Com a devida vénia, transcrevemos o início do prefácio de Sebastião Formosinho (químico) e J. Oliveira Branco (filósofo e teólogo) ao seu livro "A Dinâmica da Espiral. Uma aproximação ao mistério de tudo", que acaba de sair na Imprensa da Universidade de Coimbra. É o último volume de uma tetralogia que se iniciou com "O Brotar da Criação" e continuou com "A Pergunta de Job" e "O Deus que não temos".
"Uma aproximação
«Às vezes pergunto‑me como é que a Terra se criou.
E uma pergunta leva sempre a outra pergunta.
Mesmo que me respondam,
tenho sempre uma pergunta para cada resposta.»
“Beatriz”
Demandar o mistério de tudo, parece ambicioso. Mas ninguém prescinde de o tentar. Amiúde, sem lhe dar pelo nome. O homem não pode deixar de interrogar. E em rigor, nada fica de fora. É uma mais‑valia da consciência intelectiva. Decorre da nossa condição própria, e é sinal dela. No prosseguimento de ensaios anteriores dedicados a vertentes do mesmo perguntar, os autores voltam‑se agora para uma problemática mais englobante. Querer saber não está vedado a ninguém. Felizmente.
Não vamos traçar aqui uma filosofia do homo quaerens: do ‘homem que procura’. Era convidativo ir por aí, mas quisemos olhar mais ao objecto que ao sujeito da procura. Esta opção, além de se tornar acessível a mais leitores, obedece a uma estrutura significante. O verbo ‘querer’ deriva daquele, latino. E é um verbo transitivo (ouvimo‑lo desde a escola primária): o ‘objecto’ é indispensável à acção do sujeito. Uma pergunta leva a outra, mas vão todas em função daquilo a que se tende. Muito antes de se esboçarem as primeiras gramáticas, já a filosofia prática o sabia.
Mas por outro lado não há demanda que não seja selectiva. Ninguém finito pode indagar com alcance pleno, e em todas as perspectivas. Os autores não têm a menor pretensão de escrever “sobre” tudo. Era ridículo. Assumimos um móbil englobante, e daí o título; mas não é possível considerar senão alguns ângulos. E neles, aspiramos tão‑só a ‘uma aproximação’. A par desta, haverá inúmeras outras. E por serem de homens, todas são finitas. Isto é: nenhuma suficiente. A nossa tomou o rumo que trazemos aos leitores. Mesmo pelo prisma que seguimos, seriam possíveis outros volumes, e por certo diferentes, sobre o tema. Não vamos criar ilusão quanto a isto. Temos alguma noção do muito que fica por visitar. Mas se é assim, para quê então procurar? E será que adianta mais quem se remete à não‑procura? O agnosticismo abandona a liça cedo demais. Veja‑se que nenhum cientista que se preze abdica de procurar. O real não está aí a desencorajar mas a estimular a procura.
É natural que ninguém finito possa chegar a uma resposta à altura do real. Mas não íamos parar por causa disso. Se nem a certeza da morte nos desmotiva da vida, antes concretiza o viver, também aqui o demandar, alguma coisa há‑de descobrir. Este paralelismo permite reforçar a questão. Fazemos por nos situar ante ‘o mistério de tudo’. Decididos a demandar, e a insistir. Não tanto com a mira no que tem de extensão quanto no que revela de intensão: sondando mais dentro. E nesta, ressoa a intensidade. Também isto nos motivou. O ritmo do quotidiano corre demasiado depressa: Não é propício a que se dê por esta força intrínseca. Se a reflexão que fazemos pode ajudar quem se interroga, é nosso dever propô‑la. Não sabemos responder a tudo; mas é sempre lícito − e animador − perguntar mais.
Não olhamos para a realidade como de fora. Ninguém está fora dela. A existência faz‑nos como somos, porque nós a fazemos como é. E isto já é participação na realidade. Obriga a tomar posição. Perante os desafios do real, o homem não consegue ficar indiferente. Ou se ficar, passa pela vida sem dar por ela. Existir, é ver‑se confrontado com o mistério disto. Tudo. Há realmente um mistério em tudo. E cheio de nódulos. Só os de superfície parecem miúdos. Em profundidade, são de enorme densidade. Não é difícil intuir aí uma compreensão em espiral. Um Grande Mistério envolve e constitui todo o real − a muitos níveis de densidade. E também nos constitui a nós, que podemos ter consciência disto.
