes, quererem ou não quererem, serem ou não serem obrigadas, a conformar as suas condutas com esses valores.
O Estado, infelizmente, está numa crise plena, no que a valores respeita e, no entanto, arroga-se o monopólio da coação que, não sendo arbitrária, institucionaliza e consente (quando não promove) políticas "loucas" e "vertiginosas" para lado nenhum, mas tudo à volta do dinheiro, o valor último.

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