terça-feira, 2 de abril de 2013

SOBRE ANTÓNIO JOSÉ SARAIVA


Texto sobre António José Saraiva da autoria do editor da sua obra completa, Guilherme Valente, dito na sessão de homenagem ao ensaista realizada recentemente no Centro Cultural de Belém:

É na condição de amador de AJS e da sua obra que escrevo estas linhas.

Mas disponho de dados profissionais para dar conta duma aberração, uma aberração que é um indicador expressivo dos tempos que vivemos: a obra de AJS não é lida, nem na Universidade, que a devia estudar e divulgar.

Publicam-se livros sobre tantas obras, mesmo menores, sobre tanta gente, mas sobre AJS e a sua obra... nada. Silêncio absoluto sobre aquele que é, porventura, um dos maiores dos raríssimos grandes pensadores da cultura portuguesa. Por isso saúdo a iniciativa redentora, de verdadeira emergência cultural, de Guilherme de Oliveira Martins e Vasco Graça Moura que foi a homenagem realizada no passado dia 17 de Março no CCB. E aproveito esta oportunidade para agradecer também a Ernesto Rodrigues ter continuado o trabalho de edição das obras de AJS, iniciado por Leonor Curado Neves, cuja memória, com muita saudade, evoco.

Conseguiram «matar» AJS e silenciar a sua obra. Mas não para sempre, apenas para este tempo deles, que, todavia, não podemos dizer não ser também o nosso... A razão para esse silêncio parece-me clara. AJS viveu e escreveu fiel à sua consciência, ao que criticamente ia pensando e mesmo nos seus próprios livros escrevera.

Como ele próprio disse de Oliveira Martins, «a sua honestidade não admitia outro juiz senão a sua consciência». «Sê tu próprio», dizia-se na Grécia Clássica, como já dissera Confúcio. Isolaram-no, tentaram diminui-lo e até expulsá-lo. Por não suportarem a visão contrastante do intelectual e da obra.

Não foi o primeiro, e esse isolamento ou mesmo «liquidação» do «outro» contrastante, revelador da mediocridade geralmente dominante, continua... «A abordagem que adoptou está desactualizada», disseram e dizem.

Sim, está desactualizada, de facto, na inteligência finíssima, no conhecimento e nas referências estelares, num pensamento só comprometido com a busca da verdade, na qualidade da escrita. Livre e irreverente, indomável, o homem fora e é um exemplo temível, a obra fazia-lhes sombra. Mas nunca o atingiram: "A surdez dá-me jeito em certas situações" - dizia-me - "Nas reuniões e nos conselhos, quando a «geringonça» - era o termo que usava - quando a «geringonça» deles me começa a cansar, desligo o aparelho".

Os preciosos volumes das Cartas recentemente editados - para Óscar Lopes, Luísa Dacosta e, agora, para Teresa Rita - proporcionaram-me o reencontro, quase real, com o AJS com quem convivi nesse último período, breve, da sua vida. Um AJS com limitações físicas, mas igual a si próprio no espírito intocado. É desta fase, e atesta-o, A Tertúlia Ocidental, um livro admirável.

Fiz um bom exame de Português do sétimo ano do Liceu apenas com os livros que fora lendo, nessa idade em que se lia muito, ou nunca mais se leria nada, e usando como único guia a Breve História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva.

António José Saraiva era para muita da melhor juventude da minha geração uma referência intelectual e cívica. E hoje, quem são as referências? Foi também nesse tempo que pela primeira vez ouvi falar de Teresa Rita. Os seus poemas chegaram-nos de Paris, trazidos por um amigo, para os publicarmos no Pinhal Novo, um suplemento cultural que eu criara com outros amigos, integrado no semanário A Região de Leiria, um dos poucos jornais de província que pudera iludir a razia promovida pela Ditadura.

Não me surpreenderia, então, a possibilidade de vir a ser editor, mas não poderia imaginar ser um dia o editor da obra de AJS, e, muito menos, ter o sentimento gratificante da sua inequívoca amizade. Amizade que se alargou à família, a José Hermano Saraiva e seus familiares, de quem recebia afectuosas atenções.