É difícil lidar com esta condição do homem? Não, e sim. Toda a gente tem uma noção, vivida, a este respeito. Por mais saberes (tácitos ou explícitos) que se adquiram, o Mistério da realidade está aí. E sempre irá além do que é possível ao homem desvendar. Do Mistério de tudo, no fundo não sabemos quase nada. A antecipação do título, que parecia uma proposta ambiciosa, já confessa a nossa inquietação, interrogações e limites. Como é que o real pode entender‑se? Os autores não têm receitas: ousamos levantar (algumas) perguntas. Tentamos olhar de frente: Sem subterfúgios, nem mitificações. É nossa convicção que na porfia alguma luz pode surgir. Que há‑de trazer novas perguntas. E também elas em espiral. A humanidade tem mostrado − onde haja insatisfação de espírito − que é possível abrir caminhos para avançar.
A nossa proposta aceita a ponderação de cientistas reconhecidos e de filósofos esforçados. Precisamos de aprender com todos. Mas sem abdicar da nossa procura própria. Não é um aceitar rendido. Continuamos a linha de indagação e de método que presidiu aos temas que abordámos nos volumes que escrevemos antes. De parceria, como este. 1. O brotar da Criação. Um olhar dinâmico pela ciência, a filosofia e a teologia; 2. A Pergunta de Job. O homem e o mistério do mal; 3. O Deus que não temos. Uma história de grandes intuições e mal‑entendidos. Com esta trilogia, tocámos em questões das mais essenciais para o homem. Por considerarmos que a temática nos solicita para voltar à questão, aqui estamos a partilhar com os leitores interrogações que temos debatido para nós mesmos. Desta vez, pelo prisma da Pergunta Radical. Omni‑abarcante. Conota o ‘Mistério de Tudo’.
Que esta formulação se tenha destacado e apareça como título, não foi veleidade: Resultou do processo de reflexão. Enquanto houver quem pense, haverá quem pergunte. Por isso entendemos que devíamos prosseguir. Vamos chamar‑lhe agora tetralogia? Tem pertinência objectiva. Mas não é o ‘rótulo’ que nos move. O que sobretudo nos importa é a possibilidade de trazer aos leitores/as elementos para uma reflexão fundamentada e clara. Se procuram de espírito aberto, e a nossa indagação pessoal lhes pode sugerir pistas de aprofundamento, não é bem relegá‑la para uma pen esquecida ao canto da gaveta.
Agrada‑nos relacionar esta linha de procura com a atitude curiosa, e animosa, que transparece da epígrafe. Expressão simples da vivacidade e frescura de uma criança: ainda infantil, mas a despertar − ávida de saber e de desafiar o seu entorno. Colhida em entrevista de jornal (“Expresso”, 8.Jan.2011), da boca de uma ‘Beatriz’ de 11 anos, lembra os primeiros ares de primavera. Não há quem não deseje que a promessa se confirme e revele a seu tempo. Não é só pela graciosidade que esboça. É pela regra de vida que anuncia. Significa uma atitude saudável, que se deseja possa crescer pela vida fora. Crescer é inerente a toda a realidade. E a do humano, só o é se desenvolver consciência e criatividade. Sua. No texto em destaque podemos ver esboçado o próprio do espírito filosófico. E da atitude científica. Em suma: um símbolo notável da humanidade. Ou de toda a criação. Estamos cá − para interrogar o que se apresenta com menor clareza. Tudo afinal.
E é assim que nos representamos o pequeno texto. À maneira de um mote que pode inspirar qualquer leitor/a. Não conhecemos a ‘Beatriz’, mas temos de admirar o gosto e a inquietação (também filosófica) que se deixa traduzir nas suas palavras, e que ela nem sonha. A criança não está ainda tocada pelas acomodações e sedimentações a que a sua resposta reage. Não ficar pelo que se supõe sabido é uma atitude preciosa. E uma virtude prometedora. Oxalá a ajudem a desenvolvê‑la.
(...)"
Autores: Sebastião J. Formosinho, J. Oliveira Branco
ISBN: 978-989-26-0550-0
Editora: Imprensa da Universidade de Coimbra
Data: Maio 2013
Preço: 20 euros
N.º Páginas: 542
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1 comentário:
Não me anima a certeza dos autores do livro, que toda a realidade cresça é movimento optimista, que não sei de fonte segura. Contudo, acredito que a leitura possa ajudar a desenvolver a criatividade e a consciência individual.
E que esta obra contribua.
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