domingo, 24 de novembro de 2013

O EXTINTO ENSINO PROFISSIONAL, EÇA DE QUEIROZ E A DOUTORICE



“Existe uma erótica do novo, o antigo é sempre suspeito.” 
(Roland Barthes, 1915-1989)

Noticiado no De Rerum Natura, no passado dia 12 deste mês, promoveu a Fundação Francisco Manuel dos Santos um ciclo de conferências sobre o ensino profissional. Sinal evidente de interesse por uma temática (sobre a qual eu aqui tenho publicado vários post’s) vítima do mito de ser esta espécie de ensino destinado a cábulas ou filhos de pais de estrato económico baixo.

Pelo que posso testemunhar, tomando o exemplo do início da minha saudosa docência na Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques, dois professores licenciados do respectivo corpo docente aí matricularam, em  escolha preferencial, seus filhos que, como tantos outros colegas, vieram, mais tarde, a completar cursos superiores.

Quase diria, perspectivaram, esses docentes, avant la lettre, a Teoria das Inteligências Múltiplas (1983), da autoria de Howard Gardner, professor de Cognição e Educação na Universidade de Harvard. Ensina-nos, com essa teoria:
“Chegou a hora de alargar a nossa noção do espectro dos talentos. A contribuição mais importante que a escola pode fazer, para o desenvolvimento de uma criança, é ajudar a encaminhá-la para a área  onde os seus talentos lhe sejam mais úteis, onde se sinta satisfeita e competente. É um objectivo que perdemos completamente de vista. Em vez disso, submetemos toda a gente a uma educação em que, se somos bem bem-sucedidos, a pessoa fica preparada para ser professor universitário. E, ao longo do percurso, avaliamos toda a gente de acordo com esse estreito padrão de sucesso. Devíamos passar menos tempo a classificar as crianças e mais tempo a ajudá-las a identificar as suas competências e dons naturais, e a cultivá-las. Há centenas de maneiras de ser bem-sucedido e muitas capacidades que nos ajudarão a lá chegar.”
Ora, este um dos males deste país, em que se confunde democratização com mediocratização do ensino superior. E em que a falta de adorno do grau de licenciado universitário (e o respectivo tratamento por “dr. ou engenheiro") amargura políticos dele carenciados por se sentirem diminuídos no seu estatuto social. Esta doutorice leva os pais de poucas posses a sacrificarem-se para os seus filhos terem um a canudo (nem que levem o dobro do tempo em alcançá-lo por falta de “massa cinzenta” ou vocação), não poucas vezes hoje, passaporte para o desemprego. Dessarte, como escreveu Isidro Alves, antigo reitor da Universidade Católica, “prepararmos pessoas para o desemprego é prepararmos pessoas para lutas sociais” (Diário de Notícias, 19/10/96). E este facto mais se agrava hoje em dia em que existem, por tudo quanto é canto, escolas ,ditas, superiores, quais padarias licenciadas que lançam para o mercado pão de má qualidade e mal cozido.

Idêntica razão assistiu a Francisco de Sousa Tavares em reconhecer: “Estamos a formar não um país de analfabetos, como até aqui, mas um país de burros diplomados!”. O reflexo deste statu quo reflecte-se negativamente na sociedade portuguesa em que se assiste a uma despudorada obtenção de canudos de licenciatura, ou mesmo doutoramento, em escolas d’aquém e além fronteiras de duvidosa qualidade e seriedade, para satisfazer o ego dos seus possuidores, mesmo que em detentores de cargos ministeriais.

Mas nada disto é novo. Num Portugal em que, no estertor da monarquia, a atribuição de títulos de nobreza  eram atribuídos ou vendidos a granel, em crítica mordaz escrevia Almeida Garrett ( ironicamente, anos mais tarde, ele próprio, agraciado com o título de visconde!): “Foge cão, que te fazem barão! / Para onde, se me fazem visconde?”.

E porque, como escreveu T.S. Elliot, “o tempo passado e o tempo presente, fazem todos partes do futuro”, nesta  III República, que leva algumas dezenas de  anos de vida, em paráfrase adaptada aos tempos que correm, escrevi: “Foge gato, que te dão o bacharelato! Para onde, se me fazem licenciado?” (Diário de Coimbra, 26/07/2001).

Anos atrás, no jeito bem nosso de complicar as coisas simples, ou em mesmo as viciar, a língua de Shakespeare, uma espécie de Esperanto dos nossos dias, foi abastardada pelo  “Processo de Bolonha” que adoptou, contra ventos e marés, o grau de licenciado para o 1.º ciclo de estudos do ensino universitário nacional, ou mesmo politécnico, como que a modos de uma arrevesada retroversão para português da palavra inglesa “bachelor”. Licenciatura abastardada porque, segundo Adriano Moreira, “sem o prestígio da Universidade que lhe deu a primeira credencial de título académico nobilitante”.