Teresa Rita Lopes, no Prefácio às Cartas, deu-me a chave para compreender essa amizade que me surpreendia. Surpreendia-me porque se eu o conhecia há muito tempo, a mim, ele conhecia-me há pouco: "Precisava de se sentir amado", explica Teresa Rita, "embora tivesse a coragem de ser impopular, detestado mesmo, quando defendia uma ideia ou tomava uma atitude que se lhe impunha como justa e verdadeira".

Maneira de ser que me lembra alguém - a anos de luz de distância, claro -, alguém com quem sou obrigado a conviver sem descanso. E não terá sido apenas isso que nos aproximou e ligou. No seu breve passeio matinal de todos os dias, acompanhado pela Leonor ou trazido pelo Pedro, AJS fazia sempre uma paragem na Gradiva. Antes de entrar na minha sala, ao fundo de corredor no edifício antigo que continuamos a habitar, cumprimentava os amigos nos vários gabinetes por onde ia passando, detendo-se habitualmente na sala da responsável dos serviços editoriais, uma jovem mulher, inteligente e cativante.

Um dia, como ela, com afecto, gostava de contar, disse-lhe: «Esta noite sonhei consigo...». e, depois da bem calculada pausa, acrescentou candidamente: «Mas não foi o que está a pensar...». Apanhava-me depois na minha sala e saíamos juntos, amparado no meu braço, a caminho da Tentadora, para o café, a soda, de que gostava tanto, e a conversa para mim inesquecível.

Foi aí, nomeadamente, que fui acompanhando a escrita e reescrita da Tertúlia Ocidental. O desfile de títulos que foi pensando para o livro. Tertúlia do Extremo Ocidente, esteve para se chamar assim, expressão chave para a compreensão desses autores cuja vida e obra o fascinavam. Testemunhei o gosto com que saboreava o pequeno passo de ficção que inicia a obra. Um livro longa e profundamente reflectido. Uma estrutura laboriosamente pensada, entretecidos os textos e os andamentos da análise critica, para construir a tapeçaria do pensamento cruzado e implicante desses autores enormes que, com Vieira, o acompanharam sempre (sei que pensava ou teria mesmo começado a escrever um livro sobre o Padre António Vieira...). Oliveira Martins (o seu preferido, suponho), Antero, Eça, todos os outros, e também, como que em contraponto, Teófilo.

Teófilo, que apesar de surgir, como figura secundária, é também real no seu desenho, lembrando-me aqueles heróis da Íliada, que, como notou André Bonnard, surgem só para morrer, mas o Autor retrata inteiros, na descrição, em dois versos, do modo como morrem. Um bom exemplo de recriação impressiva é o episódio da partida de Antero para Ponta Delgada, a que AJS nos leva a assistir. Oliveira Martins, que fora ao cais despedir-se, tem uma síncope, pressentindo que não voltará a ver o amigo tão querido. Em nenhum outro autor do género que tenha lido, se verifica, como em AJS, a integração da escrita analítica de pensamento (tão rara entre nós) com a expressividade polissémica da escrita literária, como só encontramos na nossa melhor ficção, género para que seremos culturalmente mais vocacionados. A actualidade do que o livro narra, é incrível. Aquilo que estamos hoje a viver parece a repetição da História... ou, melhor, continuamos a ser os mesmos. Só não há é um grupo de homens como aqueles.

Também a Ciência atraía e fascinava AJS. Lia e discutia comigo os livros da colecção Ciência Aberta, que eu criara e persistentemente ia editando, o seu espírito de argonauta sobrevoando inesperadas e inebriantes paisagens. Sempre o seu espírito interrogativo, desafiado pelo enigma, mas aberto para o exame crítico de todas as respostas - é isso, afinal o verdadeiro espírito científico -, sensível «ao mistério do ser».

