Cresce a miséria material no mundo e, na mesma proporção, a indiferença face a ela. Isto é assim, independentemente dos esforços publicitados ou reservados de uma multiplicidade de organizações - algumas com história outras recém-criadas - de caridade e de solidariedade...
A cada dia que passa, aumenta o número de pessoas a tentar sobreviver, aos montes em prédios decadentes, em becos, em baldios... nos passeios...
Há quem diga, com os pés pousados em confortáveis tapetes, num ambiente à temperatura ideal, antes ou depois do almoço ou jantar garantido, que essa gente, esses "sem abrigo" aguentam. Aguentam tudo.
"Esses", são aqueles em que, dadas as naturais oscilações (ou-lá-o-que-é) de mercado, qualquer um de "nós" (retirando-se deste "nós" quem diz) se pode tornar. Logo, há que encarar a circunstância sem dramatismos exagerados, com serenidade até, com a serenidade de que "esses" não somos "nós", de que "esses" são os danos colaterais de um empreendimento maior, brilhante que tem de prosseguir... Portanto, nem valerá a pena esmiuçar muito o assunto.
Lee Halpin, um jovem jornalista inglês, que certamente não achava nada natural este tenebroso (digo eu) modo de pensar, decidiu fazer um documentário sobre a vida dos sem-abrigo numa grande cidade.
Seguindo o exemplo de colegas que se guiaram pelo mesmo propósito, adoptou a estratégia de "observador-participante" e foi viver com "eles". “Estou prestes a passar uma semana como sem-abrigo (…), a imergir nesse estilo de vida da forma mais profunda que me for possível”, disse ele num vídeo que se pode ver aqui.
O seu período de trabalho era de uma semana mas só aguentou três dias. Não importa que tenha morrido de frio, de fome, de um ataque ou de outra coisa qualquer. O que importa reter é que, por ser pessoa e ter decidido viver como as pessoas que procura compreender, não aguentou.
Quantas serão as não aguentam como Lee? Nunca saberemos porque morrem num canto, são retiradas discretamente e discretamente se lhe faz um funeral discreto.
É nesta discrição, com a vaga consciência de que existem "nós" e "eles", que toleramos que se diga que "eles" aguentam.
Por isso, Lee tornou essa vaga consciência, na forma de má-consciência, mas apenas por um dia ou dois, que a morte de alguém, ainda que tão noticiada, não nos pode tomar mais tempo nesse tal empreendimento-luz...
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2 comentários:
Muito, muito bem dito.
Não, não aguentam! É preciso ver e compreender isso. Os senhores do poder e do dinheiro, que vão para a tribuna e para a TV debitar lições de austeridade e de economia, em sentido estrito, e mandar apertar o cinto, não têm pudor, nem vergonha. Dizer essas coisas choca pela imoralidade. Se fossem os pobres a dizer-lhas a eles teriam todo o sentido, mas os pobres só têm que se sujeitar...
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