Pelo deslumbre do outro lado do Atlântico por títulos académicos, Eça de Queiroz, escritor da minha predilecta leitura, farpeava “a velha Tolice Humana com cabeça de touro”, com a elegância de um Manolete e sua “suerte de matar”. Em prosa intitulada “Brasil dos Doutores”, escreveu ele:
“Bem cedo, do Brasil, do generoso e velho Brasil, nada restou nem sequer brasileiros, porque só havia doutores – o que são entidades diferentes. A Nação inteira se doutorou. Do norte ao Sul do Brasil, não há, não encontrei, senão doutores! Doutores, com toda a sorte de insígnias, em toda a sorte de funções! Doutores, com uma espada, comandando soldados; doutores com uma carteira fundando bancos; doutores, com uma sonda, capitaneando navios; doutores com um apito, dirigindo a polícia; doutores com uma lira soltando carmes; doutores com um prumo, construindo edifícios; doutores com balanças, misturando drogas; doutores, sem coisa alguma, governando o Estado. (…) E este título não é inofensivo: imprime carácter. Uma tão desproporcionada legião de doutores envolve todo o Brasil numa atmosfera de doutorice”.
Em herança de Terras de Santa Cruz, Portugal tem os seus “doutores da mula ruça”, expressão jocosa herdada do alvará passado por D. João III para que um indivíduo de Évora, de nome António Lopes, sem diploma que o habilitasse, pudesse exercer medicina à luz do dia. Assim, nesta República, os alvarás régios de atribuição de “doutores da mula ruça” passaram a ser substituídos por diplomas de “doutores e engenheiros”, passados por escolas universitárias ou politécnicas privadas  de duvidosa qualidade, com uns tantos deputados “sentados de cócoras” em S. Bento, pedindo eu de empréstimo a crítica mordaz do autor de Os Maias.

3 comentários:

Anónimo disse...

Noticiado no De Rerum Natura, no passado dia 12 deste mês, promoveu a Fundação Francisco Manuel dos Santos um ciclo de conferências sobre o ensino profissional. Sinal evidente de interesse por uma temática (sobre a qual eu aqui tenho publicado vários post’s) vítima do mito de ser esta espécie de ensino destinado a cábulas ou filhos de pais de estrato económico baixo.

Pois, lamento imenso mas o exemplo aqui dado de alguém que colocou por opção os seus filhos numa antiga escola comercial, não serve. E não serve porque nada salvo o nome, é comum aos dois modelos de ensino profissional. Claro que alguns alunos o frequentam por opção. Porém, a maioria do ensino profissional que conheço - com as devidas ressalvas, que desconheço muitos cursos que existem e os seus alunos - é uma fraude. Porque os professores não estão habilitados como então, porque os alunos encaminhados para esse ensino são mesmo alunos de baixo rendimento escolar e bastante desinteressados. Acresce o facto de serem incentivados até ao impossível a permanecer na escola - o que lhes dá uma força inabitual - dado que as escolas recebem verbas por aluno e não lhes convêm desistências. E não vou dizer mais porque infelizmente não me foi possível ouvir as conferências, como suponho também terá acontecido à maioria dos professores do país que estão ligados ao ensino profissional, poucos por opção. Sei de gente que criou aversão ao ensino por lhe ter cabido um horário de ensino profissional, que chegou a adoecer gravemente. E também sei de quem se não possa dar a esse luxo por não ser do quadro de escola, que aguenta tudo que vier para poder trabalhar.
E mais eu poderia dizer se fosse professora do ensino profissional. Mas como mãe atenta, entendo que devo dizer.

A questão do canudo e do senhor engenheiro e senhor doutor tem certo peso sim. Mas não é já determinante nos mais jovens. O que mais interessa os pais é a possibilidade de emprego. Se ela esteja na via profissionalizante...
Desgosta-me a forma como este tipo de ensino tão necessário tem sido tratado.

Cláudia da Silva Tomazi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rui Baptista disse...

A resposta a este seu comentário, perspectivado sob muitos e complexos pontos de vista, e até certo ponto controverso (e aqui trago à baila a história do copo meio cheio paras uns e meio vazio para outros), obriga-me a uma reflexão detalhada da minha parte. Por esse facto, a resposta será dada em local e ocasião propícias. Até lá, o meu agradecimento e a certeza de que as promessas são para serem cumpridas. Bem bastam os políticos , julgo que foi Korbaschev que o escreveu (cito de memória), " que prometem construir pontes em locais onde em sequer existem rios”.

Haja em vista os programas eleitorais de partidos portugueses que, em vésperas de eleições, prometem-nos as venturas céu e depois de eleitos pregam-nos em cima com um inferno povoado de belzebus que nem direitos adquiridos respeitam!

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