É dele esta expressão, que retive da definição que fez do positivismo, quando, na Tertúlia, caracterizou Teófilo: «O Positivismo, de que Teófilo será um dos protagonistas em Portugal, é a filosofia dos que são insensíveis ao mistério do Ser», escreveu, clarificando lapidarmente a questão. Um dia, num fim de manhã em que o sol de uma primavera precoce lhe iluminava e aquecia o olhar, sentados, com Leonor Curado Neves, numa mesa da Tentadora, manifestou-me, de um modo inesquecível, tão seu, essa amizade que, apesar de toda a insegurança que me caracteriza, não posso deixar de reconhecer ter sido um facto.

Parecendo dirigir-se apenas à Leonor, no seu tom quase sussurrado, mas tão expressivo, contou : «Tenho um amigo aqui no meu bairro, um amigo de quem gosto muito, com quem preciso de estar, mas estou muito triste, porque vou ficar sem a sua companhia»... Não percebi imediatamente que esse amigo era eu.

De facto, eu partiria no dia seguinte para Macau para uma estadia de dois anos. Depois, a visitar um Filho e as netas que o embeveciam e de quem ternamente falava tanto, foi também ele um tempo para Macau, e aí continuámos o nosso convívio. Curiosamente, foi nesse Oriente Extremo que praticamente concluiu A Tertúlia Ocidental.

Quando agora reli o livro, tive o sentimento amargo de que o último capítulo, sobre Eça, teria sido escrito com pressa...

A foto, com a minha filha, fixada num jantar na minha casa em Macau, é, porventura, uma das últimas fotografias de AJS, por isso a público.

Lembro-me desse seu olhar tranquilo, induzido, porventura, por um ambiente familiar como eu sempre pressenti que apreciava. Uma fotografia que com a sua obra me será grato deixar em herança à minha filha. Tínhamos então uma empregada que cozinhava admiravelmente. AJS comeu imenso. E eu preocupadíssimo que lhe pudesse fazer mal.

No dia seguinte telefonei a saber se teria passado bem a noite. «Maravilhosamente», respondeu. «Como a minha mãe dizia, quando comemos com gosto em boa companhia nada nos faz mal», acrescentou esse evocação da mãe, para ele tão grata. A minha mulher fez-me então notar não ter parado de lhe encher o copo de chá... Regressou a Lisboa e eu permaneci em Macau. Pouco tempo depois, chegou-me a notícia de que nos tinha deixado. Partiu a falar na sua obra, na cerimónia em que recebeu o Prémio de Ensaio do Pen Club – honra ao júri que o atribuiu! - crítico, irónico, livre, tal como eu o havia lido e conhecido. Diminuído fisicamente, mas incólume no que é humano na nossa Humanidade.

Quem, porventura, pudesse aliviar-lhe o sofrimento físico, o andar doloroso, decidiria, seguramente, não o fazer, para não correr o risco de lhe tocar o espírito.

Deixou-nos num relâmpago. A morte não o quis matar.

Guilherme Valente

6 comentários:

Anónimo disse...

Já agora, para que não se faça de AJS assim uma espécie de santo, convém ler outros testemunhos:

http://tempocontado.blogspot.pt/search?q=O+sartre+portugu%C3%AAs

José Batista disse...

Um belo texto. Sem adornos inúteis. Profundo. Sentido. Comovente.

Obrigado por partilhar.

José Fontes disse...

Anónimo:
Os testemunhos que apresenta são de peso, sentenças de tribunal de um país onde a Justiça não é a bandalheira que conhecemos cá, e decisões de responsáveis universitários em que os critérios não são decididos à mesa de café ou no meio de 2 lençóis.
Mas aqui neste blogue gosta-se muito de endeusar certas pessoas e certas situações passadas, afinal, realidades nascidas na cabeça de quem endeusa ou conta essas situações.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Integridade, palavra e amizade!


Um é pouco. Dois é bom e, três para mais!

Albino M. disse...

Santos, cada um tem (faz) os seus...
O anónimo de 3-Abril já pôs o linque, mas eu repito, para compor o retrato do falecido. Factos:

http://tempocontado.blogspot.pt/2009/02/o-sarte-portugues-em-amsterdam.html

Carlos Caet disse...

António José Saraiva, o Mal Amado! A sua vida e a sua obra são uma lição e uma bênção para todos os que o conhecemos e lemos. Viva Portugal!

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